Os rebeldes eletrônicos que desafiaram o legado autoritário de Franco

O álbum revela as pioneiras experimentações eletrônicas e a postura libertária de grupos como o Aviador Dro. Foto Divulgação

O álbum “La contra ola” revela o pioneirismo e a postura libertária de um grupo de artistas na renascida Espanha dos anos 1980

Por Carlos Albuquerque | ODS 9 • Publicada em 19 de janeiro de 2019 - 09:07 • Atualizada em 19 de janeiro de 2019 - 16:27

O álbum revela as pioneiras experimentações eletrônicas e a postura libertária de grupos como o Aviador Dro. Foto Divulgação
O álbum revela as pioneiras experimentações eletrônicas e a postura libertária de grupos como o Aviador Dro. Foto Divulgação
O álbum revela as pioneiras experimentações eletrônicas e a postura libertária de grupos como o Aviador Dro. Foto Divulgação

Passar do silêncio forçado da ditadura para o alegre barulho da democracia é como música para os ouvidos (menos, claro, para robôs digitais e zumbis do Whatsapp). Guardadas as devidas proporções, Brasil e Espanha tiveram a mesma sensação entre o fim dos anos 1970 e o começo dos anos 1980 durante os seus processos de redemocratização – o primeiro emergindo de um regime militar que durou 21 anos (e que resultou na Nova República, que agora, com a eleição de Jair Bolsonaro, parece ter chegado ao fim); o segundo libertando-se da mão de ferro de Francisco Franco após 36 anos. Se por aqui, a trilha-sonora dessa virada passou pelo rock e pela new wave de artistas como Blitz, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Ritchie e Titãs, no país ibérico o fundo musical foi parecido, mas teve desdobramentos particulares, como mostra a coletânea “La contra ola”, lançada pelo selo independente Bongo Joe.

Soprava um ar de liberdade no país. Havia muita vontade de viver e de inventar algo que não se parecesse com a Espanha de antes

Como indica o sub-título “Synth wave and post punk from Spain 1980-1986”, o álbum revela as pioneiras experimentações eletrônicas e a postura libertária de um grupo de artistas – Aviador Dro, La Fura Dels Baus, Esplendor Geométrico, TodoTodo, Oviformia SCI etc – que, sob a influência do punk, surfou as primeiras ondas democráticas na Espanha após o franquismo.  Impulsionada por elas, surgiu a “movida”, um libertário movimento que sacudiu as principais cidades do país, englobando música, moda, artes plásticas, cinema (o diretor Pedro Almodóvar foi um dos seus mais célebres representantes) e festas, muitas festas, até o dia raiar e além. “Soprava um ar de liberdade no país. Havia muita vontade de viver e de inventar algo que não se parecesse com a Espanha de antes”, conta o pesquisador Loic Diaz, responsável pela coletânea.

Na música, a ansiedade por abraçar qualquer coisa que parecesse nova fez com que diversos grupos surgidos em meio à movida – que teve o apoio entusiasmado de políticos como o prefeito de Madri, o socialista Tierno Galvan, o primeiro eleito para o cargo em quarenta anos – fossem, rapidamente, absorvidos pelo mainstream.  A maior parte, porém, deixou-se “amaciar” para poder ocupar os generosos espaços abertos por rádios e programas de televisão.  A “contra ola”, expressão cunhada pelo próprio Diaz como contraponto à “nueva ola” reinante, surge no começo dos anos 80, como uma reação natural ao pop-rock genérico e adestrado que virou a trilha-sonora da renascida Espanha.

Flyer Simposium-Tecno-1981. Divulgação
Flyer Simposium-Tecno-1981. Divulgação

“Os meios de comunicação naquela época estavam num processo de renovação que coincidiu com a mudança geracional no país, o que explica por que abriram tanto espaço para as novidades”, explica Diaz. “Mas essa voracidade acabou gerando um esvaziamento da movida.  Assim, por volta de 1981, 1982, as principais bandas da chamada “nueva ola” tinham sido neutralizadas ou digeridas pela indústria musical. Em oposição a isso, outros grupos começaram a desenvolver estéticas alternativas, à base de sintetizadores e baterias eletrônicas, em busca de novos caminhos musicais”.

Para escoar sua produção, esses rebeldes da movida – chamados de “punks científicos” ou “primitivos industriais” – tiveram que recorrer a fanzines e selos independentes como Discos Radioactivos Organizados (DRO) e Grabaciones Accidentales S.A. (GASA), em gravações muitas vezes lançadas apenas em cassete.  Apesar de conseguirem alguma projeção em cidades como Madri e Barcelona, não conseguiram êxito comercial e ainda sofreram repressão da polícia, que, amparada em arcaicas leis do período franquista, reprimia shows e prendia aqueles vestidos de forma extravagante.

“Um marco desse movimento foi o I Simpósito Tecno, realizado em 1981, em Madri, reunindo diversas bandas dessa estética anarco-cibernética, influenciadas por Kraftwerk e Devo. Só que o evento acabou sendo interrompido pela polícia, que levou público e artistas presos. Foi o momento em que todos perceberam que ainda havia resquícios do franquismo naquela Espanha em transição”, diz o pesquisador.

A “movida” foi um movimento libertário que sacudiu as principais cidades do país, englobando música, moda, artes plásticas, cinema e festas, muitas festas, até o dia raiar e além. Foto Divulgação
A “movida” foi um movimento libertário que sacudiu as principais cidades do país, englobando música, moda, artes plásticas, cinema e festas, muitas festas, até o dia raiar e além. Foto Divulgação

Frente a todas essas dificuldades, a maior parte dos artistas da Contra Ola teve vida curta e encerrou suas atividades, com a notável exceção do La Fura Dels Baus, que se reinventou como um transgressor grupo teatral, ativo até hoje. Foi dos escombros dessa cena que Diaz extraiu o material da coletânea, com pérolas como “Moscú está helado” (Esplendor Geométrico), “Autogas” (TodoTodo) , “Extraños juegos” (Zombies) e “Golpe de amistad” (Diseno Corbusier).

“Foi uma cena efêmera, um instantâneo de um momento bem particular da música espanhola, no qual alguns artistas atrevidos e desafiadores fizeram suas experiências com sintetizadores antes da chegada dos computadores pessoais.  Todos foram muito subestimados naquela época. Por isso, aqueles com quem consegui manter contato para organizar o disco mostraram-se muito surpresos e, claro, felizes com o interesse, ainda que tardio, pelo seu trabalho”.

Carlos Albuquerque

Carlos Albuquerque (ou Calbuque) é jornalista de cultura, biólogo, DJ (daqueles que ainda usam vinil) e ocasional surfista de ondas ridiculamente pequenas. Escreve com a mão esquerda e Darwin é seu pastor.

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