Frankenstein e o ‘monstro’ do aquecimento global

Quase 200 anos depois, livro de Mary Shelley continua atual e provoca reflexões

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 13ODS 9 • Publicada em 17 de outubro de 2017 - 17:54 • Atualizada em 18 de outubro de 2017 - 12:40

Victor Frankenstein e a sua famosa criação. Foto Hammer Flimes
Victor Frankenstein e a sua famosa criação. Foto Hammer Flimes/Divulgação
Victor Frankenstein e a sua famosa criação. Foto Hammer Flimes/Divulgação

Uma grande erupção vulcânica no Monte Tambora, nas Índias Orientais Holandesas (atual Indonésia), abalou o planeta, em abril de 1815. A explosão matou imediatamente dezenas de milhares de pessoas, outras morreram de fome e uma nuvem gigante de partículas minúsculas se espalhou pelo globo, bloqueando a luz solar, o que provocou três anos de esfriamento planetário. Os efeitos ambientais foram tão extremos que houve declínio econômico, difusão de doenças e diversas revoltas populares pelo mundo. Como consequência, 1816 ficou conhecido como “o ano sem verão”.

O resultado inesperado e não antecipado desse evento natural extremo foi a concepção do livro “Frankenstein, ou o moderno Prometeu”. Na verdade, o clima excepcionalmente frio de 1816 foi o responsável indireto pela criação da magnífica obra de Mary Shelley, a filha do filósofo iluminista William Godwin (1756-1836) e da pioneira do feminismo moderno, Mary Wollstonecraft (1759-1797) .

[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]

Frankenstein é um alerta sobre os perigos de uma ciência arrogante e exagerada que desencadeia forças que não pode controlar. O livro de Mary Shelley inova ao trazer uma crítica ao iluminismo, não pelo lado conservador, mas pelas consequências não antecipadas do efetivo sucesso da racionalidade.

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos
[/g1_quote]

Em junho de 1816, com apenas 18 anos de idade, Mary Wollstonecraft Godwin (30/08/1797 – 01/02/1851) acompanhou o seu futuro marido, o poeta Percy Shelley (1792-1822), o médico e escritor John Polidori (1795-1821) e o famoso poeta Lord Byron (1788-1824) a uma viagem de férias à Suíça. O quarteto britânico ficou hospedado na Villa Diodati, nas cercanias do lago Genebra.

Em decorrência do verão atípico – o tempo estava frio, chuvoso e desagradável – o grupo permaneceu em casa por vários dias. Nas palavras de Mary Shelley – como relatado na introdução da edição de 1831 – “Caíram em nossas mãos alguns volumes de histórias de fantasmas”. Para passar o tempo, Lord Byron propôs: “Cada um de nós vai escrever uma história de fantasmas”. Polidori escreveu o conto “O Vampiro”.

O livro de Mary Shelley , a primeira edição foi lançada em janeiro de 1818. Foto reprodução
O livro de Mary Shelley , a primeira edição foi lançada em janeiro de 1818. Foto reprodução

A “adolescente” (e única mulher do grupo) desejava escrever uma história “que falasse aos misteriosos medos de nossa natureza e despertasse um espantoso horror – capaz de fazer o leitor olhar em torno amedrontado, capaz de gelar o seu sangue e acelerar os batimentos do seu coração”. Mas, durante dias, sentiu uma “total incapacidade de invenção”.

Muitas e longas conversas aconteciam na hospedagem da Villa Diodati. Durante uma discussão filosófica, entre Lord Byron e Percy Shelley, foi abordado o princípio da vida e a possibilidade de ele ser descoberto e colocado em prática. Eles falavam das experiências ocorridas em Londres, com base nos ensinamentos de Luigi Galvani sobre a influência da eletricidade sobre o sistema nervoso (galvanismo). Mary “assistia como ouvinte devota, mas silenciosa”.

Após a conversação e já tarde da noite, Mary foi para a cama mas não conseguiu dormir. Assim que colocou a cabeça sobre o travesseiro, sua imaginação se iluminou e ela conseguiu desenhar todas as principais cenas do livro Frankenstein, com as consequências espantosas da “tentativa humana para imitar o estupendo mecanismo do Criador do mundo”.

Horrorizada com sua própria imaginação, Mary percebeu que sua história assustadora era exatamente aquilo que aterrorizaria os leitores, conforme proposto na encomenda de Byron. No princípio, Mary pensou em escrever apenas algumas páginas, mas, incentivada por Shelley, ela decidiu ampliar seu insight e escrever o livro “Frankenstein”, ao longo do segundo semestre de 1816 e nos primeiros meses de 1817. A primeira edição do livro foi publicada em 01 de janeiro de 1818. Portanto, completará 200 anos no próximo réveillon.

O livro da garota Mary Shelley é uma obra prima da literatura inglesa e mundial, com uma profunda mensagem filosófica.  Escrito nos primórdios da Revolução Industrial, ele se mantém eternamente atual, pois aborda o princípio da vida e os limites da Razão. Recentemente, o Massachusetts Institute of Technology (MIT), em Boston, realizou um seminário para comemorar os 200 anos de “Frankenstein” e recordar a importância da crítica à racionalidade instrumental dos pesquisadores, nestes tempos em que a ciência trabalha em tecnologias para viabilizar a clonagem e o aperfeiçoamento genético na direção de uma raça superior, os transumanos imortais.

Antes de mais nada, é preciso esclarecer duas coisas sobre o conteúdo e o título do livro: “Frankenstein, ou o moderno Prometeu”.

Victor Frankenstein era um cidadão suíço de classe média alta, morador de Genebra, que, desde criança, tinha paixão pelas ciências naturais e estudava as obras dos alquimistas medievais – Cornelius Agrippa (1486-1535) e Paracelso (1493-1541). Aos 17 anos, por incentivo do pai, foi estudar química na universidade de Ingolstadt, na Alemanha. Imbuído da ideia de fazer algo memorável para a humanidade, se dedicou com afinco à bibliografia e à tecnologia mais avançada da época. Com ajuda do seu professor Waldman, Victor Frankenstein passou dois anos totalmente dedicados ao seu objetivo de entender “o princípio da vida”.

Após incrível esforço, ele conseguiu decifrar, sozinho, a fórmula da criação. Sua autoconfiança lhe deu a certeza de que era capaz de “dar a vida a um animal tão complexo e maravilhoso quanto o ser humano”. Ele juntou partes de cadáveres e montou um corpo largo e de 2,40 metros de altura. Numa noite sombria com a chuva batendo tristemente na janela, tomou os instrumentos que estavam à sua volta e infundiu “a centelha de vida na coisa inerte que jazia aos seus pés”. Frankenstein viu a sua criatura abrir o “olho amarelo” e “respirar com dificuldade”.

Tal como Deus, ele havia conseguido criar um homem. Mas, quase imediatamente, a excitação cedeu lugar ao desespero. De fato, Victor Frankenstein conseguiu dar vida a um material inerte, como Deus criou Adão do barro. Mas sua criação era feia e asquerosa: “uma coisa que nem Dante poderia ter concebido”. Numa espécie de depressão pós-parto, tomado de pavor, Frankenstein, o criador, renegou e abandonou a sua Criatura, sem sequer ter feito o seu batismo. A Criatura, sem nome, gerada pela racionalidade do gênio humano, foi renegada por toda a humanidade e se tornou o monstro mais conhecido da era moderna.

Por que Frankenstein é o moderno Prometeu? Na mitologia grega, Prometeu é o personagem que roubou o fogo aos deuses do Olimpo e o deu ao ser humano, o que lhe assegurou o status de “ser racional” e a superioridade sobre os demais animais da Terra. O fogo representa o conhecimento e o poder que era posse exclusiva dos deuses. Como castigo pela desobediência e ousadia de se comparar aos seres superiores do Olimpo, Zeus ordenou que Prometeu fosse acorrentado no cume do monte Cáucaso, onde todos os dias uma águia dilacerava seu fígado que, logo em seguida, se regenerava. Ou seja, o fogo que Prometeu deu aos humanos (racionalidade) tem lhes proporcionado importantes conquistas  mas, em contrapartida, também derrotas e sofrimento. Desta forma, a analogia entre Frankenstein e Prometeu é evidente.

Mary Shelley também fez outra referência “mitológica” fundamental, quando na epígrafe do livro cita uma passagem do excepcional poema “Paraíso Perdido” (1667), de John Milton, em que Adão questiona a Deus: “Pedi para que me arrancasses das trevas?” Desta forma, a autora relaciona Victor Frankenstein ao Criador e sua Criatura a Adão. Mas um Adão desobediente e ciente do seu querer, que prefere perder o Paraíso a viver uma vida sem o poder orgástico do sabor dos frutos da árvore do conhecimento, condimentado pelo fogo prometeico.

Não temos espaço neste artigo para tratar de toda a trama do magnífico livro de Mary Shelley. Mas o que deflagra uma guerra aberta entre o Criador e a Criatura (isto é, entre Victor Frankenstein e o Monstro) é a recusa do primeiro de aplicar sua técnica para gerar uma fêmea (uma Eva) para o segundo. Mesmo condenado a passar por grandes atribulações pessoais e familiares, Victor Frankenstein se recusa a fornecer uma companheira (esposa) para a sua Criatura, com receio de dar início a uma raça de monstros que poderia colocar em xeque toda a humanidade.

Miseravelmente, Victor Frankenstein paga um alto preço pessoal pela sua ambiciosa tentativa científica de utilizar o fogo prometeico para “dar a vida a um animal tão complexo e maravilhoso quanto o ser humano”. Mas o que Mary Shelley quis mostrar no livro é que a racionalidade humana – tão decantada pelos revolucionários iluministas do século XVIII, em especial os seus pais – pode ser incapaz de gerar sempre bons frutos. Ao invés de alcançar a “perfectibilidade do ser humano”, realça a imperfectibilidade. O retrocesso, ao invés do progresso. O colapso e não a abundância fáustica. Enfim, em vez de um novo ser humano, monstros.

Indubitavelmente, o livro “Frankenstein, ou o moderno Prometeu” é um alerta sobre os perigos de uma ciência arrogante e exagerada que desencadeia forças que não pode controlar. O livro de Mary Shelley inova ao trazer uma crítica ao iluminismo, não pelo lado conservador e tradicionalista de pensadores como Thomas Malthus e Edmund Burke (críticos ferrenhos de seus pais e da Revolução Francesa), mas pelo lado das consequências não antecipadas do efetivo sucesso da racionalidade.

Cena do filme Doutor Frankenstein, de 2015, dirigido por Paul McGuigan, com Daniel Radcliffe e James McAvoy. Foto Alex Bailey/Divulgação
Cena do filme Doutor Frankenstein, de 2015, dirigido por Paul McGuigan, com Daniel Radcliffe e James McAvoy. Foto Alex Bailey/Divulgação

Assim, de forma presciente, o livro permite uma leitura do poder da ciência e da tecnologia como fator modelador de um estilo de desenvolvimento que viola a natureza e a ordem natural do mundo, uma vez que as invenções físicas e químicas podem trazer embutidas blasfêmias, e a bioengenharia genética, perversões. Hoje, é senso comum dizer que as promessas maravilhosas da energia nuclear já traziam embutidos os desastres de Chernobyl, Three Mile Island e Fukushima.

Os críticos dizem que a história seria diferente se Victor Frankenstein e a humanidade tivessem aceitado a Criatura como ela era em sua essência. O problema não estaria nas consequências indesejadas da ciência, mas na aversão da sociedade em relação às diferenças e à alteridade. Nesta interpretação, o fracasso da experiência frankensteiniana teria ocorrido devido à covardia moral de Victor, em função de seu egoísmo e narcisismo exacerbado. Enfim, o erro de Victor Frankenstein não teria sido a sua tentativa de criar um novo ser humano, mas ter renegado a sua Criatura, por mais monstruosa que ela fosse na aparência.

Sem dúvida, a humanidade tem muito mais facilidade de lidar com o sucesso do que com o fracasso e tende a segregar e secundarizar o que difere da norma. Mas o problema é mais grave do que a interpretação acima, pois o pensamento dominante – aquele elaborado pelos “aparelhos ideológicos” das forças sociais hegemônicas – tende a negar as consequências indesejadas do modelo de desenvolvimento e as externalidades negativas do crescimento econômico, gerados pelo avanço da ciência e da tecnologia atrelado ao processo de acumulação de capital e riqueza. Desta forma, seria um equívoco individualizar, na figura de Victor Frankenstein, o choque trazido pelo monstro que ameaça a humanidade.

Por exemplo, 200 anos de crescimento da produção de bens e serviços, de uso generalizado de combustíveis fósseis, de utilização de recursos naturais não renováveis, de geração de lixo, resíduos sólidos e emissão de gases de efeito estufa está gerando o ‘monstro’ do aquecimento global, que por sua vez provoca o degelo do Ártico, da Antártica, da Groelândia e dos glaciares. Cerca de 2 bilhões de pessoas que vivem nas áreas litorâneas estão ameaçadas. Além disto, aumenta a frequência dos eventos climáticos extremos, sendo que os desastres provocados pelos furacões Harvey, Irma e Maria são apenas exemplos, que tendem a ficar cada vez mais frequentes e danosos.

Fazendo uma analogia, podemos dizer que o efeito estufa é a “Criatura” não desejada que surgiu em decorrência de técnicas e métodos de exploração da natureza utilizados para garantir o alto padrão de consumo médio e o bem-estar humano. A temperatura da Terra caminha para o maior nível dos últimos 5 milhões de anos. O aquecimento global do século XXI parece ser o fenômeno horrível – a aberração indesejada – que a humanidade tenta esconder e negar, assim como aconteceu com a Criatura de Victor Frankenstein, no século XIX.

O livro “Frankenstein, ou o moderno Prometeu” começou a ser escrito em um ano frio e “sem verão” e, em seu desfecho, a disputa final entre o Criador e a Criatura aconteceu nas calotas geladas das latitudes polares. Victor Frankenstein morreu, entre os blocos de gelo do Polo Norte, no navio do capitão Walton e a Criatura monstruosa desapareceu no Ártico.

A diferença atual, real e efetiva, em relação à ficção de Mary Shelley, é que, neste momento em que a Europa e o mundo experimentam ondas letais de calor, o ‘monstro’ do aquecimento global não está sucumbindo no frio polar. Ao contrário, está provocando o degelo global e o desaparecimento do gelo do Ártico, com todas as consequências indesejáveis da acidificação dos oceanos e da elevação do nível dos mares.

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

2 comentários “Frankenstein e o ‘monstro’ do aquecimento global

  1. Claudia Lessa disse:

    Excelente análise e matéria que possibilita uma reflexão sobre o desenvolvimento e o progresso da humanidade!
    Agradeço ao autor
    Claudia Lessa

  2. Pingback: Invincible é realmente tudo isso ou estamos apenas dando importância demais para opinião de nerd? – Persona | Crítica Cultural

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *