Doenças urbanas do Recife no candidato do Brasil ao Oscar

Retratos Fantasmas, do pernambucano Kleber Mendonça, mostra uma cidade com prédios históricos abandonados e um déficit habitacional de 70 mil moradias

Por Adriana Amâncio | ODS 10ODS 11 • Publicada em 20 de outubro de 2023 - 08:51 • Atualizada em 21 de novembro de 2023 - 09:00

Imagem de Retratos Fantasmas com a Ponte Duarte Coelho e o Cinema São Luiz, fechado para obras desde maio de 2022, no centro do Recife: dores urbanas no documentário indicado como representante do Brasil no Oscar 2024 (Foto: Divulgação)

Na cena final de Retratos Fantasmas, o cineasta Kleber Mendonça Filho, também narrador e protagonista do longa, faz um passeio pelo Recife dos dias atuais. Ele entra em um Uber para arejar a cabeça e programa paradas no trajeto para que o veículo siga a rota que ele deseja e não a que o aplicativo impõe – a câmera nos permite assumir a perspectiva de Kleber, que, da janela do carro, avista uma grande quantidade de farmácias de franquias nacionais, cujos nomes, quase sempre, terminam com “ente”. Neste momento, espectadores da sala expressam admiração: “que tanta farmácia é essa!”

Isso é muito contraditório. Enquanto o Centro se esvazia, a periferia está inflada de pessoas vivendo sem saneamento básico, em auto construções, um retrato da desigualdade no acesso ao espaço urbano”

Socorro Leite
Arquiteta e coordenadora da ONG Habitat Brasil

Essas imagens podem sinalizar que a cidade está doente, conclusão quase que inevitável após acompanharmos tudo o que o filme mostrara desde as suas primeiras cenas. Mas refletem, especialmente, um movimento comum na ocupação da cidade: a onda de edificações que se instalam em quarteirões inteiros, na direção onde sopram os ventos das oportunidades de lucro. Assim, em cada esquina do Recife, além de farmácias, podem ser vistos prédios empresariais e residenciais; universidades privadas, clínicas populares e pontos de açaí. Muitas vezes, esses empreendimentos fazem com que determinados lugares ganhem status, concentrem mais pessoas e, sobretudo, se tornem mais caros.

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É assim que o documentário Retratos Fantasmas – dirigido pelo cineasta de O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019) e indicado para representar o Brasil no Oscar 2024; mais do que revolver memórias afetivas e provocar identificação, o filme lança uma lente de aumento sobre problemas urbanos, que convergem para a pauta do direito à cidade. Com um tom de declaração de amor e, ao mesmo tempo, melancolia, o longa pauta questões como especulação imobiliária, abandono do patrimônio histórico, gentrificação, acesso à cultura e à moradia. “O filme mostra a dinâmica da cidade. Desde o bairro [Setúbal], onde está localizado o apartamento de Kleber, onde viveu sua mãe, e as mudanças provocadas pela concentração da densidade demográfica até o esvaziamento do centro do Recife”, avalia a arquiteta Socorro Leite. coordenadora da ONG Habitat Brasil na capital pernambucana.

Retratos Fantasmas, em si, é um convite a passear pelo Recife com uma lupa, capaz de fazer enxergar questões que a velocidade urbana nem sempre permite. Como bem introduziu Socorro, tudo começa no bairro de Setúbal, no apartamento do diretor – narrador – ator, onde ele mostra as transformações na estrutura física, nos arredores e na vizinhança.

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Setúbal é um bairro localizado na zona sul do Recife, que se mistura com o bairro de Boa Viagem, onde está o metro quadrado mais caro da cidade. Contornado pela praia, Boa Viagem é repleto de arranha-céus, com estrutura moderna, muitos já erguidos e outros tantos em construção. Lojas, restaurantes, shoppings, hotéis, galerias todos pensados para o público de classe média alta, a maior parte do público que ocupa o espaço.

Destoando da paisagem verticalizada, está a comunidade Entra Apulso, encravada no coração de Boa Viagem, que bem antes de estrelar Retratos Fantasmas, inspirou os versos que abrem o clássico “La Belle de Jour”, de Alceu Valença. Estima-se que pelo menos 10 mil pessoas vivam nas 2 mil 800 casas erguidas em uma área de oito hectares. O nome, Entra Apulso, traduz a resistência dos moradores, que, contra a especulação imobiliária da região, vivem na localidade desde os anos 70. Para enfrentar o alto custo de vida do bairro ao redor, a comunidade possui o próprio comércio, que pratica preços de acordo com as condições de renda dos moradores.

Recife entre as palafitas e os arranha-céus: Retratos Fantasmas mostra contrastes da cidade com prédios abandonados no Centro e déficit habitacional de 70 mil moradias (Foto: Antonio Melcop / Prefeitura do Recife)
Recife entre as palafitas e os arranha-céus: Retratos Fantasmas mostra contrastes da cidade com prédios abandonados no Centro e déficit habitacional de 70 mil moradias (Foto: Antonio Melcop / Prefeitura do Recife)

De acordo com Socorro Leite, a comunidade Entra Apulso só permanece em Boa Viagem porque possui um zoneamento especial, que “sobrepõe o direito à moradia aos interesses do capital”, Em uma conta simples, os 8 hectares da área total da comunidade correspondem a 80 mil m². Levando em conta que o preço médio do metro quadrado para locação, em Boa Viagem, é de R$ 40,90, a área total da comunidade renderia quase R$ 3 milhões e 300 mil reais. Uma vez que a comunidade é uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis), esse interesse comercial só não prevalece porque o direito à moradia, neste tipo de zoneamento, é a prioridade.

As Zeis servem para regulamentar assentamentos habitacionais da população de baixa renda e estão previstas no Plano Diretor da cidade e na Lei de Zoneamento. Diferente do entorno, tomado por prédios com 30 andares ou mais, nas Zeis, a legislação restringe o tamanho dos lotes a 250 m². Assim, torna-se impossível construir edificações muito verticalizadas. Apesar da garantia do direito à moradia, as condições da comunidade são precárias, sem saneamento básico de qualidade.

Em outra perspectiva, diferente da de Kleber, a comerciante de laticínios, Josenilda Maria da Costa Borges, de 69 anos, que trabalha no tradicional Mercado de Boa Viagem, lembra que, quarenta anos atrás, quando veio morar no bairro, havia muito mais árvores do que hoje. Muitas dessas árvores foram substituídas por grandes hipermercados que chegaram ao bairro, nos anos 80. A tranquilidade e o senso de comunidade eram maiores, lembra ela. “Tinha o carnaval de Boa Viagem, o Recifolia e os moradores levavam comida, cadeiras, e bebidas; montavam barracas na beira da praia para aproveitar a festa até de madrugada”, recorda, emocionada. Segundo Josenilda, o que não mudou nessas quatro décadas é o custo de vida no bairro. “Sempre foi alto! Até um serviço, um conserto, é mais caro aqui”, reforça.

Da Zona Sul, a câmera de Retratos Fantasmas parte para o centro do Recife, que, na contramão de Boa Viagem, foi se esvaziando e teve os seus prédios históricos sucateados – muitos, no passado, abrigaram glamourosos cinemas. “O dinheiro mudou de endereço, escolheu outro lugar”, explica Kléber Mendonça. Além dos prédios abandonados, o Centro se tornou refúgio de trabalhadores informais e de muitas pessoas em situação de rua, que buscam ali formas de sobrevivência. “Isso é muito contraditório. Enquanto o Centro se esvazia, a periferia está inflada de pessoas vivendo sem saneamento básico, em auto construções [barracos, palafitas], um retrato da desigualdade no acesso ao espaço urbano”, pondera Socorro Leite.

A comunidade do Pilar no Recife Antigo, é o maior exemplo de gentrificação do Recife. A área, antes desvalorizada, hoje, é um centro tecnológico, mas a população do Pilar não tem acesso às oportunidades geradas

Socorro Leite
Arquiteta e coordenadora da ONG Habitat Brasil

Alguns dos fantasmas retratados no longa possuem traços arquitetônicos que fazem referência a escolas como Bauhaus, precursora do modernismo, e Arte Déco. Qualquer professor que leve seus alunos para estudar história da arte no centro da cidade encontrará material farto. No edifício onde um dia funcionou o Cine Trianon, por exemplo. Por muito tempo, o prédio ficou esquecido, se deteriorando. Mais tarde, foi adquirido por um grande grupo educacional e ganhou um novo uso: virou sede de uma universidade privada. Recebeu uma nova pintura e passou por adequações internas para receber os estudantes com segurança.

No longa, o recifense Kleber chama atenção para o fato de que muitos desses edifícios poderiam servir de moradia para pessoas que não têm teto. O Recife conta com um déficit habitacional de 70 mil moradias. Para a arquiteta Socorro, o abandono dos prédios em meio ao alto déficit de moradia é uma dupla omissão. Ela explica que esses prédios representam as poucas oportunidades de garantir moradia popular em áreas bem localizadas, ocupação que, hoje, é determinada pela capacidade de renda.

No Plano Diretor, há um dispositivo que assegura esse direito. Trata-se do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, que tem como objetivo garantir a função social da cidade, induzindo a ocupação de áreas vazias ou subutilizadas. Em outras palavras, esses prédios, se considerados prioritários, podem ser destinados, pelo poder público, à moradias populares. “Diversos estudos comprovam que um dos usos que melhor preservam as edificações é o uso residencial. Então, a população poderia estar morando e ao mesmo tempo zelando por esses espaços”, explica a coordenadora da Habitat Brasil.

Outra contradição é que a parte do Centro conhecida como Recife Antigo ao longo dia, recebe um grande centro de tecnologia. Além do Porto Digital, um centro de fomento de empreendimentos digitais, diversas startups estão instaladas nesta parte do bairro. Muitos desses empreendimentos têm dado um novo uso a alguns prédios, antes abandonados. À margem do vai e vem de executivos, jovens cientistas de dados e outros profissionais da área de tecnologia, estão as quase 600 famílias da Comunidade Pilar, que vivem em habitações precárias, reflexo do esquecimento que o Centro do Recife sofreu. “A comunidade do Pilar no Recife Antigo, é o maior exemplo de gentrificação do Recife. A área, antes desvalorizada, hoje, é um centro tecnológico, mas a população do Pilar não tem acesso [às oportunidades geradas]”, analisa Socorro.

Gentrificação é a mudança dos grandes centros urbanos, provocada pela transição de grupos sociais que frequentam o espaço. Ou seja, saem os grupos de baixa renda e entram grupos de camadas sociais mais ricas. No caso da comunidade do Pilar, os moradores permanecem no local, mas não acessam o espaço urbano onde pulsa o centro tecnológico, que passou a ser ocupado por pessoas de classes mais abastadas.

O São Luiz lotado na abertura do Cine-PE 2017: tombado pelo patrimônio histórico e artístico, último cinema de rua do Recife Antigo está fechado desde o ano passado (Foto: Lana Pinho / Divulgação Cine PE)
O São Luiz lotado na abertura do Cine-PE 2017: tombado pelo patrimônio histórico e artístico, último cinema de rua do Recife Antigo está fechado desde o ano passado (Foto: Lana Pinho / Divulgação Cine PE)

Relação entre cinema e direito à cidade

Em outro trecho da película, Kleber destaca a importância dos cinemas de rua para a experiência coletiva de ver um filme. E no Recife, essa experiência se prolongava com uma ida ao Bar Central, uma referência para os jornalistas, onde se analisa e debatia o filme até altas horas da madrugada. Hoje, o streaming não oferece essa possibilidade. Simone avalia que o fechamento dos cinemas de rua, o que oferece ao público apenas a opção dos multiplexes nos shoppings, também fere o direito à cidade. “O acesso à cultura também está previsto no direito à cidade. Então, quando os cinemas de rua, que são mais acessíveis e cobram ingressos mais baratos, são fechados, as populações de periferia têm o seu direito restrito, uma vez que não podem pagar por um ingresso em um Multiplex, que custa mais caro”, observa.

A cena que trata do Cinema São Luiz, localizado na rua da Aurora, área central do Recife, tem destaque especial na trama. Além de possuir belíssima arquitetura clássica por fora e vitrais que disputam a atenção do espectador, o São Luiz, nos últimos anos, é o grande responsável por manter a tradição de transformar a ida ao cinema em uma festa. Bacurau, produção de Kleber Mendonça que antecedeu Retratos Fantasmas, em 2019, lotou a casa, que tem capacidade para quase mil espectadores, por várias semanas.

O cinema que Kleber vem construindo ao longo da carreira é o grande legado para o Recife, melhor do qualquer peça publicitária

Luiz Joaquim
Crítico de cinema e curador

Inaugurado em 1952, o cinema foi tombado como patrimônio histórico e artístico em 2008 pelo governo estadual que, desde então, administra o espaço. A relevância da casa é tamanha que Kleber Mendonça pautou o seu fechamento para além das telas. Em março deste ano, ele enviou uma carta à governadora do estado, Raquel Lyra, cobrando respostas sobre o fechamento da sala: em maio de 2022, quando foi anunciado, a justificativa era a realização de obras de manutenção. A carta resultou em um abraço coletivo, seguido de shows de artistas locais, ao São Luiz, que ocorreu em junho deste ano. O cinema segue fechado: após os protestos, o governo de Pernambuco prometeu a reabertura em 2024, sem especificar datas ou detalhes das obras.

Crítico, curador de cinema, coordenador de uma das poucas salas de rua em funcionamento no Recife e amigo pessoal de Kleber Mendonça, Luiz Joaquim avalia os elementos que consagram Retratos Fantasmas como um grande filme. “O Prêmio do Júri de Cannes por Bacurau é um importante carimbo para o projeto. Kleber Mendonça é muito querido em muitos lugares do mundo. Muitos países compram, exibem e divulgam os seus filmes e O Som ao Redor foi classificado pelo The New York Times como um dos dez melhores filmes do mundo”, frisa.

Luiz Joaquim afirma que a Academia Brasileira de Cinema levou esses elementos em consideração na hora de escolher o filme para representar o Brasil no Oscar. “A Academia também levou em consideração o discurso do documentário que é local, mas também é universal”, completa. Além disso, a combinação memória pessoal, memória coletiva e cidade, ativando a chave do afeto das pessoas potencializa a compreensão que o longa passa.

A cidade, as pessoas, a relação entre as cidades e as pessoas, e o clima marcam a cinebiografia de Kleber Mendonça Filho. Em Recife Frio (2009), ele fala das mudanças climáticas, criando um cenário no qual um meteorito cai sobre o Recife, cidade marcada por temperaturas elevadas, onde, repentinamente, começa a nevar. Mais tarde, O Som ao Redor acompanha a tensão crescente entre moradores de um bairro de classe média, após a chegada de uma empresa de segurança ao local.

Aquarius – filme que competiu pela Palma de Ouro em Cannes e arrebatou prêmios nacionais e internacionais – pauta a especulação imobiliária com ênfase. O longa mostra uma jornalista aposentada na luta para defender o apartamento onde nasceu contra o assédio de uma construtora. Bacurau, dirigido em parceria com Juliano Dornelles, recebeu o Prêmio do Júri de Cannes. Novamente, questões como a relação das pessoas com o lugar onde vivem entra em cena. O longa mostra a saga de uma comunidade sertaneja, que some do mapa e logo em seguida, percebe a presença de drones e de estrangeiros no local, enquanto cadáveres começam a aparecer repentinamente. “O cinema que Kleber vem construindo ao longo da carreira é o grande legado para o Recife, melhor do qualquer peça publicitária”, crava Luiz Joaquim.

O escritor e crítico Julian Fucks, mesmo sem ver Retratos Fantasmas, lançou uma lupa, em uma crônica, sobre questões urbanas da cidade onde vive: São Paulo. Ele enfatiza a perda da memória da capital paulista, que, a cada dia, destrói um pouco do seu passado e “renasce esquecida de sua vida anterior, e vai se tornando uma cidade sem história, mas assombrada pelo passado que já não recorda”.

O texto, publicado em sua coluna no Uol, se chama “Sobre a destruição incessante da cidade, já sem passado e sem memória”. Assim como Kleber, Fucks passeia pelo seu bairro e percebe o quanto as casas baixas do passado foram tomadas por “grandes prédios com muros corpulentos que amedrontam as calçadas”, observa outro trecho da coluna. Para mostrar o quão grave são essas transformações, o autor sai do seu universo particular: “tomemos a infinidade de habitantes que somos: não será lamentável a perda de tantos sabores e tragos, a perda do passado de alguns milhões?”, questiona.

Além dessa crônica mostrar a universalidade de Retratos Fantasmas, toca em um ponto crucial: o direito à memória. Para muitas pessoas, os espaços são importantes referências para memórias, especialmente as afetivas. Assim, a cidade que é destruída leva consigo, o direito de muitas pessoas, independente de classe social, viverem a memória das suas vidas individuais e coletivas.

 

 

Adriana Amâncio

Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.

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