ODS 1
Apanhadoras de flores do Brasil conquistam reconhecimento internacional
Comunidades tradicionais de MG recebem o selo GIAHS, concedido pela FAO a grupos que preservam técnicas ancestrais de manejo da natureza
(Fotos de João Roberto Ripper) – Quase não deu tempo. Na véspera do anúncio da pandemia no Brasil, a atividade das apanhadoras de flores sempre-vivas da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, recebeu, em solenidade em Brasília, o reconhecimento da FAO, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, como Sistema de Patrimônio Agrícola de Importância Global (GIAHS, na sigla em inglês). No dia seguinte, 12 de março de 2020, o País admitia oficialmente que a pandemia chegara ao Brasil e logo depois iniciava-se a quarentena.
O novo contexto, porém, não impediu que as comunidades agraciadas deixassem de cumprir seu papel de guardiães da biodiversidade no Planeta, pela preservação, por meio de práticas ancestrais, de um ecossistema rico e único em toda a Terra. Título do qual se orgulham e que fizeram por merecer, por seu trabalho de conservação ambiental, social e cultural, passado de geração em geração.
O Sistema Agrícola Tradicional (SAT) das apanhadoras de flores sempre-vivas da Serra do Espinhaço é múltiplo e diverso, mantendo uma relação ambientalmente sustentável com a natureza, que engloba práticas de cultivo, de coleta e de criação de gado. Também preserva a cultura e modos de relações sociais embasados nas três principais matrizes do povo brasileiro – as raízes afro, lusitana e indígena.
Essas características, entre outras, contribuíram para que seis comunidades rurais do Vale do Jequitinhonha alcançassem o reconhecimento da FAO como patrimônio ambiental mundial. Foram contempladas as comunidades de Vargem do Inhaí, Mata dos Crioulos e Macacos, em Diamantina; Pé de Serra e Lavras, em Buenópolis; e o povoado de Raiz, em Presidente Kubitschek.
Sistemas únicos no planeta preservam práticas ancestrais
Os SATs são sistemas únicos em todo o planeta e devem possuir uma paisagem diferenciada, rica biodiversidade, além de contribuir para a segurança alimentar das comunidades e seu entorno, utilizando-se de práticas ancestrais, preservando a identidade social e cultural das populações envolvidas.
Com a conquista do GIAHS pelas apanhadoras de sempre-vivas, o Brasil, agora, integra o seleto grupo de 22 nações que fazem jus à honraria, a maioria localizada na Ásia. Na América Latina, até então, apenas Chile, Peru e México detinham o selo.
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Veja o que já enviamosPara alcançar esse feito, as apanhadoras de flores percorreram um longo caminho, iniciado em 2016, com apoio de organizações não governamentais e de pesquisadores das Universidades Federais de Minas Gerais (UFMG), do Vale do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), de Juiz de Fora (UFJF) e da Universidade de São Paulo (USP), responsáveis pela elaboração de dossiê técnico-científico apresentado à FAO.
A candidatura contou, também, com a parceria de órgãos do poder público, como Embrapa e Emater-MG, empresas nacional e estadual de pesquisa agropecuária e apoio em extensão rural, além do Instituto Nacional de Patrimônio Histórico e Cultural (Iphan) e Instituto Estadual de Patrimônio Histórico de Minas Gerais (Iepha). Todos esses parceiros se associaram à Codecex, a Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas da Serra do Espinhaço, sediada em Diamantina. A entidade, que em março completou dez anos, recebeu o selo da FAO como um presente.
“Esse selo é consequência de um processo de luta e não conseguiríamos chegar a esse resultado sem os parceiros, mas a caminhada é nossa, as comunidades tradicionais protagonizaram esse processo”, orgulha-se a apanhadora de flores Maria de Fátima Alves, a Tatinha, uma das lideranças da Codecex.
Plano de Conservação Dinâmica
Segundo ela, a mudança de governo nos dois níveis não prejudicou o encaminhamento da candidatura. Em janeiro de 2018, as comunidades receberam a visita de um técnico da FAO, quando o governo estadual se comprometeu oficialmente a acompanhar o processo, conforme exigência do organismo internacional. Em novembro último foi entregue o dossiê técnico-científico. Agora, cabe às comunidades e à Codecex o desafio de cumprir o Plano de Conservação Dinâmica (PCD), colocando em prática os compromissos assumidos com a FAO.
A técnica da Codecex avalia ainda que a obtenção do selo pelas apanhadoras de flores foi “um ganho para todos os povos tradicionais do Brasil”, abrindo espaço para outras candidaturas. Lamenta, porém, que, apesar dos apoios, as comunidades ainda encontrem “pedras no caminho”. Entre as dificuldades, relata atritos com alguns órgãos ambientais públicos que não reconhecem o papel das apanhadoras de sempre-vivas como guardiães do ecossistema. As mineradoras e outros grandes empreendimentos também são entraves a serem superados, aponta.
A pesquisadora Fernanda Monteiro, da USP, ressalta que o importante, agora, é garantir a regularização fundiária das terras ocupadas pelas comunidades, de forma a preservar esses sistemas dos interesses privados e da criminalização.
A defesa é feita também por outros estudiosos, como o professor Claudenir Fávaro, do Núcleo de Estudos em Agroecologia e Campesinato, da UFVJM, Marcia Campanharo, da Emater, e Márcia Betânia, secretária municipal de Cultura de Diamantina.
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Ligia Coelho
É jornalista há mais de 40 anos. Entre outros veículos, passou pelo jornal Última Hora, TV Manchete e assessorias de imprensa. Trabalhou como jornalista concursada da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, de onde se aposentou após dez anos. Em 2002, venceu o Concurso de Monografias Giovanni Falcone, na categoria jornalista, promovido pela Associação de Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj), sobre o tema “Direito à privacidade e liberdade de expressão”.