Diário da Covid-19: doença avança sobre indígenas de norte a sul do Brasil

Na Amazônia, a taxa de mortes por 100 mil habitantes é 150% mais alta que a média do Brasil e supera em 20% o índice de óbitos na Região Norte

Por Oscar Valporto | ODS 16ODS 3 • Publicada em 26 de junho de 2020 - 21:11 • Atualizada em 19 de dezembro de 2021 - 11:49

Técnicos da Sesai orientam indígenas sobre prevenção da covid-19: doença avança entre povos de norte a sul do Brasil (Foto: Ministério da Saúde)
Quando a primeira morte de um indígena pela covid-19 foi registrada pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), no dia 10 de abril, já havia pelo menos três óbitos apontados pelas entidades com base na Amazônia. Desde então, esses números jamais se encontraram: no boletim desta sexta-feira, a Sesai, que nunca deixou de fazer balanços diários mesmo quando houve o apagão de números no Ministério da Saúde, contava 5.412 casos e 132 mortes; a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) registrava até o levantamento do dia 24/06, 8.066 casos (49% a mais) e 359 óbitos, quase três vezes (172% a mais). O avanço da covid-19 entre os indígenas – pelas contas da Apib – chega a 112 etnias (111 brasileiras, mais a etnia Warao, venezuelanos refugiados em nosso país): eram apenas 44 atingidas um mês atrás.
 
A diferença tem como explicação principal o fato de a Sesai só considerar os indígenas aldeados, que vivem em territórios atendidos pels Dseis (Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena. Nas contas da Apib e do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, formado por várias entidades, entram também vítimas que vivem em áreas urbanas e foram atendidas diretamente pelo SUS. Os indígenas, suas entidades e especialistas alertam para a falta de ações emergenciais do governo para evitar que povos sejam dizimados. São os caciques e outras lideranças que vem estabelecendo restrições de circulação e outras medidas para tentar evitar o contágio, principalmente na Amazônia. Neste ponto, Sesai e Apib concordam: a Região Amazônica concentra a maioria dos casos de covid-19 entre os indígenas brasileiros.
 
Os números da Sesai estão divididos por número de casos pelos seus distritos sanitários. A área com maior número de casos é o Alto Rio Solimões, com 600 infectados: o distrito atende sete municípios do Amazonas onde vivem 70 mil indígenas, de 27 etnias. Na sequência, em número de casos de covid-19, estão os DSEIs Maranhão, com 540; Rio Tapajós, no Pará, com 466, e Guamá-Tocantins, tabém no Pará, com 442. Os dados sobre óbitos mostram a mesma concentração no Alto Rio Solimões onde a Sesai conta 24 vítimas fatais: seguem-se registros de mortes nos DSEIs Leste Roraima (11), Alto Rio Negro (10), Guamá-Tocantins (10), Maranhão (10) e Rio Tapajós (10). Os dados da Apib são separados por estados: são 152 mortes registradas no Amazonas, 67 no Pará,  e 41 em Roraima. De acordo com levantamento junto às secretarias estaduais, 19 unidades da federação já registram casos de covid-19 entre indígenas.
 
Letalidade em alta na Amazônia
Os números alarmantes na Região Amazônica levaram o IPAM (Instituto de Pesquisa da Amazônia) a realizar uma pesquisa, em parceria com a Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), constatando que a taxa de infecção pela doença por 100 mil habitantes entre os indígenas é 84% mais alta do que a taxa do Brasil.  Já a taxa de mortes por 100 mil habitantes revela um cenário ainda mais preocupante: de acordo com o IPAM, a taxa é 150% mais alta que a média do Brasil e supera em 20% a incidência de falecimentos por conta da doença na Região Norte do país. A taxa de letalidade (número de óbitos pelo número de casos confirmados) foi de 6,8% entre os indígenas na Amazônia, expressivamente alta frente aquelas registradas para o Brasil (5%) e para a região Norte (4,5%).
 
A pesquisa – concluída com números até 14 de junho e divulgada esta semana – aponta que casos de covid-19 aumentaram consideravelmente entre a população indígena da Amazônia. Desde o primeiro caso oficialmente notificado, no começo de abril, a Sesai registrou 2.219 casos, enquanto o levantamento da Coiab contabilizou 1.443 adicionais, totalizando 3.662 casos confirmados: o que indicaria uma  subnotificação oficial de 39%. “Esta subnotificação no número de óbitos é consequência, não só, mas também do protocolo oficial que exclui indígenas residentes, mesmo que temporariamente, nas cidades. Neste caso, a SESAI reportou 65% (86) do total dos 249 falecimentos apurados pela Coiab até o dia 14 de junho de 2020”, destaca nota técnica, divulgada pelos pesquisadores do IPAM.
 
Só no Amazonas, de acordo com dados da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS), 1034 indígenas foram diagnosticados com a covid-19. Além dos casos registrados nos sete distritos sanitários da Sesai no estado, a FVS registrou 204 casos e sete mortos em Manaus. De acordo com reportagem da BBC Brasil, no sudeste do Pará, a covid-19 matou 22 indígenas nas últimas semanas, além de ter infectado pelo menos 638 outros integrantes de 12 povos. Ações locais exemplificam a discrepância de dados: há duas semanas, a Prefeitura de Marabá realizou testes rápidos na TI Sororó, da etnia Aikewara, e identificou 134 pessoas com coronavírus; na mesma época, a Sesai havia identificado somente oito casos de covid-19 na TI Sororó. Em Guajará-Mirim, onde está a maior população indígena de Rondônia com seis mil pessoas, será aberto semana que vem um hospital de campanha após o registro de 54 casos em nove aldeias. De 
 
Vó Bernal, idosa indígena que morreu de covid-19 em Roraima: taxa de letalidade entre indígenas é maior que a do país e da região (Foto: Apib)
Vó Bernal, idosa indígena que morreu de covid-19 em Roraima: taxa de letalidade entre indígenas é maior que a do país e da região (Foto: Apib)

Pelos registros das entidades indígenas, a última morte foi registrada no Hospital Geral de Roraima, na quarta-feira à noite: Bernaldina Macuxi, de 75 anos, conhecida como Vó Bernal, da comunidade indígena Maturuca, da terra indígena Raposa Serra do Sol. Na véspera, o Conselho Indigenista de Roraima comunicou a morte do líder da etnia taurepang João Luis Nazareno Lima, de 62 anos. De acordo com dados da Coiab, 42 indígenas já morreram no estado.

 
Vítimas de norte a sul do país
 
Pelos dados da Sesai, atualizados na noite de quinta-feira, o último óbito foi de um indígena de 82 anos, da etnia Kaingang, no Rio Grande do Sul. Morador de aldeia do município de Planalto, no noroeste do estado, o ancião passou mais de um mês internado antes de morrer no fim de semana passado. Os dois registros anteriores de morte feitos pela secretaria indígena do Ministério da Saúde eram da mesma etnia: duas mulheres – uma de 96 anos, a outra de 76 anos, ambas moradoras de aldeia no município catarinense de Ipuaçu. No Paraná, a aldeia indígena Avá-Guarani Tekoha Ocoy, no município de São Miguel do Iguaçu, no oeste do estado, 13 indígenas testaram positivo para a Covid-19 – a aldeia, que tem 210 moradores, está isolada e equipe do governo estadual fizeram desinfecção de casas, escolas, postos de saúde e espaços de convivência.
 
No Rio de Janeiro, o cacique Domingos da Aldeia Sapukai, em Angra dos Reis, no sul do estado, está internado com covid-19 na UTI do Hospital da Santa Casa: seu estado é grave. Outros três indígenas da mesma aldeia também estão internados no hospital. De acordo com a secretaria municipal de Saúde, há mais de 40 registros do novo coronavírus na comunidade indígena. Em São Paulo, a Comissão Pró-Índio afirma que o estado tem mais de 300 casos; são pelo menos sete mortos pelos registros da Apib . Município com maior número de casos de covid-19 em Mato Grosso do Sul, Dourados registra 131 casos na reserva indígena – com maioria da etnia guarani-kaiowá. Um indígena já morreu.
 
A população indígena brasileira é de quase 800 mil pessoas distribuídas em quase 6 mil aldeias -são 308 etnias. A Secretaria Especial de Saúde Indígena é a responsável pela atenção primária a estas comunidades por meio de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), com 14 mil profissionais distribuídos em 367 Polos Bases, 67 CASAIs (Casa de Saúde Indígena) e 1199 UBSI (Unidade Básica de Saúde Indígena).
 
E na vizinhança também
 
De acordo com levantamento da Coica (Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica – Coordenadora das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica), foram registrados casos de covid-19 em todos os países amazônicos: além do Brasil, já haviam sido registrados Bolívia, Colômbia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Equador e Suriname. Os dados do boletim semanal da Coica do dia 24 de junho apontavam para um total de 11.375 casos e 780 mortes entre as populações indígenas. Pelo menos, 147 povos indígenas registraram infectados pelo novo coronavírus. Em uma semana, houve um aumento de 2.642 casos e 84 mortos.
Levantamento da Coica - Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônia) - mostra o avanço da covid-19 entre indígenas em todos os países amazônicos
Levantamento da Coica – Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônia) – mostra o avanço da covid-19 entre indígenas em todos os países amazônicos

O Peru tem o maior número de mortes indígenas (369), com 3.169 casos no total. Na Amazônia peruana, a maioria dos casos de covid-19 foi registrada entre os povos indígenas, segundo dados da Coica. Em todo o país, as mortes indígenas de covid-19 representam 4% de todos os óbitos. Depois de Brasil e Peru, a Colômbia tinha o maior número de infectados entre os povos indígenas: 2.208 casos – número alto já que o país está as nações sul-americana pandemia com relativamente sucesso. A Coica aponta 25 mortes de indígenas, a maioria no município de Letícia, na fronteira amazônica com Brasil e Peru, que registrou, pelo menos, 12 óbitos em comunidades indígenas colombianas. Na Bolívia, a Coica registrou 155 e 57 mortes – o que significaria de taxa de mortalidade de 35%. No Equador, foram diagnosticados 649 casos de covid-19 entre indígenas, com 33 óbitos – uma taxa de mortalidade de 5,5%. 

Frase do dia 27 de maio
“Se o homem continuar a destruir a terra, os ventos voltarão com mais força, não somente uma vez, mas várias vezes, cedo ou tarde. Esses ventos vão nos destruir”
Raoni Metuktire – cacique caiapó em entrevista na Conexão Planeta
 

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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