Turismo comunitário é a grande aposta de quilombo da Cidade de Goiás

Vista do Alto do Santana, a linda paisagem da cidade de Goiás, Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade. Foto Marcelo Lima

No Cerrado goiano, famílias quilombolas querem ressignificar o racismo ambiental e fortalecer o protagonismo local pelas suas próprias narrativas

Por Elizabeth Oliveira | ODS 11 • Publicada em 9 de maio de 2024 - 09:37 • Atualizada em 15 de maio de 2024 - 10:36

Vista do Alto do Santana, a linda paisagem da cidade de Goiás, Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade. Foto Marcelo Lima

Para quem escolhe roteiros turísticos pelas vivências carregadas de saberes e fazeres em territórios de resistência, onde sua gente busca ressignificar um passado de desigualdades e preconceitos com prosas cativantes, paisagens vistas por outros ângulos e hospitalidade ímpar, “Tem quilombo nas trilhas de Goiás” é um projeto que não se pode perder de vista. Essa é uma iniciativa de turismo comunitário, em processo de construção entre 2022 e 2024, nascida do desejo de moradores do quilombo urbano do Alto de Santana,  serem parte das experiências turísticas da Cidade de Goiás (GO), reconhecida como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), há duas décadas, além de sonho de consumo de viajantes brasileiros e estrangeiros.

Leu essa? Incêndio fora de época no Pantanal assusta ambientalistas e investidores em preservação

Foi com esse propósito de fortalecer o protagonismo local de uma comunidade que tem muita história para contar e muita beleza para compartilhar que a proposta ganhou apoio institucional de peso e vem sendo planejada, de forma participativa, nos últimos dois anos, como projeto de extensão abraçado pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas, de Gênero e Sexualidade (NEABI-NUANCES), do Instituto Federal de Educação Profissional e Tecnologia de Goiás (IFG), no Campus da Cidade de Goiás, em articulação com a Associação do Quilombo Alto Santana (AQAS). A iniciativa também é apoiada pelo curso de Turismo e Patrimônio da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Campus Cora Coralina, e pela Secretaria Municipal de Turismo e Desenvolvimento Econômico da Cidade de Goiás.

De passagem pela terra que se notabilizou pelo talento da poetisa Cora Coralina, cujo primeiro livro foi publicado aos 76 anos, a reportagem do #Colabora foi além do famoso Centro Histórico de casario colonial e percorreu as ruas tranquilas do quilombo Alto de Santana na companhia de dois especialistas em História e Turismo. Ambos, conhecedores da comunidade e do seu potencial como roteiro turístico de alto valor ambiental e histórico-cultural, também se conectam a esse território pelas memórias afetivas e pelo propósito de contribuírem para o impulsionamento desse projeto pelas instituições de ensino às quais se vinculam.  Assim, caminhamos, observamos a paisagem e visitamos moradores que, além de genuinamente hospitaleiros, são considerados patrimônios vivos dessa comunidade que, historicamente, tem lutado por mais qualidade de vida e por direitos respeitados, dentre os quais, o de apresentar narrativas próprias para contar suas histórias.

A pesquisadora Ádria Borges Figueira Cerqueira, mestre e graduada em História, professora do (IFG), conta que foi muito importante quando em uma reunião da Associação Quilombola, seus membros compartilharam o desejo da comunidade de participar dos roteiros turísticos da Cidade de Goiás. “Eles entendem a importância desse reconhecimento da comunidade, no seu significado como comunidade tradicional, também de se adentrar nesse reconhecimento pelas perspectivas de identidade, cultura e do saber fazer”, afirma a especialista.

Nas placas da cidade, a discriminação institucionalizada: "comunidade chupa osso" era o nome dado à região do quilombo. Foto Elizabeth Oliveira
Nas placas da cidade, a discriminação institucionalizada: “comunidade chupa osso” era o nome dado à região do quilombo. Foto Elizabeth Oliveira

Durante as análises entre passado, presente e futuro dos moradores dessa comunidade quilombola, a professora opina que, “qualquer projeto que visa à perspectiva do turismo de base comunitária é um ganho grande no sentido da valorização e do reconhecimento da ação e da importância deles nesse território”. A caminho de duas residências de moradores mais antigos, ela recorda que Goiás teve forte presença dos bandeirantes e que, até 1750, mais de 20 mil pessoas foram escravizadas no ciclo do ouro por lá. “Mas aqui é lugar de resistência”, afirma sobre o território de cerca de 200 famílias, reconhecido oficialmente pela Fundação Palmares, em 2017.

No caminho, ela ressalta que, assim como tantas outras no Brasil, Goiás também é uma cidade dividida. O marco que distancia os mais ricos dos mais vulneráveis é o Rio Vermelho que corta o município. “Do rio para lá é o Centro Histórico, onde estão as pessoas que, historicamente, têm mais alto poder aquisitivo. Do lado dos fundos da Igreja [do Rosário] para cá, é onde está a população mais pobre”, explica.

E não foi por acaso que o Alto de Santana foi apelidado de “comunidade chupa osso”. A professora explica que por muito tempo foi assim que a área do quilombo foi chamada na cidade. Para ela, a placa em uma das suas ruas centrais “está etiquetando uma localidade sempre muito marcada pela violência social”. Passado e presente não negam que essa etiqueta está carregada de racismo ambiental já que era nessa localidade que um matadouro do município descartava carcaças e partes inservíveis para a venda do gado abatido. Quando as ruas locais ganharam placas de identificação, a herança de discriminação foi institucionalizada. Não há outra conclusão a chegar para quem não pode perder de vista o senso crítico aguçado, nem mesmo em um passeio turístico.

Moradores mais antigos demonstram otimismo com o turismo comunitário

Ela foi batizada como Maria das Graças Siqueira Campos, mas quando criança, ganhou o apelido de Chica e foi assim que se tornou conhecida como ceramista e referência de sabedoria na comunidade. Dona Chica, 72 anos, dos quais 47 dedicados à produção de panelas e outras peças artesanais, aprendeu o ofício com uma irmã e, desde então, fez dessa a sua principal fonte de renda. O trabalho se soma à arte de fazer doces caseiros, uma tradição passada de geração a geração na cidade. Como boa anfitriã, nos serve doce de mini cajus do Cerrado, colhidos no seu quintal, e nos mostra um freezer cheio de pacotes da fruta congelada que vai cozinhando, aos poucos, para encantar a clientela mesmo fora da temporada.

Alegre e comunicativa, a ceramista relata que sempre trabalhou por encomendas e que o ateliê para compartilhar seus saberes com visitantes é mais recente. Nesse espaço, ela gosta de ensinar o que sabe sobre as técnicas de criar artefatos. Não por acaso, tem sido procurada por viajantes que têm participado de suas oficinas mesmo antes de uma consolidação da comunidade como roteiro turístico. “Para fazer bem feito tem que ser um dia inteiro de oficina”, observa.

Quando perguntamos a sua opinião sobre ver o Alto de Santana transformado em referência de turismo comunitário na cidade, Dona Chica afirma, bem humorada, que gosta muito do contato com os turistas, antes mesmo dessas vivências passarem a ser mais bem planejadas na localidade.

Ela conta que chegou ainda menina à área urbana do quilombo, quando ainda não tinham moradores na rua onde foi morar com a família. Enfrentando muitas dificuldades, a ceramista recorda que a mãe conseguiu construir aos poucos uma casa de seis cômodos com o dinheiro que ganhava como empregada doméstica.

Apesar dos percalços, Dona Chica considera que o lugar evoluiu desde a sua chegada e que a comunidade se tornou muito unida. Para melhorar as condições de vida, ela opina que a lavanderia coletiva deveria passar por reforma. “Seria bom também construir uma praça com academia de ginástica para nós”, conclui.

Quem também considera que a comunidade melhorou em relação ao passado é a dona de casa Cândida de Souza de Jesus Cruz, de 80 anos, e seu marido Libério Teixeira da Cruz, 83. O casal também é considerado uma relíquia do Alto de Santana, pela longa trajetória de vida na comunidade. Ambos contam que gostam de receber visitantes em casa e que estão animados com o projeto de planejamento de turismo comunitário que vem sendo gestado por lá. Na varanda da família, emendamos uma prosa regada a muitas risadas com as memórias familiares e o bom humor dos anfitriões.

Dona Cândida recorda que sua família também veio morar na localidade quando ainda não tinham vizinhos por perto. “Fomos criados na pobreza. Agora estamos num mar de rosas”, compara. Segundo relata, sua mãe também construiu sozinha a casa da família formada por seis filhos. Para sobreviver, vendia frutas e pastéis pelas ruas. “Quando eu era menina, levava caju e laranja curtida para Cora Coralina fazer doces”, conta sobre a aproximação familiar com a famosa doceira que, depois de idosa, ganhou fama como poetisa. “Ela era muito exigente”, lembra sorridente sobre a antiga cliente que exigia a melhor matéria-prima para as suas compotas.

Um dos patrimônios da comunidade, Dona Chica tem 72 anos, dos quais 47 dedicados à produção de panelas e outras peças artesanais. Foto Elizabeth Oliveira
Um dos patrimônios da comunidade, Dona Chica tem 72 anos, dos quais 47 dedicados à produção de panelas e outras peças artesanais. Foto Elizabeth Oliveira

Pesquisador defende turismo comunitário como peça-chave para a inclusão social

Para o pesquisador Marcelo Lima, turismólogo e professor do curso de graduação em Turismo e Patrimônio do Campus Cora Coralina, da UEG, que tem acompanhado o processo de construção do projeto “Tem quilombo nas trilhas de Goiás”, essa é uma iniciativa comunitária genuína com grande potencial de inclusão social e fortalecimento do protagonismo quilombola do Alto Santana.

Como características emblemáticas dessa iniciativa, o pesquisador destaca: “Acho importante enfatizar que o projeto dialoga, diretamente, com o Turismo de Base Comunitária, o chamado TBC, que representa uma via possível, e urgente, de inserção social para a comunidade quilombola do Alto Santana”.

Estudioso sobre o tema, Lima faz questão de acrescentar que compreende o TBC, “a partir de uma leitura ética, local, diversa e inclusiva do turismo, considerando os compromissos socioambientais e culturais como pressupostos para o desenvolvimento do turismo nas localidades onde vem sendo executado”.

No caso específico do projeto do Alto Santana, que viu nascer, Lima ressalta que essa iniciativa já vem gerando diversos resultados positivos, dentre os quais, “o resgate e a valorização da cultura e da identidade daquela comunidade quilombola”. Para o futuro, a sua expectativa é de que, esse quilombo “possa desenvolver outras ações no plano do turismo, todas cunhadas na noção de sustentabilidade”.

Além disso, o pesquisador considera factível que essa articulação local também “possa auxiliar no processo de descentralização das estruturas e do fluxo turístico no município de Goiás, dinamizando as atividades e as oportunidades para a ampliação das experiências dos turistas na cidade”. Como parte do potencial inclusivo e transformador, ele analisa que o projeto de turismo comunitário, do qual se considera um entusiasta, “poderá, também, contribuir para ofertar aos jovens e adultos melhores condições de permanência e de expectativas de continuar na comunidade, dentro do seu território, combatendo a falta de perspectiva de trabalho e renda, ao mesmo tempo que poderá diminuir as desigualdades sociais locais”.

Capaz de revolucionar o jeito de se fazer turismo em uma cidade de passado colonial que ganhou fama nacional e internacional, Lima também analisa que esse projeto representa um tema estratégico para o quilombo, podendo funcionar como “um fio condutor para ajudar a tecer outros roteiros inclusivos de natureza e cultura na cidade de Goiás”. O pesquisador conclui que roteiros com essas características, “devem partir das vivências, dos olhares, dos fazeres e saberes locais, bem como das próprias expectativas da comunidade quilombola”.

No Alto Santana, o resgate e a valorização da cultura e da identidade daquela comunidade quilombola. Foto Marcelo Lima
No Alto Santana, o resgate e a valorização da cultura e da identidade daquela comunidade quilombola. Foto Marcelo Lima

Elizabeth Oliveira

Jornalista apaixonada por temas socioambientais. Fez doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED), vinculado ao Instituto de Economia da UFRJ, e mestrado em Ecologia Social pelo Programa EICOS, do Instituto de Psicologia da UFRJ. Foi repórter do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e colabora com veículos especializados, além de atuar como consultora e pesquisadora.

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *