ODS 1
‘Akira’ chega aos 30 anos como um marco da animação japonesa
O filme de Katsuhiro Otomo influenciou Steven Spielberg, Michael Jackson e o seriado “Stranger things”
Velozes e furiosos, os motoqueiros liderados por Shotaro Kaneda seguem avançando os sinais do tempo, inabaláveis, trinta anos depois do lançamento de “Akira”, o filme que os projetou para muito além da imaginação. Como uma escolta enfezada, eles abrem o caminho das celebrações em torno do clássico da animação japonesa – que vão de edições de aniversário em DVD e Blu-Ray a exibições especiais em cinemas em diversas capitais pelo mundo. Os confetes têm um alvo em particular: o diretor Katsuhiro Otomo, também autor do mangá de 1982 que deu origem ao encanto e ao assombro de “Akira” no mundo da ficção-científica.
Produção mais cara do cinema de animação do Japão até 1988, o filme custou um bilhão de ienes, um recorde para a época no país. Apesar do sucesso nas bilheterias, rendeu 25% menos do que seu orçamento. Mas como outro marco das telas daquela década, “Blade runner”, de Ridley Scott, que foi lançado quatro anos antes, também com um desempenho abaixo do esperado, sua consagração viria em longo prazo. “Akira” chega aos trinta aclamado e cultuado, com sua história, seu visual e sua música indelevelmente marcados na cultura pop. Seus reflexos podem ser sentidos em filmes como “Jogador nº1”, de Steven Spielberg”, em séries de televisão como “Stranger things” e em clipes de Michael Jackson e Kanye West.
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Veja o que já enviamosSó não é possível dizer que Otomo riu por último porque não há nada de engraçado em sua hiper-realista criação, repleta de tensão e violência. Passado no mundo pós-apocalíptico de 2019, “Akira” gira em torno de Kaneda e sua gangue, Os Cápsulas, que vivem enfrentando grupos rivais nas caóticas ruas de Neo-Tokyo, a reconstruída capital japonesa após a virtual explosão da Terceira Guerra Mundial. A trama gira quando um dos integrantes dos Cápsulas, Tetsuo, descobre ter poderes mentais sobrenaturais e passa a ser perseguido tanto por agências do governo como por grupos insurgentes, às vésperas da criticada realização das Olimpíadas na cidade (uma coincidência com a real escolha de Tóquio para os jogos de 2020 que serviu apenas para aumentar o culto em torno do filme).
Esse cenário distópico, de inspiração cyberpunk, é magistralmente ampliado pela animação do filme, feita por um grupo de mais de 60 desenhistas comandados por Otomo. Diferentemente dos CGI (efeitos gerador por computador) atuais, as animações de “Akira” foram feitas em centenas de milhares de quadros arduamente desenhados a mão, como lembra Kuni Tomita, que fez parte daquele grupo.
“Considero uma honra muito grande ter trabalhado em ‘Akira’”, – diz ela, que hoje mora em Los Angeles, nos Estados Unidos, e lidera um departamento de animação do canal Nickelodeon. “Mas naquela época, foi uma tarefa muito desgastante, física e mentalmente. O filme só foi realizado por causa da enorme dedicação do nosso grupo de animadores”.
Tamanho sacrifício não foi em vão. A fluidez e o “calor” da animação quase artesanal feita por Tomita e seus companheiros – para alguns, equivalente ao som do vinil frente aos arquivos digitais – é apenas um dos muitos trunfos de “Akira” nessa bem-sucedida travessia até os 30. Sua trilha-sonora, criada pelo maestro Shoji Yamashiro, à frente do grupo experimental Geino Yamashirogum, usou um coral ao lado de órgãos e percussões balinesas, criando uma atmosfera fantasmagórica que seria, mais tarde, reciclada por grupos como Underworld, Pop Will Eat Itself e Atari Teenage Riot. E ao abordar temas adultos – opressão militar, decadência urbana, insurreição popular, fanatismo religioso e falência educacional – o filme destacou-se em meio ao infantilismo da maior parte das produções do gênero até então, como ressalta Daniel Pinna, professor do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF (Universidade Federal Fluminense) e da Escola de Design da Universidade Veiga de Almeida.
“’Akira’ foi fundamental para a animação moderna porque contrariou a noção geral de que o gênero era exclusivamente dedicado ao público infantil”, afirma ele, que participou recentemente de um debate sobre os 30 anos de “Akira” na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). “Sua direção de arte é muito bem feita e não envelheceu, assim como o seu roteiro, que soa atual até hoje, ao falar de agitação estudantil, corrida armamentista, políticos corruptos e a ameaça de um golpe militar. E a forma como o filme usa metáforas para discutir os problemas de um futuro próximo lembra muito o que vemos em uma série como ‘Black mirror’”.
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Carlos Albuquerque (ou Calbuque) é jornalista de cultura, biólogo, DJ (daqueles que ainda usam vinil) e ocasional surfista de ondas ridiculamente pequenas. Escreve com a mão esquerda e Darwin é seu pastor.