ODS 1
A alegria profana de Nossa Senhora de Nazaré
No lado B da romaria sagrada do Círio, a vaidade, o orgulho e a irreverência do Boi Pavulagem
Na floresta encantada, os rios se encontram, a lua clareia a mata, as estrelas brincam no céu, a música singra as águas doces de canoa. Os ancestrais, negros e índios, dão passagem. Marcam passo e compasso no tambor e na cuíca. As mulheres com suas saias rodadas, seus chapéus de palha com fitas coloridas, puxam o cortejo. E os bois bumbam de alegria. Tudo isso acontece sob as bênçãos de santos e orixás, espíritos de uma natureza vigorosa, banhada pelo sol inclemente e pela dança dos ventos. Estamos na Amazônia, em Belém do Pará, uma cidade enfeitiçada pela devoção à Nossa Senhora de Nazaré, na festa do Círio, que anualmente, no mês de outubro, arrasta pra mais de milhão de romeiros, gente de todo lugar. E é ali que o encantamento ganha forma, cor e som. Atende pelo nome de Boi Pavulagem.
[g1_quote author_name=”Júnior Soares” author_description=”Músico e um dos fundadores do Arrastão” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O nosso Arrastão foi uma forma de resistir a essa invasão cultural, de outros centros, de dizer para o povo paraense que nós temos uma identidade que pode nos unir em torno de algo sagrado que é a cultura popular
[/g1_quote]Ele é o que o nome sugere: vaidoso, metido a besta, orgulhoso, irreverente e muito, muito feliz. É o espírito folião do Pavulagem o regente da manifestação profana que faz o contraponto da romaria sagrada de Nossa Senhora de Nazaré, a Rainha da Amazônia. Manhã de sábado, o sol já está alto no animado Cais do Porto de Belém, onde uma multidão aguarda a chegada da romaria fluvial que traz em um de seus barcos a Imagem Peregrina da Nazinha. Quando a Santa ganha a rua, a multidão faz silêncio, estende os braços e uma vibração – zuuuummm – atravessa o ar. É hora de pedir e agradecer. Dali, Nazinha seguirá para o seu Santuário, escoltada por Moto Romaria.
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Devidamente abençoada pela Nossa Senhora de todos os rios e todos os risos, está aberta a festa do Arrastão do Pavulagem, que toma outra direção. Pelas ruas arborizadas de Belém, vai beirando o rio Guamá, reverencia o mercado popular do Ver-o-Peso, até chegar à Praça do Carmo, no coração da Cidade Velha. No cortejo, uma tradição de 32 anos, desfilam a identidade cultural da Amazônia em mais de 200 anos de história.
Quem nos conta é o músico Júnior Soares, da banda Arraial do Pavulagem, um dos fundadores do Arrastão: “Somos um grupo de músicos, com trabalho autoral muito intenso e, no início, nossa intenção com o Arrastão era apenas formar plateia. A música paraense, muito envolvida com a dança, não tinha público. E de certa forma ainda hoje não tem. A música exógena, de outros centros culturais, que chega através da mídia, como o sertanejo e o funk, é muito mais forte. E o nosso Arrastão foi uma forma de resistir a essa invasão cultural, de dizer para o povo paraense que nós temos uma identidade que pode nos unir em torno de algo sagrado que é a cultura popular”.
O povo entendeu e segue o Arrastão, formado por 200 percussionistas, 130 brincantes, dançarinos, 60 pernas de pau e uma orquestra de metais – sax, trompete e trombone – de 15 músicos de Cachoeira de Arari, em Marajó, que bebem na fonte das grandes lendas e festas regionais, como a Marujada de São Benedito, o Boi Bumbá e os folguedos de junho, em homenagem a São Pedro, Santo Antônio e São João.
“Os instrumentos, todos étnicos, são fabricados em bambu, artesanalmente, no Instituto do Arraial do Pavulagem, entidade sem fins lucrativos, que cuida da gestão de oficinas de formação, palestras, seminários, pesquisas, projetos de extensão, rodas cantadas, ensaios, mostras e shows. Os nomes são peculiares. Barrica de boi, tambor-onça, caixa de marabaixo (originária do Amapá), alfaia (típica do Maracatu, muito encontrada no Nordeste), maraca e ficheiro”, ensina Junior Soares.
O Arrastão do Pavulagem ganha as ruas de Belém cinco vezes ao ano. Nos três últimos domingos de junho, no primeiro domingo de julho e no sábado anterior ao Círio de Nazaré, em outubro. É uma festa livre, que se vale de diferentes ritmos locais. O xote, a toada, o retumbão e até a mazurca, trazida há 200 anos da Europa, embalam o cordão. E, claro, não podia faltar o lendário carimbó, há cinco anos declarado patrimônio cultural brasileiro, pelo Iphan, a exemplo do frevo de Pernambuco.
“As músicas são composições da banda, com oito discos gravados. A dança acompanha. Há 20 anos passamos a formar nossos brincantes, percursionistas, ritmistas e dançarinos. Para trazer as pessoas, fazê-las entender, encantar, é impossível não usar a dança. O ano inteiro a gente faz oficinas de percussão, de danças populares da Amazônia, pernas de pau e de canto. A gente ensina as pessoas a cantarem nossas músicas. A cada formato, a gente tem 400 pessoas cantando as nossas músicas”, segue contando.
Para financiar suas atividades, o Instituto contou mais uma vez com o apoio da Vale, que patrocina o Pavulagem há 18 anos. Para 2019, a expectativa da comunidade é captar R$ 300 mil, mediante projeto elaborado para a Lei Rouanet. Isso, claro, se os ventos que sopram contrários à cultura não jogarem os sonhos por terra.
Tributo e honraria
Quem sai no Arrastão do Pavulagem integra o chamado Batalhão da Estrela de São João. Fazer parte do batalhão, denominação clássica de brincantes dos grupos tradicionais de boi bumbá, é por si só uma honraria, que, no caso do Pavulagem, faz seu tributo a São João Batista, simbolizado pela estrela azul. Nos folguedos de junho, os brincantes desfilam com o boi bumbá, os cavalinhos e os cabeçudos, bonecos de papel maché, usados pelas crianças, que lembram os mamulengos de Olinda, em versão baixa estatura. No cortejo de outubro, os brincantes saem empunhando barquinhos de miriti, alegorias de mão que celebram os brinquedos populares feitos da palmeira nativa de áreas alagadiças do Pará e conduzem a barca “Rainha das Águas”, em tamanho natural, feita deste material leve e durável, conhecido como o isopor natural da Amazônia.
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Cristina Chacel
Jornalista e escritora, atuou nos principais jornais do Rio de Janeiro. Há 20 anos trabalha como freelance, com criação de textos jornalísticos e institucionais e projetos sociais e solidários. É autora de dezenas de livros, entre eles "Rio de cantos mil", com fotos de Custodio Coimbra.
Nota da redação: Cristina Chacel morreu em 2020.