ODS 1
#RioéRua: o fim do Villarino e a agonia do Centro

Fim da casa onde Vinicius e Tom começaram a construir sua parceria alerta para a dramática situação provocada pela pandemia na área central da cidade

Não me surpreendi com o fechamento da Casa Villarino, que vivia a mesma agonia de todos os estabelecimentos do Centro do Rio – principalmente na área conhecida como Castelo, onde ficou um dia o morro do mesmo nome onde o Rio de Janeiro começou a virar cidade no século XIV. Há quase 100 anos, o morro veio abaixo e área começou a ser urbanizada. Vieram os prédios dos ministérios – Fazenda, Trabalho, Educação – e também muitos edifícios residenciais, os mais valorizados, com a vista para a Baía de Guanabara. Em meados do século passado, a proximidade da Cinelândia e de clubes – Aeronáutico, Ginástico Português, Clube Militar – atraíam moradores: Manoel Bandeira, Cândido Portinari, Edgard Roquette-Pinto. Havia ainda padarias, açougues e farmácias típicas de bairros residenciais – e bares e restaurantes.

Foi nessa região e nessa época que a Casa Villarino, fundada por espanhóis, foi aberta em 1953. Foi ali que, no verão de 1956, o poeta Vinicius de Moraes, ainda embaixador, tomava seu uísque com os jornalistas Lúcio Rangel e Haroldo Barbosa e contava como estava em busca de alguém para cuidar da parte musical da montagem da sua versão teatral para a história de Orfeu, da mitologia grega. Rangel não apenas sugeriu o nome do jovem Antonio Carlos Jobim, como foi buscar Tom, que estava em outra mesa para apresentá-lo, formalmente, a Vinicius. O encontro colocou o Villarino na história da MPB: os dois compuseram – não, não foi na mesa do bar – as músicas de Orfeu da Conceição e os sucessos da Bossa Nova e passaram a formar mais famosa parceria da nossa música.
Na mesma área, nas imediações da Esplanada do Castelo, ficavam outros redutos da boemia carioca. A Casa Pardelas, parecia apenas um armazém com frutas, biscoitos, doces e outros produtos comestíveis e de limpeza na parte da frente; mas era o bar, escondido na parte de trás, e seu uísque que garantiam a fama do estabelecimento na esquina da ruas México e Santa Luzia. Na Araújo Porto Alegre, funcionava o Vermelhinho com suas cadeiras de palha na calçada disputadas pelos alunos e professores da Escola de Belas Artes e pelos intelectuais e jornalistas da Associação Brasileira de Imprensa. No Paisano, restaurante na Rio Branco, iam o pessoal da noite da Cinelândia.
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Nenhum deles existia mais quando voltei ao Rio, depois de oito anos em Salvador, recomecei a trabalhar no Castelo, a duas quadras da Casa Villarino, passagem obrigatória no meu caminho entre o escritório e a estação Cinelândia do metrô. Os proprietários – os espanhóis venderam o bar a funcionários e um deles, Antonio Vazquez, tocou o negócio, passado aos descendentes – mantiveram o mesmo clima de mercearia da inauguração, mesas com tampo de mármore no restaurante, cantinho de homenagem a Vinicius, Tom e o Orfeu da Conceição. O cenário foi cuidado para manter o ambiente bossa nova. Não fiquei freguês porque o preço do uísque era proibitivo mas almocei lá algumas vezes. A comida prosseguia honesta e o serviço atencioso.

A Casa Villarino enfrentou galhardamente a crise. Mudou alguma coisa no cardápio para incorporar pratos executivos com preços mais em conta e pratos do dia com nomes em homenagem a fregueses – sem abandonar o menu mais tradicional. Criou uma happy hour, espalhando mesas altas sem cadeiras pela calçada da Presidente Wilson e servindo cervejas industriais e artesanais em promoção e com música para os fregueses. Às quintas e sextas, principalmente, a calçada e suas mesas passaram a ficar tomadas por rapazes e moças, com aquele jeito entre relaxado e excitado de quem acaba de deixar a empresa ou o escritório de advocacia.

A pandemia atingiu em cheio o Centro do Rio e nenhuma parte foi mais afetada que o Castelo – hoje quase totalmente de ocupação comercial. Empresas e escritórios de advocacia e de contabilidade estão fechados – o trabalho é feito de casa e nada indica que vai mudar – empregadores descobriram que sai muito mais barato deixar os empregados em suas residências. O Castelo virou um deserto de restaurantes e outros estabelecimentos fechados. Poucos ainda resistem nesta área do Centro: em outros pontos, a situação também é dramática. De acordo com o Sindicato dos Bares e Restaurantes do Rio, dos 1.200 bares e restaurantes da região, 480 já fecharam as portas até agora e outros devem ter o mesmo destino. A reabertura do comércio melhorou um pouco a situação em algumas áreas do Centro, mas, no Castelo de escritórios e empresas, o cenário é desolador: as calçadas estão tomadas por moradores, cada vez mais numerosos.

A agonia do Centro, trazida ou acelerada pela pandemia, impõe ações do Poder Pública para uma retomada do uso residencial em todo o bairro – e, particularmente, na área do Castelo, onde muitos edifícios construídos originalmente para residências passaram a ter uso comercial ou misto – o próprio prédio onde a Casa Villarino ocupa lojas no térreo é assim. Se o Rio voltar a ter prefeito, essa agenda é obrigatória: o Centro é a história e o coração da cidade e precisa voltar a bater com força.
#RioéRua

Oscar Valporto
Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade