ODS 1
Prédio do caso Geddel faria sombra na praia da Barra, dizem moradores
Engenheiro que liberou a obra se tornou superintendente do Iphan da Bahia depois da posse de Temer
No pé da Ladeira da Barra, um dos mais conhecidos trechos da Avenida Sete de Setembro, em Salvador, o canteiro de obras do futuro edifício La Vue pode passar despercebido. Dividindo espaço com bens tombados como a Igreja de Santo Antônio, o Outeiro de Santo Antônio e o Forte de Santa Maria, além da visão privilegiada da Baía de Todos os Santos, no Porto da Barra, o canteiro esconde, dos desavisados, um imbróglio envolvendo o condomínio que se arrasta há dois anos e já chegou à Presidência da República.
[g1_quote author_name=”Juca Ferreira” author_description=”Ex-Ministro da Cultura, no seu Facebook” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]As evidências de desmandos eram tantas que, em outubro, determinei a demissão de Carlos Amorim e o prosseguimento das apurações e dos estudos técnicos, que, mais tarde, revelariam até falsificações e montagens grotescas.
[/g1_quote]Considerado de “alto padrão”, o La Vue é bem conhecido por quem mora na Barra – ou, talvez, baste morar em Salvador -, mas despontou no noticiário nacional no último sábado (19), depois que o ex-ministro da Cultura, Marcelo Calero, afirmou, em entrevista à Folha de S. Paulo, que o ministro da Secretaria de Governo, o baiano Geddel Vieira Lima (PMDB), o pressionou para liberar a construção do prédio. O motivo? Geddel comprou um apartamento no prédio, no 19ª andar. Pela denúncia, inclusive, a Comissão de Ética Pública da Presidência abriu um processo para apurar a conduta do baiano.
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Veja o que já enviamosO caso é antigo: começou em 2014, quando a superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) na Bahia autorizou as obras. Agora, após intensa mobilização de entidades da sociedade civil e de moradores da região, o Iphan em Brasília revogou a decisão dos representantes estaduais do órgão e determinou o embargo do empreendimento, depois de ter anulado o parecer original, em fevereiro. Além disso, no último dia 10, o Ministério Público Federal (MPF) na Bahia recomendou a suspensão imediata das obras do edifício e da venda de apartamentos.
O problema não tem a ver com ser um condomínio de luxo. Nos panfletos e anúncios na internet, o La Vue apresenta seus 24 apartamentos – um por andar e cada um com 259 m² de extensão. São quatro suítes, quatro vagas de garagem e mimos como SPA, sauna e piscina de borda infinita. O primeiro apartamento, na verdade, fica no sexto andar – que também está no mesmo nível que a cobertura do prédio em frente. Por R$ 2,5 milhões – ainda que fontes ouvidas pelo #Colabora garantam que, nos andares mais altos, o valor pode chegar a R$ 5 milhões – o empreendimento diz ter ‘vista total para a Baía de Todos os Santos’.
[g1_quote author_name=”Claudia Silva” author_description=”Moradora da região” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Ninguém quer isso aqui. Se fosse uma coisa com limite (de altura), seria maravilhoso. Mas, imagine, você está lá tomando sol na praia e vem a sombra.
[/g1_quote]Aí mora o problema. Em áreas como a Ladeira da Barra, rodeada por bens tombados, existe um limite de altura para qualquer edificação. E, em uma paisagem onde prédios não passam de 12 ou 13 andares, o La Vue destoa por completo. A previsão é de que tivesse 30 pavimentos e 106 metros de altura.
Moradores indignados
Desde então, o terreno onde será o La Vue também passou a chamar mais atenção. “Depois dessa repercussão toda, veio um bocado de repórter aqui. Imagine aí, subir 30 andares por aqui, onde todos os prédios são normais. Mas quem tem poder acha que pode tudo, né? Infelizmente, é isso que a gente está vivendo”, diz o porteiro Jackson de Souza, 28 anos, que trabalha em um prédio que é separado do La Vue por outros dois imóveis. Esse mesmo edifício onde Jackson trabalha tem nove andares.
Moradora da Barra há 20 anos e dona de um salão de beleza no Porto, a empresária Cláudia Silva, 47, conta que, nos últimos meses, o ritmo da obra acelerou. E, com isso, aumentou a preocupação de quem vive e trabalha ali. “Ninguém quer isso aqui. Se fosse uma coisa com limite (de altura), seria maravilhoso. Mas, imagine, você está lá tomando sol na praia e vem a sombra”, afirma, referindo-se a uma das outras polêmicas quanto à construção. Alguns moradores, inclusive os que fazem parte da Associação de Moradores e Amigos da Barra (Amabarra), acreditam que o edifício trará sombreamento para a praia do Porto da Barra.
Poligonais
Em 2014, a Amabarra começou a receber as primeiras denúncias de moradores sobre um empreendimento que seria construído no local que já tinha sido um casarão. Porém, naquela época, pouco se sabia sobre o projeto, segundo o presidente da entidade, Waltson Campos. “Passou-se um tempo e, em 2015, começou a ser feita a base do edifício. Vimos na mídia que alguns vereadores fariam uma audiência pública em relação ao La Vue e descobrimos que o IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil – Departamento Bahia) ia entrar com uma ação contra a obra”, lembra.
A associação decidiu, então, convidar técnicos a estudar o tema. “A questão do sombreamento, por exemplo, não estava muito clara para a gente. Não existe um estudo específico sobre isso, mas o técnico explicou que uma torre daquele tamanho, em algum momento, faria uma sombra. Mas só é possível comprovar isso com estudos para dizer em que época do ano e em que horário do dia”.
Mas a questão principal continuava sendo o tombamento da região. Para Waltson, permitir que um prédio de 106 andares seja construído na Ladeira da Barra significa que, no futuro, outros empreendimentos desse naipe poderão aportar por ali. “Acabaria trazendo uma parede para a região. Se você olha para o Porto da Barra vindo da Baía de Todos os Santos, você tem uma paisagem. Se você permite que prédios desse tamanho sejam levantados, daqui a 20 ou 30 anos, vai ser outra paisagem. Se tem uma selva de prédios, descaracteriza aquela região, que é um lugar especial”.
Assim, a associação passou a apoiar o IAB, que já se mobilizava para mover uma ação civil pública contra o La Vue. De acordo com a presidente da entidade, Solange Araújo, a ação se concretizou em setembro de 2015 – foi a partir dela que veio, entre outros desdobramentos, o embargo por parte do Iphan. “Os argumentos locais já não resolviam. Antes, conversávamos informalmente (com as instâncias locais), desde que a obra foi aprovada. Quando vimos que o diálogo estava esgotado, entramos”, diz ela, que também é professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (Faufba).
Ela explica que, pelas regras do Iphan, não é possível ter, no entorno de uma área de preservação, uma edificação que seja mais alta do que o imóvel tombado. Nesse caso, a Igreja de Santo Antônio está a 37 metros do nível do mar. “O La Vue extrapola. Está quase três vezes mais e isso traz um impacto enorme. É ilegal e não poderia, pela especulação imobiliária”.
Para autorizar a construção, o Iphan na Bahia teria se baseado em um novo desenho da poligonal – a área que fica no entorno das edificações tombadas -, diferente da norma técnica do Iphan “Poderia até se estudar uma nova poligonal, mas esse estudo tem que ser aprovado no Iphan nacional. Eles refizeram essa poligonal, não submeteram ao Iphan e decidiram que o lote estava fora da área de abrangência”, afirma Solange, que não soube informar sobre estudos acerca do sombreamento na praia.
Essa ação do IAB-BA também resultou na manifestação do MPF, publicada no último dia 10. No texto, do procurador Pablo Barreto, o órgão requer a suspensão imediata das obras, sob pena de multa diária de R$ 5 mil; a suspensão da comercialização das unidades, sob pena de multa diária de R$ 10 mil, além do depósito dos valores referentes aos apartamentos que já foram vendidos.
Contrário e favorável
Na verdade, o primeiro parecer do Iphan na Bahia foi contrário ao La Vue. No entanto, em outubro de 2014, segundo o ex-ministro da Cultura Juca Ferreira, o Escritório Técnico de Licenciamento e Fiscalização (Etelf), que analisava projetos imobiliários em áreas de preservação, foi extinto pelo então superintendente do órgão, Carlos Amorim – pouco depois do parecer contrário ao La Vue.
[g1_quote author_name=”ACM Neto” author_description=”Prefeito de Salvador” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Do ponto de vista local, as licenças foram preenchidas dentro dos requisitos adequados.
[/g1_quote]Em seguida, a obra foi liberada, com parecer assinado pelo engenheiro Bruno Tavares, atual superintendente do Iphan na Bahia. Tavares, que assumiu o órgão logo depois que a presidente Dilma Rousseff foi afastada, é, de acordo com Juca Ferreira, um “homem de confiança de Carlos Amorim”.
“As evidências de desmandos eram tantas que, em outubro, determinei a demissão de Carlos Amorim e o prosseguimento das apurações e dos estudos técnicos, que, mais tarde, revelariam até falsificações e montagens grotescas. Carlos Amorim costumava mostrar uma fotomontagem para sustentar a falsa premissa de que as poligonais de tombamento dos bens localizados na vizinhança do prédio não alcançavam a área onde se localizaria o edifício”, escreveu o ex-ministro, em sua página no Facebook.
De acordo com o vereador de Salvador Gilmar Santiago (PT), Bruno Tavares foi indicado para o cargo pelo ministro Geddel Vieira Lima. “Quando a presidenta Dilma (Rousseff) cai, com o impeachment, ele (Geddel) consegue colocar exatamente o cidadão que deu o parecer positivo”. Santiago conta que, logo que tentou fazer a primeira audiência pública sobre o tema, no ano passado, não conseguiu dar prosseguimento com a Comissão de Planejamento Urbano da Câmara Municipal de Salvador (CMS).
Segundo ele, alguns vereadores receberam orientação do ministro para que a audiência não acontecesse. “Era pressão de tudo que é lado, mas a gente conseguiu fazer uma audiência com a Comissão de Direitos do Cidadão e esse caso tomou uma dimensão mais pública, para mostrar às pessoas o absurdo desse projeto”, diz. A audiência só aconteceu no segundo semestre do ano passado.
Santiago diz que Salvador já passou por uma situação parecida: com o Corredor da Vitória – outro trecho da Avenida Sete de Setembro e um dos locais mais luxuosos da cidade. “Fecharam o Corredor da Vitória, ergueram grandes prédios que impedem que as pessoas vejam a Baía de Todos os Santos. Só quem vê é quem mora nesses prédios. A cidade que já foi vítima disso não pode continuar sendo vítima”, afirma. “A Barra é um patrimônio da cidade. É um lugar para toda Salvador curtir as belas praias, os fortes, o acervo cultural da região. Por isso, é um fato que envolve toda a cidade. Esses espaços não podem ser privatizados”.
Outro lado
Carlos Amorim não foi localizado pelo #Colabora, nem respondeu ao e-mail solicitando uma entrevista. Já a assessoria do Iphan, assim como do atual superintendente na Bahia, Bruno Tavares, foi procurada, mas não emitiu posicionamento até a publicação da reportagem. Por sua vez, o prefeito de Salvador, ACM Neto, afirmou, em entrevista durante uma inauguração no sábado (19), que “do ponto de vista local, as licenças foram preenchidas dentro dos requisitos adequados”.
Através da assessoria, a construtora Cosbat informou que tem toda a documentação legal para a construção do La Vue. “O projeto arquitetônico, de autoria do renomado escritório Ivan Smarcevski Arquitetos obteve Alvará de Licença para Construção e Licença Ambiental expedidos pela Prefeitura Municipal de Salvador, assim como as autorizações para a construção foram emitidas pelo Iphan Nacional (Iphan Bahia) e Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac). As licenças e autorizações foram obtidas há cerca de dois anos e foram ratificadas pelo Iphan, Ipac e Município”, informou. A Cosbat diz, ainda, que a obra foi iniciada há mais de um ano e, em cumprimento à determinação do Iphan nacional, está “temporariamente suspensa”.
Hoje, o destino do La Vue aguarda uma sentença na 4ª Vara da Justiça Federal. Está nas mãos da juíza Roberta Dias do Nascimento Gaudenzi decidir se o prédio poderá ser erguido com 30 andares ou não. Mas, enquanto não há prazo para essa decisão sair, a turma contrária à chegada do “espigão” – como se referem ao La Vue – comemora.
Thais Borges é jornalista e baiana. Trabalha no Correio*, em Salvador, e gosta de escrever sobre o cotidiano.
Parabéns Thais Borges pela qualidade da matéria, por recapitular a história e relatar os fatos envolvendo a liberação da licença local e o ponto de vista da associação de moradores e instituições. Muito bom que mantido a sua isenção de repórter, colhendo as informações e transcrevendo os fatos, sem apontar para a venalidade das autoridades envolvidas. Desta forma cumpre o seu papel e deixa para os cidadãos interpretarem os fatos.
Concordo com o comentario anterior, para mim que sou paulista e conheco pouco dos orgaos baianos, foi muito esclarecedor o artigo da reporter. Tenho opiniao contraria, acho que a regra que proibe novas edificacoes mais altas que outras pré existente, mesmo que consideradas patrimonio cultural, é uma regra atrasada, que prejudica o desenvolvimento imobiliario, e se baseia em suposicoes sobre o que querem os cidadaos que podem nao condizer com a maioria das opinioes. Alem do que, a barra nao é apenas dos moradores tradicionais do entorno, pois baianos de outros locais mais distantes tambem nao podem usufruir dela, e sofrem com a falta de dinamismono mercado imobiliario que este tipo de acao causa. No entanto, reitero meu elogio a reporter, o texto é imparcial, e ela se permite dar sua opiniao de forma destacada na sua assinatura, parabens Thais Borges.