ODS 1
Apostilas viajam de barco para salvar ano letivo de alunos isolados e sem internet
Dificuldade de acesso ao ensino em comunidades rurais e ribeirinhas na Amazônia se agravou com a chegada do coronavírus
Quem mora na comunidade Santa Luzia, na zona rural de Manacapuru, no Amazonas, não se vê no mapa. Não consegue nem acessar à internet para fazer essa busca. Para vender, comprar e logar em algum serviço público, a conexão mais próxima é na Colônia Bela Vista, onde só se chega navegando pelo Lago do Imanha, a remo ou de rabeta (pequeno motor de propulsão para barcos).
A principal rede social é a escola mesmo, mas, desde 16 de março, ela ficou fora do ar: um vírus se espalhou e comprometeu os contatos. A única janela aberta para a Educação passou a ser uma apostila de atividades, entregue periodicamente em modo barco delivery.
Sem pandemia, o link com o ensino já era custoso para mais de 30 mil alunos que moram em comunidades rurais ou ribeirinhas. Com a chegada da covid-19, o clique que garantia o aprendizado foi bloqueado. São crianças e adolescentes que compõem uma parcela importante dos 224 mil alunos da rede pública do Amazonas. Mas estão em regiões em que o isolamento social imposto para prevenção não se converteu em um universo virtual, como em muitas cidades brasileiras.
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Veja o que já enviamosO acesso à educação só encontrou alguma linha porque educadores e gestores escolares resolveram navegar, de fato, em via fluvial, para não interromper o ano letivo. Na Escola Estadual Mário Silva D’Almeida, em Manacapuru, cerca de 80% dos 229 alunos moram em comunidades afastadas. Sem aulas presenciais, o jeito foi imprimir o conteúdo e as atividades de todas as disciplinas para os alunos estudarem por conta própria.
Se dependessem de um decreto estadual, os estudantes da zona rural do Amazonas não teriam nada. O único compromisso firmado em lei foi a entrega de cestas básicas, em substituição à merenda escolar. Em razão da pandemia, o governo optou pela interrupção do ensino para as comunidades mais distantes e desconectadas.
Atalho interrompido
São meses de “conexão falha” entre estudantes como Geiliane Ferreira, 18 anos, da comunidade de Santa Luzia. Esse ano, que era o primeiro do Ensino Médio, acabou sendo com todos isolados em casa. E 2020 era para ser de recomeço escolar, de esperança nos estudos; em 2019, Geiliane apresentou um quadro de depressão e abandonou as aulas logo no princípio.
[g1_quote author_name=”Geiliane Ferreira” author_description=”Estudante, sobre a rotina antes da pandemia” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Na seca, a gente pega a canoa, anda por terra, depois pega a canoa de novo até chegar na escola. Na cheia, é direto de barco
[/g1_quote]O que a fez voltar a apostar na Educação, no segundo semestre do ano passado, foram uma visita do gestor e a expectativa de entrar em um curso técnico de enfermagem – nova modalidade a ser oferecida na unidade de Santa Luzia, mas que ainda está no papel. A especialização seria um atalho entre Geiliane e a medicina. Aí veio o coronavírus, e o sonho de cuidar da saúde da comunidade terá que esperar mais um pouco.
Embora consiga chegar na escola via terra firme, por morar na Colônia Bela Vista, Renan Fredson, 17, também está em stand by, na expectativa pela implantação de um projeto para partilhar conhecimentos “répteis”. Apaixonado por biologia e pelo mundo das serpentes, o aluno do primeiro ano do ensino médio impressiona pelo domínio do assunto “cobra”.
Conhece todas as espécies que aparecem no terreno onde mora e ai dos agricultores que quiserem matá-las. Renan mete uma frase que poderia ser um tuíte, se eles estivessem online: “Todo ser vivo tem o seu papel na natureza”. Não é um influencer na internet, mas encanta os colegas e até o professor na escola, que lhe prometeu difundir o conhecimento para além da bolha de Bela Vista. Ficou para depois da pandemia.
Interação a remo
Mesmo com quase todos os alunos offline, o gestor da Escola Mário Silva D’Almeida, Mackson Garcez, comemora quando as apostilas retornam preenchidas . “Se o aluno está fazendo as atividades, ele está participando, está cumprindo com o estabelecido”, considera Garcez, que já contabiliza isso como nota quantitativa e também qualitativa.
Mas, se surgir alguma dúvida, os estudantes cercados por lagoas e igarapés precisam remar até Bela Vista em busca de sinal para mandar aquele torpedo aos professores. Os que têm a sorte de ter um pontinho de internet em casa, geralmente se conectam com muita paciência, bem diferente dos centros urbanos, onde as páginas de pesquisa se abrem em menos de um segundo.
Um dos entregadores do delivery de apostila, o professor Heberton Atayde aproveita quando vai à comunidade ilhada e reúne uns cinco ou seis alunos rapidinho para fazer um tira dúvida, “uma explicaçãozinha para eles acompanharem o conteúdo”. Mas a maioria na escola consegue usar os aplicativos de mensagens para trocar ideias com o educador.
Nem vídeo-aula mais
Antes mesmo da pandemia, as aulas já eram dadas por videoconferência na escola de Manacapuru, região metropolitana de Manaus. Mas os alunos não acessavam de casa, já que muitos não possuem internet. Eles se reuniam na escola para usar a tecnologia e interagiam em tempo real com os professores do outro lado da tela.
Com o coronavírus on e a estrutura física das escolas off, não dava mais para manter as turmas nas salas de aula por causa do contágio. O governo decidiu, então, desligar a conexão com esses alunos. Lá em março, já sinalizou: aula para as comunidades adjacentes só em 2021. Em novembro, por meio de nota, a Secretaria Estadual de Educação do Amazonas informou que os estudantes seguiriam recebendo materiais “para acompanhar os conteúdos que seriam ministrados neste período”.
A unidade Mário Silva D’Almeida conseguiu dar o restart nas atividades presenciais, com adequações como instalação de pias e dispensers para álcool em gel, no fim do mês passado, apenas para aplicação das provas finais e de recuperação. Mas adotou o modo híbrido, com revezamento por turma.
Outro fuso, outra onda
A reportagem faz uso dos jargões da internet para contrastar justamente com a falta de conectividade em zonas ribeirinhas, rurais e periféricas brasileiras. Um país desigual que não garante a todos o direito à comunicação, à tecnologia, à informação e à Educação. Não pensa a sociedade e o ensino de forma heterogênea.
Geilane ia para escola com barco a motor que na cheia consegue transpor o rio Amazona. Na seca, é mais complicado. E isso é desde quando ela começou a estudar, de pequena. Almoçava às 10h30, no fuso horário de Manaus, para iniciar, às 11h, a viagem rumo à sala de aula. “Na seca, a gente pega a canoa, anda por terra, depois pega a canoa de novo até chegar na escola. Na cheia, é direto de barco”.
O trajeto ainda tinha o transporte escolar em terra firme, às 12h15. Na volta para casa, qualquer imprevisto podia significar percorrer o igarapé estreito com o sol se pondo ou no escuro. E, quando chovia, Geiliane curtia menos ainda a navegação. Eram mais de oito quilômetros de canoa por dia de aula, rotina comum para crianças e adolescentes motivadas por um futuro melhor.
Estudo e trabalho
Na zona rural, a semana não é só de estudo, também tem trabalho. Geralmente, os meninos auxiliam os familiares na pesca ou na agricultura, principais fontes de renda da região. As meninas ajudam no serviço doméstico. Mas a escola ganha mais likes.
Jovens como Geiliane e Renan são conscientes da importância de aspirar por uma Educação superior, mas não são a regra nessa linha do tempo. Quando terminam o Ensino Básico, a universidade é algo fora do histórico dessa rede desconectada, onde plantar, colher e pescar é sobrevivência, não metáfora.
“Eu me atrasei muito, repeti duas vezes o primeiro ano [do Ensino Médio] e quero terminar para fazer medicina”, projeta Geiliane. “Já que não pulo de paraquedas e não dirijo moto, meu negócio são os animais. Esse conhecimento, eu vou passar adiante e salvar quantos eu puder”, planeja Renan, que se inspira no biólogo Richard Rasmussen.
Ele só consegue ver os vídeos de Rasmussen, bem como fazer as tarefas da escola, porque paga de R$ 10 a R$ 20 para a prima dar a senha do wifi rural. “Ela colocou uma antena e a gente paga por mês”.
Mobilização escolar
Nada movimenta mais Bela Vista e as comunidades vizinhas do que a Escola Estadual Mário Silva D’Almeida. São 16 servidores e as famílias dos mais de 200 alunos ativos, quase todas beneficiadas pelo Bolsa Família – um dos fatores-chave para manter os estudantes em sala de aula. Têm ainda os transportadores via terrestre e fluvial, vendedores na área externa, entre outros indiretamente envolvidos nessa cadeia econômica.
Ciente do potencial mobilizador da Mario Silva, o gestor Mackson trabalha para incluir novos projetos no espaço, já adiados para 2021. A escola foi a única de campo, em Manacapuru, contemplada pelo Programa Novo Ensino Médio. “Temos um plano de mais de R$ 60 mil aprovado. Já enviamos requerimento para ter cursos de técnico de enfermagem e mecânica na área de manutenção em moto (veículo muito utilizado por lá)”.
São várias unidades básicas de saúde (UBS) na região, “então, futuramente, quem se forma na área, já pode ajudar a comunidade”, explicou Mackson.
O curso está previsto para ser em regime concomitante à escola, no horário da noite. Terminada a aula, o aluno esperaria o ensino técnico e depois o transporte o levaria em casa. Manacapuru aguarda o upload em 2021…
**O repórter Bruno Tadeu faz parte do Lição de Casa, projeto jornalístico para acompanhar os impactos da pandemia do coronavírus na educação brasileira
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Bruno Tadeu é repórter e mora no Amazonas. Já trabalhou nos jornais Diário do Amazonas e A Crítica, ambos em Manaus, e como repórter correspondente do Estadão, de São Paulo, desde 2014. Publicou reportagens nas editorias de esportes, cidades, economia e sobre assuntos locais de interesse nacional.