ODS 1
Uma gota no oceano da exclusão
No ano em que mais de 130 travestis foram mortas no Brasil, 16 celebram a esperança de entrar na universidade
Letícia Suhet, jovem tão cheia de sonhos aos 22 anos de idade, já idealiza a formatura na faculdade de Serviço Social. Suas escolhas, o curso de sua vida, seu caminho curtido nos dissabores da discriminação de que é vítima dia sim, outro também, nada disso permite adivinhar. Aprovada no vestibular da PUC, já tem vaga garantida em 2016 na universidade frequentada pela juventude de maioria abastada, heterossexual e branca da Zona Sul do Rio. É provável que chegue para o primeiro dia de aula, ano que vem, acompanhada da amiga Gisele Lisboa, outra jovem de sua geração, também repleta de sonhos e molestada por preconceitos. Recém-aprovada para a faculdade de Artes Cênicas da mesma PUC, será fácil, a exemplo de Letícia, identificar Gisele no campus. As duas nasceram meninos – e, para chegar lá, desafiaram a ditadura binária de um mundo hétero, que divide os humanos entre dois gêneros apenas.
Letícia e Gisele são “trans”, como pedem para ser identificadas. Conseguiram vaga na universidade com a ajuda do PreparaNem, iniciativa de Indianara Alves Siqueira, trans como elas, que preside a ONG TransRevolução. Para vingar seu passado de martírios e dar a mão a suas iguais mais jovens em seu presente afirmativo, Indianara, que sequer completou o ensino fundamental e comeu o pão que o diabo homofóbico amassou em seus 44 anos de vida, reuniu um pequeno exército de amigos abnegados e montou, no Rio, o primeiro curso preparatório para o Enem dedicado a travestis, transexuais e transgêneros. Uma gota no oceano da exclusão – mas que já rende frutos.
[g1_quote author_name=”Juramento de formatura” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Juro lutar por direitos humanos para todos os seres humanos. Juro ser uma pessoa agindo em compromisso com a verdade e atuarei dentro dos princípios universais de Justiça e democracia. Buscarei o aprimoramento das relações humanas através da crítica, visando um futuro melhor e mais digno para travestis e transexuais.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosNa noite do último dia 14 de dezembro, no auditório da UnigranRio, na Lapa, zona boêmia do Rio, cedido a elas para o evento, Indianara comandou a primeira formatura do PreparaNem. No palco, de beca, maquiadas, impecáveis, sorridentes, estavam 16 guerreiras de 21 a 40 anos. Aliás, havia também um guerreiro – Halluxx Maranhão, de 30, indígena orgulhoso de seu povo, que nasceu menina e se converteu “homem trans”, como fez questão de se apresentar.
Halluxx e todas as suas colegas de formatura estavam ali como sobreviventes. Em 2014, segundo dados oficiais, apenas 95 travestis, transexuais e transgêneros se inscreveram no Enem. No mesmo ano, de acordo com levantamento da TransRevolução, baseado em registros da imprensa, houve no país 84 assassinatos desse contingente populacional tão discriminado. Em 2015, contabiliza a ONG, já houve mais de 130 mortes. “Praticamente, uma geração inteira do Enem é assassinada por ano”, indigna-se Indianara. “A proposta do PreparaNem é mudar essa realidade”.
É pouco provável que consiga tão rapidamente. Mas talvez Letícia e Gisele não sejam as únicas vitoriosas na batalha por uma vaga em universidade em 2016. Bárbara Aires, por exemplo, 25 anos, transexual paulista que vivia do mercado do sexo desde os 15, quando desembarcou no Rio, pôs a ponta do nariz no mundo inclusivo graças à porta aberta por Indianara. Ela tenta realizar o sonho de se tornar jornalista. Foi a oradora da turma.
“Persona non grata pelos governantes, mas que não precisou de governo para idealizar o PreparaNem, Indianara é a responsável por estarmos aqui hoje nesta formatura”, discursou Bárbara, firme, com os olhos apontados como lança nos olhos da plateia, numa homenagem à criadora do curso. “Sou conhecida pela minha militância por tentar sair do mercado do sexo e ser inserida no mercado formal”, diria ela depois, ex-produtora do programa “Amor & Sexo”, da TV Globo.
Indianara devolveu com um discurso que arrancou lágrimas. Entre “u-hus!” e aplausos da assistência apinhada, formada por amigos e parentes, a turma de beca, volta e meia, entoava seu grito de guerra do palco: “Vem, PreparaNem!/Vem, PreparaNem!/Tem veado e sapatão!/E vai ter travesti também!”
Se depender de Tyfany Stacy, outra formanda da noite de gala, vai ter, sim. Foi lido por ela, trans orgulhosa de si mesma, candidata a uma vaga de aluna de química industrial, o juramento repetido por toda a turma, e que enlevou a plateia:
“Juro desconstruir o cis-tema”, começou ela, num trocadilho que mistura “sistema” a “cisgênero”, termo que designa pessoas cujo gênero é o mesmo que consta da certidão de nascimento. “Juro lutar por direitos humanos para todos os seres humanos. Juro ser uma pessoa agindo em compromisso com a verdade e atuarei dentro dos princípios universais de Justiça e democracia. Buscarei o aprimoramento das relações humanas através da crítica, visando um futuro melhor e mais digno para travestis e transexuais.”
Emoção que segue, foi a vez de Halluxx discursar. “Esta é uma homenagem aes ausentes (todos ali trocaram os artigos “a” e “o” pela conjunção aditiva “e”), às pessoas à margem desta sociedade de fronteiras, desta sociedade cisgênera, heteronormativa, que classifica e estigmatiza qualquer ume que não esteja de cabeça baixa para as normas impostas do capital.”
Halluxx seguiu em sua dedicatória aos (ou aes) ausentes: “Às travestis e mulheres trans assassinadas e trancafiadas em presídios simplesmente por existirem, sem a dignidade de se tornarem o que são, mulheres! Aos homens trans que, desde o grande João Nery, estão lutando para serem reconhecidos, e pasmem, lutando para mostrar que existimos, sim, em nossas transmasculinidades”, bradou, numa referência a João W. Nery, 65 anos, autor do livro “Viagem solitária”, de 2012, psicólogo, sexólogo, que se autodefine no Facebook como “primeiro homem trans a ser operado no Brasil, durante a ditadura militar, e ativista dos direitos humanos” (leia aqui a íntegra do discurso de Hallux).
Não faltaram homenagens também a professores e voluntários, quase todos e todas da multicomunidade de gêneros atingida pelos preconceitos que castigam os alunes. Luíza Ferreira Mendonça, trans de 20 anos, foi uma delas. Estudante de Farmácia da Universidade Estácio de Sá, no Rio, lecionou Química no curso. “Cheguei por intermédio de uma aluna”, contou. “Fui a uma reunião do PreparaNem, gostei e cá estou”.
Não foi a única. Assim também chegou a trans Tertuliana Lustosa, de 19 anos, baiana de Salvador, performer do Coletivo Seus Putos, universitária da Uerj, professora de História da Arte no PreparaNem. “A militância na TransRevolução me trouxe”, justificou. A jornalista Camila Marins, de 31 anos, voluntária, cumpriu caminho parecido. “Fui atraída por Indianara, de quem me tornei amiga em manifestações”, lembrava, pouco antes de seu breve e contundente discurso: “Aprendo muito mais com as travestis e as putas do que em qualquer escola ou espaço”.
Por falar em espaço, também é missão do PreparaNem disseminar a ideia de que sua comunidade-alvo tem o direito, sim, de ocupar qualquer ambiente. Assim, em 2015, as aulas foram ministradas cada dia num lugar diferente: às segundas-feiras, na Casa Nuvem, residência artística e cultural, na Lapa; às terças, no Sindicato dos Petroleiros, na Avenida Passos, no Centro; às quartas, no Sindicato dos Jornalistas, na Rua Evaristo da Veiga, na Cinelândia; às quintas, no Espaço Plínio, também na Lapa, centro de culto à memória de Plínio de Arruda Sampaio (1930-1914), advogado, ativista político e candidato do PSOL à Presidência em 2010; às sextas, na ONG Pela Vida, na Avenida Rio Branco, no Centro financeiro do Rio. Ideia de Indianara, reverenciada por todos ali.
Embora não lecione, Indianara parece ter sido mesmo a principal “professora” do PreparaNem. Todos – mestres, voluntáries, alunes – rendem-se a seu carisma e à sua liderança. Moradora da Zona Oeste do Rio, não esconde seu ofício de prostituta. Diz que, todos os dias, sai de casa sem saber se volta. “Falo ao meu companheiro antes de sair: não me espere, pode ser que não retorne. Nós, transexuais e travestis, temos a sensação diária de que podemos ser as próximas vítimas da intolerância.”
Ela já foi – e sobreviveu. Nascida e designada menino no Paraná, vivia em Santos, já Indianara, nos anos 1990, quando fundou, em 1995, a ONG Filadélfia, de apoio a travestis e trans. Posou nua para revista. Apareceu na TV. Na cidade, protagonizou campanhas contra a discriminação. Lutou pelo respeito ao nome social de suas iguais em prontuários médicos e pela internação de trans e travestis presas na ala feminina, ou em separado, e que casais LGBT fossem considerados cônjuges e, assim, tivessem acesso a visitas, só permitidas a parentes. Conseguiu tudo isso, mas a exposição atraiu a reação conservadora. Abandonou Santos depois de ser algemada num poste pela polícia, ver uma reprodução de sua foto nua em revista colada numa parede do prédio onde morava e ser ameaçada de morte.
Desde então, está no Rio, onde milita e é exemplo. No fim da formatura, anunciou, com alegria, que, em 2016, filiais do PreparaNem serão abertas em Duque de Caxias, Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e na Zona Oeste carioca. Em seguida, liderou a marcha dos presentes até a Casa Nuvem, ali perto, onde a comemoração multigênero avançou pela madrugada e todos (ou todes) seguiram o conselho dado, havia pouco, pela aluna Bárbara em seu discurso: “Indianarem-se!”
-
Marceu Vieira
Marceu Vieira é jornalista, compositor e, quando pode, ficcionista e cronista do cotidiano. Iniciou-se no jornalismo na extinta "Tribuna da Imprensa" e seguiu na profissão, sempre repórter em tempo integral, nas redações de "O Nacional", "Veja", "Jornal do Brasil", "Época" e "O Globo".
Um comentário em “Uma gota no oceano da exclusão”
Deixe um comentário
Está de parabéns pelo material, muito bom.