Vida Além do Trabalho: movimento pelo fim da escala 6×1 ganha força

Petição ao Congresso, com mais de 740 mil assinaturas, afirma que jornada com apenas um dia de descanso causa exaustão física e mental dos trabalhadores

Por Ana Carolina Ferreira | ODS 8 • Publicada em 1 de fevereiro de 2024 - 09:10 • Atualizada em 7 de maio de 2024 - 12:49

Cartaz em manifestação do movimento Vida Além do Trabalho: pelo fim da escala de 6×1 (Foto: Davi Pinheiro. / Divulgação)

Rick Azevedo, jovem de 30 anos, tocantinense e morador do Rio de Janeiro, é TikToker desde 2020; a maioria dos vídeos publicados na rede social era sobre estrelas da música pop como Beyoncé e Rihanna. Mas foi no dia 13 de setembro do último ano que Rick viu sua conta ganhar destaque após mudar o rumo do conteúdo e abrir espaço para um desabafo pessoal: na época, balconista de uma farmácia, se sentia esgotado com a carga horária e escala intensa de trabalho. “Quero saber quando é que nós, da classe trabalhadora, iremos fazer uma revolução nesse país relacionada à escala 6×1. É uma escravidão moderna. Se a gente não se revoltar, colocar a boca no mundo, meter o pé na porta, as coisas não vão mudar”, disse em vídeo que já alcançou quase 900 mil views.

Percebo que todo mundo está exausto. Ninguém aguenta mais a escala e a carga horária. As pessoas estão doentes e querem mudanças, mas, em situação de tanto esgotamento mental e físico, não sabiam como fazer, como falar.

Rick Azevedo
Líder do Movimento Vida Além do Trabalho

A angústia era o resultado acumulado de doze anos com escala de seis dias de trabalho por um de folga com diferentes empregadores: curso de inglês, supermercado, lanchonete, lojas e farmácia. O estopim para publicação do vídeo foi que, no dia de folga, sua supervisora ligou avisando que Rick precisaria chegar mais cedo no dia seguinte, reduzindo ainda mais seu limitado tempo de descanso.

Apoiado por seguidores que se sentiam da mesma maneira, Rick (Ricardo) Azevedo seguiu o próprio conselho. Com a produção de vídeos totalmente voltados para a organização do movimento e chamadas para a rua, seus gritos de revolta tocaram os semelhantes. Foi nesse contexto de insatisfações que nasceu o Vida Além do Trabalho (VAT), movimento pelo fim da escala 6×1 e uma vida digna. Para seu líder, a aceitação é reflexo do cansaço do trabalhador atual. “Percebo que todo mundo está exausto. Ninguém aguenta mais a escala e a carga horária. As pessoas estão doentes e querem mudanças, mas, em situação de tanto esgotamento mental e físico, não sabiam como fazer, como falar. O movimento foi como um norte”, afirma Rick.

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O VAT cresce continuamente desde então. “Quando vi aquela proporção de engajamento, comecei a fazer mais vídeos no tema. Saí do emprego na farmácia. Criei uma comunidade no WhatsApp convocando os seguidores para organizar manifestações e panfletagens, pensando que daria 50 pessoas, mas foi além de dois mil participantes. Por isso, fizemos grupos de cada estado e, em seguida, achei que também precisava de algo mais oficial. Foi aí que pensei na petição”, explica Rick.

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Veja o que já enviamos

O abaixo-assinado digital deixa claro as reivindicações do movimento. O documento, que já conta com mais de 740 mil assinaturas, solicita, em destaque, a implementação de alternativas à escala 6×1 que promovam uma vida equilibrada, a criação de políticas de proteção ao trabalhador e uma fiscalização rigorosa. “É de conhecimento geral que a jornada de trabalho no Brasil frequentemente ultrapassa os limites razoáveis, com a escala de trabalho 6×1 sendo uma das principais causas de exaustão física e mental dos trabalhadores”, afirma o documento. “A carga horária abusiva imposta por essa escala de trabalho afeta negativamente a qualidade de vida dos empregados, comprometendo sua saúde, bem-estar e relações familiares”, acrescenta.  Para Rick, a resposta pode estar na adoção da escala 5×2, como o serviço prestado de segunda a sexta, ou a 4×3, proposta que tem sido estudada e aplicada como piloto em empresas de todo mundo através da iniciativa 4 Day Week Global.

Para os trabalhadores informais, o caso é ainda mais alarmante. São trabalhadores que, além da jornada extenuante, não possuem direitos trabalhistas, estão completamente desprotegidos pela Previdência Social e são ainda mais explorados pelo patrão

Ana Paula Brito
Dirigente nacional da CTB

A repercussão positiva do VAT tem gerado apoio de entidades, personalidades e políticos. É o caso da Central de Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), que acredita na possibilidade de uma solução factível e sustentável economicamente. “Na última semana, o presidente do Sindicato dos Comerciários do RJ e dirigente da Central, Márcio Ayer, oficiou o ministro do Trabalho e Emprego com a solicitação de uma audiência para debater o tema, e estamos confiantes que o ministro Luiz Marinho atenderá essa agenda. Intensificamos a pressão e usamos também as redes sociais, assim como de sindicatos filiados, para ampliar o alcance e o apoio popular. Estamos nas ruas costurando com diversos movimentos, dialogando com os trabalhadores. É preciso que toda a sociedade faça parte e se engaje nessa pauta”, explica Ana Paula Brito, dirigente nacional da CTB.

A saúde do trabalhador e a economia nacional parecem estar de lados opostos na luta por uma vida mais digna. Exceder o limite de 40 horas semanais com frequência pode gerar problemas fatais como aponta estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que associa a exposição a longas horas de trabalho a cerca de 750 mil mortes entre 2000 e 2016. No Brasil, onde a jornada de trabalho regida pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) é de 44 horas semanais, a redução da carga poderia resultar em melhor qualidade de vida dos cidadãos, aumento da produtividade e mais oportunidades, de acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese): a entidade calcula que a redução para 40 horas semanais geraria cerca de três milhões de novos postos, o que colaboraria com o cenário de desemprego atual.

O VAT tem como alvo a escala 6×1, realidade para muitos empregados com carteira assinada. A situação, entretanto, pode estar ainda pior para trabalhadores informais. Até agosto de 2023, o país registrou uma taxa de informalidade de 39,1% no mercado de trabalho, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE). Para Ana Paula, a esperança por mudanças nesse caso não é tão aparente quanto no movimento VAT. “Para os trabalhadores informais, o caso é ainda mais alarmante. São trabalhadores que, além da jornada extenuante, não possuem direitos trabalhistas, estão completamente desprotegidos pela Previdência Social e são ainda mais explorados pelo patrão”.

Rick Azevedo (de preto), líder do movimento Vida Além do Trabalho, em manifestação em Fortaleza ao lado do vereador Gabriel Aguiar: mais de 740 mil assinaturas contra escala 6x1 (Foto: Davi Pinheiro / Divulgação)
Rick Azevedo (de preto), líder do movimento Vida Além do Trabalho, em manifestação em Fortaleza ao lado do vereador Gabriel Aguiar: 600 mil assinaturas contra escala 6×1 (Foto: Davi Pinheiro / Divulgação)

Debate internacional

O VAT não é uma iniciativa solo. O Brasil tem importado movimentos similares dos EUA: o Antitrampo, na rede social Reddit – inspirado na comunidade antiwork americana na mesma rede – ganhou força na pandemia por conta do cansaço do trabalhador — aproximadamente 30% dos trabalhadores brasileiros sofrem com a doença ocupacional burnout, de acordo com pesquisa da International Stress Management Association (Isma-BR). A comunidade brasileira é uma rede de 94 mil membros que se reúnem virtualmente para desabafar sobre humilhações sofridas por superiores, pedir auxílios quanto a demissões e denunciar condições de trabalho, muitas vezes degradantes.

Um integrante da Antitrampo critica a prática “cumbuca”, na qual toda semana um colaborador da empresa é selecionado para apresentar um tema a ser debatido com a equipe. A iniciativa poderia ser motivadora, não fosse a proibição de estudar a pauta no horário de trabalho. “Isso tem me gerado mais desgosto do que vontade de desempenhar. Ultimamente, estou em modo quiet quitting (demissão silenciosa), fazendo o mínimo para continuar sem ir para o olho da rua enquanto não acho nada melhor, mas sem fazer pouco o bastante para levar uma justa causa”, explica o usuário ao relatar hora extra não-paga.

As pessoas começaram a ter uma certa aversão do que anteriormente era considerado uma realização de vida: o trabalho. Isso caiu como um castelo de areia a partir do avanço da inflação e do desemprego, que vão consumindo o tempo de vida muito além do 6×1

Bruno Chapadeiro
Psicólogo, professor da UFF e pesquisador da Rede de Estudos do Trabalho

Fazer o mínimo foi uma das soluções encontradas por muitos trabalhadores, mas medidas mais radicais também ganharam popularidade desde a pandemia. É o caso da Grande Resignação (Big Quit, expressão original em inglês), termo usado para se referir a altos índices de demissões voluntárias. No Brasil, nunca houve tantos pedidos de demissão, conforme levantamento da LCA Consultores a partir dos dados do Ministério do Trabalho e Emprego. Foram mais de 7 milhões de demissões voluntárias no período de 12 meses até setembro de 2023.

Num lugar entre o quiet quitting e a demissão voluntária está João*, de 31 anos, que trabalha desde a pandemia como atendente numa famosa farmácia de rede em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Oficialmente, sua escala de trabalho é 6×1, esta que o VAT clama pelo fim, mas, fora do papel, o cotidiano é ainda mais puxado: “Já cheguei a fazer interjornada (fechar um dia e abrir no outro) e ultrapassar o máximo de dias trabalhados – fiz 7×1 algumas vezes”, afirma João. Além de passar do horário de contribuição previsto, as funções também são excessivas. “As responsabilidades exigidas são atendimento ao cliente, caixa, organização, precificação, limpeza, manutenção de estoque e validade de produto. Até como balconista já atendi, vendendo remédios controlados sem ser a minha responsabilidade”, conta.

A falta de humanização e sensibilidade na cultura da empresa também são recorrentes no relato de João. Enquanto vendia remédios, uma dor sem cura ou analgésico o alcançou: era 25 de dezembro de 2020, em pleno Natal, quando sua mãe entrou em coma. “Foram meses em que eu não suportava mais ir à farmácia, pois era julgado por precisar ir duas ou três vezes na semana visitá-la. Era descontado financeiramente por horários em que precisei correr atrás de transferências hospitalares, ao tentar lutar pela vida da minha mãe”, conta. Quando ela morreu, teve apenas o dia do enterro como abono e, no dia seguinte, estava a postos para prestar serviço à empresa.

Mas João lembra que não pode pedir demissão enquanto não tiver a certeza de que terá comida no prato para ele e seus dois irmãos menores. Por isso, também atua como tatuador no ínfimo tempo livre que lhe resta, esperando um momento mais seguro para a transição integral de carreira. “É bem cansativo essa jornada dupla porque ainda preciso me desdobrar para fazer tudo dos dois lados e ainda ter tempo para os afazeres de casa. Sinto que estou assistindo a vida passar, e não vivendo de fato”, finaliza.

Impactos no Brasil

Transformações geracionais são ponto de partida para o novo significado atribuído ao trabalho. O psicólogo Bruno Chapadeiro, professor da UFF e pesquisador da Rede de Estudos do Trabalho, explica que os millennials e a geração Z entendem que as promessas neoliberais dos anos 1970, de que basta se desenvolver e estudar que atingirá o ‘lugar ao sol’, são falaciosas. Esse jovens alcançam o ensino médio, a faculdade e especializações, mas chegam no mercado de trabalho e se deparam com a falta de emprego. “As pessoas começaram a ter uma certa aversão do que anteriormente era considerado uma realização de vida: o trabalho. Isso caiu como um castelo de areia a partir do avanço da inflação e do desemprego, que vão consumindo o tempo de vida muito além do 6×1”, afirma Chapadeiro, especialista em psicologia organizacional e do trabalho, com mestrado em Ciências Sociais e doutorado em Educação. Nos estudos da sociologia e economia, esse grupo de jovens trabalhadores tem nome: precariado, termo criado combinação do adjetivo “precário” e do substantivo “proletariado”, para identificar uma classe emergente em todo o mundo, composta por trabalhadores que levam uma vida de insegurança, sem empregos permanentes.

Apesar da importação de movimentos e tendências do mercado de trabalho internacional, o pesquisador destaca que é preciso analisar o país que tem cenário diferente, principalmente na desigualdade econômica: dados do IBGE apontam que a taxa de pobreza era de 31,6% em 2022, o que representa 67,8 milhões de pessoas. “Ao comparar a Grande Resignação que acontece nos EUA e Europa com o Brasil, devemos nos perguntar: quem está aderindo à demissão em massa? Jovens brancos de classe média alta que conseguem um trabalho no dia seguinte. Médicos, profissionais de TI… a gente tem extratos de classe, raça e gênero aqui como agravantes de desigualdade. Precisamos entender como a importação dessas filosofias ocorrem num país chamado Brasil, porque Europa e Estados Unidos não têm essa preocupação com o que comer”, argumenta Bruno Chapadeiro.

Para o psicólogo e professor da UFF, para além da Grande Resignação versão brasileiro é preciso debater a implementação da escala 4×3, seja através do projeto 4 Day Week Global, que tem realizado pilotos em vários países, incluindo 20 empresas brasileiras, ou por meio da reivindicação do movimento VAT. O pesquisador acredita que há grandes chances de que o tempo livre do trabalhador seja ocupado com mais serviços ou especializações requeridas pelo empregador, e não para o lazer e promoção da saúde mental. “Acredito que o trabalho será intensificado, porque estamos dando destaque para as jornadas e esquecendo da organização e gestão do trabalho. Fica muito fácil esse tempo ser desrespeitado, como pela cobrança de projetos com curto prazo de entrega e a prerrogativa de que o funcionário teve tempo livre suficiente para realizar a tarefa”, afirma Chapadeiro.

*O nome foi trocado para proteção do entrevistado, visto que ele ainda trabalha no local.

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Ana Carolina Ferreira

Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.

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