O tempo, a maré e os homens de ferro de Liverpool

Apontadas como ameaça ao ambiente, cem esculturas de Antony Gormley se tornam atração turística em praia de areias movediças

Por Carla Lencastre | ODS 11 • Publicada em 29 de maio de 2016 - 06:30 • Atualizada em 25 de julho de 2021 - 00:00

Atração da praia até em dias de chuva, um dos homens de ferro é fotografado em Liverpool | Foto de Carla Lencastre

Cem homens de ferro chegaram a Liverpool dispostos a conseguir um lugar de destaque em uma cidade que vive em torno de quatro outros rapazes. Escolheram uma praia para chamar de sua e se espalharam ao longo de três quilômetros de areia marrom. Logo foram apontados como uma ameaça ao meio ambiente e criticados por estarem nus. Resistiram, de pé, afastados um do outro, mas olhando o horizonte na mesma direção.

Feitos à imagem e semelhança de seu criador, o consagrado escultor britânico Antony Gormley, os cem de Liverpool formam a instalação Another Place. Pouco mais de uma década depois, estão no mesmo lugar, colonizados por cracas e inspirando estudos científicos dos biólogos da Universidade de Liverpool. Atraem milhares de visitantes todos os anos a uma região isolada do centro turístico da cidade, movimentando a economia local. Visitantes estes que não demoram a constatar que Liverpool tem (muito) mais para mostrar do que o incrível passado dos Beatles.

Face a face com um homem de ferro: da mesma altura do criador - 1,89m
Face a face com um homem de ferro da mesma altura do criador (1,89m), Antony Gormley | Foto de Carla Lencastre

Crosby Beach, a praia dos homens de ferro, fica em um bairro residencial a cerca de dez quilômetros do Centro de Liverpool, na direção norte, onde o Rio Mersey encontra o Mar da Irlanda. O céu quase sempre cinza se confunde com a água. Vento forte e chuva fina são presenças constantes. Há uma grande variação de maré, a segunda maior da Grã-Bretanha. Quando ela baixa, o Mar da Irlanda, os navios indo e vindo do movimentado Porto de Liverpool e algumas escultura parecem muito distantes, como se fossem pinceladas em uma aquarela esmaecida. Fica difícil ver a diferença entre homens de ferro e de carne e osso.

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É uma das paisagens mais estranhamente belas do Norte da Europa. O cenário tão diferente dá a sensação de que Another Place fica em outro planeta. Cada solitário homem de ferro tem 1,89 metro de altura, como Gormley, e pesa 650 quilos. Quando a maré sobe, eles ficam parcialmente ou totalmente submersos pelas águas do Mar da Irlanda. Se um dia ensolarado e uma maré baixa coincidirem, Crosby Beach estará concorrida ao pôr do sol. Mas nem nestas ocasiões ela se parece com uma praia tropical. Areias movediças e mudanças rápidas de maré desencorajam qualquer ideia de molhar os pés.

O próprio Gormley foi vítima das areias inconstantes na primeira vez em que visitou Crosby Beach: “Lembro-me de ficar preso na areia movediça. Estava pensando no futuro: o quão profundo é o que vou fazer? E meus óculos caíram na água. Fui afundando cada vez mais enquanto tentava recuperá-los. Foi uma cena típica de um cara urbano perdido em meio à natureza”, contou ao jornal Liverpool Echo, em 2015, quando voltou à cidade para comemorar o décimo aniversário da instalação. “Fui novamente ver as esculturas de perto. Fiquei fascinado com as cracas”. Em junho de 2021, o próprio Gormley voltou a Liverpool para ajudar no resgate de dez estátuas que foram afundando na areia movediça conforme suas bases em concreto se desintegraram.

Pé na areia: as cracas transformaram as esculturas e as fundiram com o ambiente
Pé na areia: as cracas transformaram as esculturas e as fundiram com o ambiente | Foto de Carla Lencastre

Mas não é preciso se arriscar na areia movediça para contemplar Another Place. A instalação impressiona pelo conjunto, ou por parte dele, que é mais bem apreciado de longe. Para olhar as colônias de cracas que fascinam tanto Sir Antony como os pesquisadores da Universidade de Liverpool basta caminhar até as esculturas que estão perto da costa. Neste trecho, a areia é um pouco mais firme. Na maré baixa, também se vê muitas conchas e estrelas do mar. Na maré alta, a água sobe até as mansões vitorianas à beira-mar, separadas da praia por um dique de contenção. Em uma delas morava Edward Smith, o capitão do Titanic, com sua mulher e filha. Na outra margem do Mersey se avistam moinhos de energia eólica. Mais adiante, está o norte do País de Gales.

Os homens de ferro chegaram a Crosby Beach depois de oito anos viajando por praias de Alemanha, Noruega e Bélgica. Quando desembarcaram em Liverpool, a ideia era inicial era ficar por 16 meses, que logo viraram 20, e depois atravessar o Atlântico Norte rumo a Nova York. Hoje eles fazem parte das atrações oficiais de Liverpool e são orgulhosamente apresentados por seus moradores. Mas, para que isso acontecesse, foi preciso que o povo fosse à praia. Uma manifestação popular no que seria o último domingo de Another Place em Crosby Beach foi decisiva para que a instalação obtivesse autorização para ficar em caráter permanente. Os 600 mil visitantes apenas no primeiro ano, segundo o jornal britânico The Guardian, também foram levados em conta. Na época, Gormley disse que Crosby era o “lugar ideal” para as suas esculturas. É difícil mesmo imaginá-las em outro lugar.

Quando o assunto é turismo internacional, Liverpool é uma cidade em ascensão. Em 2014 foram 605 mil visitantes estrangeiros, um número 8% maior em relação a 2013. Para quem quer conjugar homens de ferro com atrações tradicionais do circuito Beatles, Liverpool também tem novidades. No final de 2015 foram inauguradas estátuas em tamanho natural dos quatro rapazes no Centro da cidade. Inspiradas em uma foto do quarteto no mesmo local, as esculturas ficam perto do Rio Mersey e longe do Mar da Irlanda e da água salgada. Os quatro serão sempre jovens, imunes às cracas da passagem do tempo.

Detentor de um Turner Prize, o prêmio mais importante de arte contemporânea no Reino Unido, Gormley esteve no Brasil em 2012 para a exposição Corpos presentes (Still Being), que passou por Rio de Janeiro, São e Brasília. Os homens de ferro, tema recorrente em sua obras, estiveram em vários locais públicos durante a temporada brasileira. Os que se aventuraram pelos topos de prédios no Centro do Rio e no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, foram chamados de suicidas.

Carla Lencastre

Jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou por mais de 25 anos na redação do jornal O Globo nas áreas de Comportamento, Cultura, Educação e Turismo. Editou a revista e o site Boa Viagem O Globo por mais de uma década. Anda pelo Brasil e pelo mundo em busca de boas histórias desde sempre. Especializada em Turismo, tem vários prêmios no setor e é colunista do portal Panrotas. Desde 2015 escreve como freelance para diversas publicações, entre elas o #Colabora e O Globo. É carioca e gosta de dias nublados. Ama viajar. Está no Instagram em @CarlaLencastre 

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