Nova vida começa com a letra D, de desapego

Há seis meses sem endereço fixo, caminhos da fotografia me levaram a Paris

Por Marizilda Cruppe | ODS 15Vida Sustentável • Publicada em 15 de novembro de 2015 - 10:00 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:54

Silêncio marcou as homenagens às vítimas na praça do Boulevard Voltaire em frente à casa de shows Bataclan, no sudeste de Paris.

 

Minha história é idêntica à de outras mulheres da minha geração. Crescemos para compor um tripé de segurança e felicidade: diploma com emprego estável, casamento com filhos e casa própria. Atingíssemos estas metas e teríamos cumprido nosso papel. Parece mesmo um bom projeto de vida. Na crença de que esse modelo era para mim, lá fui eu montar meu tripé. Cumpri quase todo o combinado, menos ter filhos.

O que não me contaram é que tem gente que não se encaixa nesse projeto. Tem gente que nem sabe que não se encaixa. Depois de bater cabeça durante metade da minha existência, entendi que essa vida toda programadinha não é para mim. Pelo menos nesse formato publicitário que nos vendem. Senti na pele que não sou passarinho de gaiola. Prendi a respiração e comecei a desmontar, uma a uma, cada perninha do meu tripé.

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A derradeira perna era a tal da casa, o endereço fixo. O estalo veio do nada e em dois tempos aluguei meu apartamento para uma ótima inquilina, com mobília e tudo, pelo período de um ano. E foi assim que o tripé subiu de vez no telhado.

Tenho um plano? Não. Tenho um projeto? Tampouco. Só quero viver sossegada. Vou aonde a Fotografia me levar. Tem sido assim há seis meses desde que entreguei as chaves de casa.

Dormi em uns 40 lugares de um punhado de cidades. Hotéis, casas de pessoas generosas quando não havia hotéis, casas de amigos, de amigos que viraram família e da própria família. Longe de mim dizer que é tudo perfeito. Tem a parte difícil, ô se tem. Há muitos quebra-molas pelo percurso.

Por um lado, o exercício de olhar o lado cheio do copo é gostoso como comer jabuticaba do pé. Dá um prazer danado. Por outro, não ter o controle de cada detalhe, não saber o destino certo pelos próximos 8.459.896 dias, não ter cada objeto na sua gavetinha é tortura para uma virginiana, rá, se é. Mas estou aí me confrontando. É sofrido e divertido na mesma medida. Mais divertido que sofrido, vai.

Fiz pular umas páginas do meu dicionário e agora ele começa na letra D. O primeiro verbete é Desapego. Sigo no embalo das tentativas de me desapegar dos excessos materiais e imateriais e de aproveitar o que a Fotografia me proporciona; conhecer um monte de gente, aprender um bocado e tentar colaborar com o que sei fazer.

Fui incentivada a contar a minha experiência ‘sem casa’ nas redes sociais, mas ainda não tinha pensado ou me organizado para isso. Contudo, minha parceira, a Fotografia, me colocou no caminho do Projeto Colabora e cá estou no #colabora, um lugar bacana para abrigar as histórias que eu gostaria de contar. Menos sobre mim e mais sobre as pessoas que cruzam o meu caminho (ou eu o delas). Comecei por um autorretrato para dar uma ideia de quem sou e do quanto andei até desfrutar deste momento.

Escrevi o texto original deste artigo antes de cruzar o Atlântico. Nos últimos 15 dias estive em Amsterdam, Londres e sexta-feira cheguei à Paris. Bem no dia do atentado que fez mais vítimas na França desde a Segunda Guerra Mundial. E é de Paris que escrevo mais este parágrafo. Meus compromissos não cruzaram os caminhos dos atentados e minha vivência na violência urbana do Brasil não me impediu de seguir minha agenda na cidade. Continuo circulando de táxi, metrô, ônibus e a pé. Ontem comecei o dia na Bastilha e terminei no Boulevard Voltaire, onde a imprensa do mundo estava reunida. Meus encontros foram em diferentes curvas do caracol.

Havia gente tentando continuar a vida, embora a cidade estivesse atipicamente vazia e silenciosa para um sábado. Pontos turísticos e estações do metrô fechados, lojas, cinemas, museus, cafés, bares e restaurantes também fechados. Até o tradicional Marché d’Aligra estava fechado. Fotografei com iPhone, mas não mergulhei na cobertura como uma fotojornalista de jornal que já fui. Vivi este triste episódio de outra maneira. Ouvi, mais que tudo. Minha sobrinha me escreveu preocupada e disse que não entendeu muito bem o que aconteceu. Aqui não é diferente. Por mais análises que ofereçam os especialistas, ninguém consegue entender como algo pode ser resolvido na bala. Como disse uma amiga francesa, nesta hora, o melhor é se cercar de pessoas que acreditem na solidariedade. Foi isso que eu fiz. Espero que gostem do que está por vir. Ai vão algumas fotos dos bons lugares onde a fotografia me permitiu dormir nos últimos seis meses, inclusive Paris.

No quarto de Paris, o pronunciamento de Angela Merkel sobre os atentados
No quarto de Paris, o pronunciamento de Angela Merkel sobre os atentados
Barreirinha, Amazonas
Chapada Gaúcha, Minas Gerais
Imperatriz, Maranhão
Formoso, Minas Gerais
Lucas do Rio Verde, Mato Grosso
Manaus, Amazonas
Parnaíba, Piauí
Parintins, Amazonas
Rio de Janeiro, RJ
São Paulo, SP

 

Marizilda Cruppe

​Marizilda Cruppe tentou ser engenheira, piloto de avião e se encontrou mesmo no fotojornalismo. Trabalhou no Jornal O Globo um bom tempo até se tornar fotógrafa independente. Gosta de contar histórias sobre direitos humanos, gênero, desigualdade social, saúde e meio-ambiente. Fotografa para organizações humanitárias e ambientais. Em 2016 deu a partida na criação da YVY Mulheres da Imagem, uma iniciativa que envolve mulheres de todas as regiões do Brasil. Era nômade desde 2015 e agora faz quarentena no oeste do Pará e respeita o distanciamento social.

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