ODS 1
Uma nova Primavera Árabe?
Como em 2011, onda de protestos na África exige mudanças em países onde os presidentes permanecem no cargo há décadas. Dois caíram em abril
Este seria o ano em que 17 governantes africanos -14 presidentes e três reis – completariam pelo menos uma década no poder. Mas 2019 começou com alguns deles se perguntando até quando conseguiriam se manter nos cargos, levando em consideração a onda de protestos que transformou pelo menos dois países da África em barris de pólvora. O povo se cansou, gritou, e, em abril, o exército agiu na Argélia e no Sudão, derrubando dois dos mais longevos ditadores africanos em menos de dez dias.
É impossível não comparar o que está acontecendo agora à Primavera Árabe, nome dado a onda de protestos de 2011 que derrubou e abalou ditaduras no norte da África e no Oriente Médio. O jornalista e professor de História da África no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio Alexandre dos Santos acha que não se trata de uma nova versão deste movimento.
— Eu acredito que esse é o soprar do mesmo vento de mudanças, que chegou com um atraso de oito anos no Sudão e que se tentou represar na Argélia. Mas não se enganem, nesses dois países, assim como em muitos Estados do continente africano, a mudança só acontece realmente quando há apoio das Forças Armadas — disse.
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Veja o que já enviamosOutros especialistas ouvidos pela reportagem também acham que isso é a continuidade do que começou oito anos atrás.
— Todos pensaram que teria um efeito imediato na África subsaariana, mas tivemos que esperar até 2014, quando Burkina Faso entrou em erupção e as pessoas tomaram as ruas para se livrar do ex-líder Blaise Compaore. Isto, por sua vez, inspirou pessoas do Senegal (contra um terceiro mandato do ex-presidente Abdoulaye Wade) e da RDC (contra Joseph Kabila). Assim, os acontecimentos na Argélia e no Sudão podem ser vistos como uma continuação de uma tendência em que as pessoas sentem que precisam sair às ruas para se livrarem de líderes antidemocráticos, mas cada país e região é diferente — disse pesquisadora sênior do Institute for Security Studies, na África do Sul, Liesl Louw-Vaudran.
O coordenador da Graduação em Relações Internacionais do Ibmec do Rio, José Niemeyer, comparou a Primavera Árabe à redemocratização na América latina.
— É um processo que continua, com uma diferença por envolver países com baixa tradição de abertura política, mas se constitui num processo de altos e baixos impactos, mas que sempre ficará presente, sendo a própria busca pela democracia e o seu aperfeiçoamento um processo sem fim.
Protestos continuam
Mesmo tendo conseguido o que queria (a saída de Omar al-Bashir do poder), parte do povo no Sudão continuou protestando, exigindo um governo civil. O medo é o Exército tomar gosto pela cadeira da presidência e não querer deixá-la mais. Inicialmente foi dito que os militares comandarão o país por dois anos. Mas como a notícia não agradou a todos os sudaneses, foi anunciado que este período de transição poderia durar menos, se tudo seguir sob controle. Mas o ministro da Defesa, General Awad Ibn Auf, que liderou o golpe de estado responsável pela queda e prisão de Bashir, também renunciou e nomeou o tenente-general Abdel Fattah Burhan como seu sucessor.
Omar al-Bashir (75) completaria 30 anos comandando o Sudão no próximo dia 30 de junho. Chegou ao poder da mesma forma que caiu, através de um golpe de estado liderado por ele em 1989.
Os protestos no Sudão pedindo a renúncia do ditador começaram em dezembro, mas ganharam força depois da queda do presidente da Argélia, no dia 02 de abril. O barulho vindo das ruas de várias cidades do país com o maior território do continente fez Abdelaziz Bouteflika (82) renunciar, faltando exatamente 25 dias para completar duas décadas como presidente do país.
Protestos com mesmos objetivos, mas em cenários diferentes
“Os argelinos agem como se não tivessem nada a perder”. A afirmação é da brasileira Fernanda Barbosa (41), que vive há mais de três anos na Argélia. Ela viu de perto as quase seis semanas de protestos que terminaram com o objetivo dos manifestantes alcançado e a renúncia do presidente Abdelaziz Bouteflika, que estava há 20 anos no poder.
Os furtos de carteiras entre a multidão, que Fernanda mesma chama de casos isolados, e o fato da polícia ter usado spray de pimenta contra manifestantes em algumas situações foram só detalhes para a brasileira. Ela teve receio de participar das gigantescas manifestações, apesar de ter ressaltado que foram protestos pacíficos.
— Nas primeiras semanas eu vi um movimento muito bonito, a determinação dos argelinos. Nas redes sociais, as pessoas falavam que não aceitariam mais essa situação e eu tinha medo de confrontos armados. Mas nos últimos dias vi até senhorinhas e crianças participando dessas manifestações. A determinação dos primeiros estimulou quem estava em cima do muro. Com o tempo parecia que até a polícia estava apoiando os protestos — disse.
[g1_quote author_name=”Alexandre Santos” author_description=”Jornalista e professor de História da África no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio ” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Eu acredito que esse é o soprar do mesmo vento de mudanças, que chegou com um atraso de oito anos no Sudão e que se tentou represar na Argélia. Mas não se enganem, nesses dois países, assim como em muitos Estados do continente africano, a mudança só acontece realmente quando há apoio das Forças Armadas
[/g1_quote]Já no Sudão, o cenário foi bem violento. Após confrontos com forças de segurança, cerca de 50 pessoas morreram, segundo autoridades locais. ONGs que defendem os direitos humanos no país garantem que o número de mortos passa de 60. E ainda, 136 manifestantes foram presos. Porém, agora devem ser soltos, como prometeu o General Awad Ibn Auf.
A população vem reclamando da crescente inflação, escassez de alimentos e do enfraquecimento da moeda. A corrupção é um grande problema no Sudão, que ocupa o 172º lugar, entre 180 países, no Corruption Perceptions Index 2018, da Transparência Internacional.
A Constituição do país está suspensa e, com o golpe, foram dissolvidos o gabinete governamental, a Assembléia Nacional e órgãos municipais.
Omar al-Bashir já era acusado de crimes de guerra e contra a humanidade pelo Tribunal Penal Internacional. Por conta disso, havia dois mandados de prisão emitidos em nome dele (um de 2009 e outro de 2010). O Conselho de Segurança da ONU pediu que, em 2005, o TPI investigasse crimes em Darfur, onde mais de 300 mil pessoas morreram e milhões acabaram tendo que se deslocar depois que grupos étnicos se rebelaram contra o governo al-Bashir, em 2003, de acordo com a ONU. Dos 11 fatos sob investigação do TPI atualmente, dez envolvem países africanos.
Na Argélia, ao contrário do que houve no Sudão, o Exército não tomou o poder. A Constituição foi respeitada e, interinamente, o comando do país agora está com Abdelkader Bensalah (76). Nos últimos 17 anos ele presidiu o Conselho da Nação (equivalente ao Senado brasileiro) e tem como uma das mais marcantes características a fidelidade ao antecessor, o que preocupa parte da população. O interino Bensalah marcou nova eleição para julho.
Os protestos argelinos começaram quando, em fevereiro, Buteflika anunciou que disputaria um quinto mandato. As manifestações não pararam mesmo quando o governo anunciou que o veterano havia desistido de uma nova disputa.
O Exército ouvir o clamor das ruas e deu ultimato ao presidente, que, por sua vez, decidiu jogar a toalha. Buteflika deixou o cargo logo depois que o chefe do Estado-Maior do Exército, general Ahmed Gaid Salah, exigiu uma ação imediata para afastá-lo do cargo, por conta dos incontroláveis protestos. “Não há mais tempo a perder”, escreveu o general, segundo a imprensa local. O comunicado do Ministério da Defesa deu voz ao povo argelino.
Desde 2013, após sofrer um derrame, Bouteflika se locomove com uma cadeira de rodas e quase não é visto publicamente. Críticos garantem que, na verdade, quem vinha governando eram as Forças Armadas.
A Argélia foi responsável por 44% de todas as importações brasileiras daquele continente entre janeiro do ano passado e fevereiro deste ano. Foi também o segundo país africano que mais importou produtos brasileiros no mesmo período.
Continente dos presidentes “eternos”
Os governos longevos formam um cenário no continente causado por uma “doença pós-colonial”, como classificou a pesquisadora do Instituto para o Diálogo Global Remofiloe Lobakeng, especialista em política internacional, em um recente artigo publicado sobre o tema.
— Esses presidentes prolongam sua permanência no cargo através de vários meios, como emendas à constituição. Estão preparados para fazer qualquer coisa para permanecer no cargo — escreveu.
A pesquisadora do IDG lembra que as intimidações aos opositores, que acabam presos ou até mortos, são comuns nesses países onde eleições foram proibidas, manipuladas ou simplesmente ignoradas nas últimas décadas.
— Isso não produziu resultados positivos para o continente, mas serviu para impedir perspectivas de crescimento e prosperidade — completou.
Quem será o próximo?
Atualmente também há manifestações na Tunísia, considerada o berço da Primavera Árabe. Este mês, o preço do combustível subiu pela sexta vez desde 2017. Mas o tumulto começou, mesmo, depois que um homem ateou fogo ao próprio corpo em praça pública, em protesto contra a pobreza na nação, no fim do ano passado. Desde então, há manifestações acontecendo no país.
Com uma população de quase 12 milhões de habitantes, a taxa de desemprego na Tunísia passa dos 15%. Abderrazak Zorgui, 32 anos, não resistiu às queimaduras e morreu no hospital, na véspera do Natal. Ele gravou um vídeo antes do suicídio. Isso despertou a ira de jovens que foram às ruas protestar contra o governo.
O país é governado pelo mais velho presidente africano atualmente no poder. Béji Caïd Essebsi tem 92 anos e já disse, em resposta aos protestos, que não vai tentar se reeleger. Ele não está entre os mais longevos governantes da África, pois assumiu o cargo em 2014, mas definitivamente parece não estar agradando a população deste país traumatizado por um longo governo no passado. O atual líder da Tunísia teve 55,68% dos votos na primeira eleição presidencial depois da onda de manifestações, chamada de Revolução de Jasmim, que terminou com a saída do então presidente Zine El Abidine Ben Ali, que estava no poder havia 24 anos.
O jornalista e professor de História da África Alexandre dos Santos lembra que no passado alguns desses governantes foram idolatrados. Um exemplo foi o próprio Abdelaziz Bouteflika, que lutou para que a Argélia deixasse de ser uma colônia da França, em 1962.
— Muitos desses presidentes vêm de um legado de homens fortes. São heróis nacionais, líderes políticos dentro de suas aldeias e são representados dentro das Assembléias Legislativas, dos Congressos. E quando assumiram o poder eles ainda ganhavam uma base de esteio dos EUA e União Soviética — explicou.
[g1_quote author_name=”Remofiloe Lobakeng” author_description=”Pesquisadora do Instituto para o Diálogo Global” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Esses presidentes prolongam sua permanência no cargo através de vários meios, como emendas à Constituição. Estão preparados para fazer qualquer coisa para permanecer no cargo
[/g1_quote]O ano de 2019 começou com eleições previstas em 18 países da África. Duas das consideradas mais importantes já aconteceram: Nigéria e Senegal (em ambos os presidentes foram reeleitos). O pesquisador do Institute of Security Studies Mahomed Diatta destaca a negligência eleitoral (fraude, compra de votos, intimidação, etc.) como uma das justificativas para a vitória dos líderes africanos em seguidas eleições.
— Quando tais líderes vencem legitimamente, também é, muitas vezes, porque eliminaram o pluralismo político e quase não existe uma forte oposição para disputar eleições. Alguns líderes podem desfrutar de um nível de apoio de certas seções da população onde a consciência política e o ativismo político ainda não estão presentes — disse.
No dia 8 de maio, os sul-africanos irão às urnas. O atual presidente, Ciryl Ramaphosa, está no páreo e tenta se reeleger. Ele é o quinto presidente consecutivo do Congresso Nacional Africano (ANC, silga em inglês), partido que está no poder desde 1994, quando Nelson Mandela foi eleito.
O MAIS ANTIGO PRESIDENTE DO MUNDO É AFRICANO
Teodoro Obiang Nguema Mbasogo completa, em agosto, quatro décadas governando a Guiné Equatorial. Não há no planeta hoje em dia um outro presidente que esteja há tanto tempo (ou mais) no cargo. Ele chegou ao poder após um sangrento golpe de estado que derrubou o próprio tio, Francisco Macías, em 1979. Seu atual mandato vai até 2022.
Aos 76 anos de idade, Nguema já foi considerado pela revista Forbes o oitavo presidente mais rico do mundo. Estima-se que sua fortuna seja de US$ 600 milhões. No ano passado ele também foi eleito presidente vitalício do partido ao qual pertence e que desde de a sua fundação, em 1979, o tem como presidente.
Seu sobrenome foi destaque na mídia brasileira em setembro do ano passado, após o filho dele, que também é vice-presidente do país, Teodoro Obiang Mang, ter tido malas com US$1,5 milhão, R$ 55 mil e relógios avaliados em US$ 15 milhões apreendidas no aeroporto de Viracopos, em São Paulo.
— Alguns líderes usam suas presidências para acumular riqueza pessoal e dispensar o patrocínio, o que os faz relutantes em entregar o poder a novas administrações por medo de serem responsabilizados por seus crimes — comentou a pesquisadora do Instituto para o Diálogo Global Remofiloe Lobakeng.
Apesar de ser o terceiro país que mais produz petróleo na África, a pobreza é a realidade realidade de boa parte da população da Guiné Equatorial, que está em 141º lugar no ranking de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da ONU, entre 189 países.
“HOMEM LEÃO”
O segundo presidente africano há mais tempo no cargo é o do Camarões, Paul Byia, um político que adotou o apelido de “homem leão” e, aos 85 anos, não esconde o apetite voraz pelo poder. No ano passado, foi eleito para o sétimo mandato. Há 36 anos ele chefia este país da África Central. Com o slogan “A Força da Experiência”, Paul Biya derrotou os 8 adversários na 11ª eleição do país desde que conquistou a independência, em 1960. Não havia sequer uma mulher na disputa.
Quase 7 milhões de eleitores foram registrados para votar (6.667.754), mas pouco mais da metade compareceu (53,85% ou 3.590.681). Houve boicote, principalmente, nas regiões anglófonas do país.
— Isso já é um indicativo de que as pessoas não veem possibilidade de mudança — analisou Alexandre dos Santos, jornalista e professor de História da África.
Nem todos os planos de derrubar governantes africanos nas últimas décadas deram certo. Paul Byia sobreviveu a uma tentativa de golpe de Estado em abril de 1984, quando guardas do palácio presidencial tentaram tirá-lo da presidência do Camarões.
A mais recente dessas fracassadas tentativas na África foi em janeiro, quando militares quiseram tomar o poder no Gabão. O presidente do país completará em outubro 10 anos no cargo, mas o sobrenome desta família está no poder há mais de cinco décadas. Ele é filho de Omar Bongo, que governou o país por 42 anos. Omar Bongo morreu em 2009, ano em que o filho foi eleito.
RENOVAÇÃO LENTA
Desde janeiro do ano passado, houve mudança de governo em nove países africanos, sendo que dois deles tomaram posse no início de 2019. Nesta lista está a Etiópia, que atualmente é a única nação governada por uma mulher na África. A diplomata Sahle-Work Zewde foi escolhida pelo Parlamento, em outubro, para ser a primeira mulher a presidir o país.
Em 2017, três países se livraram de presidentes que há décadas estavam no poder: Gambia (Yahya Jammeh estava há 23 anos como presidente), Zimbabwe (Robert Mugabe governou por 37 anos) e Angola (Eduardo dos Santos presidiu o país por 38 anos). Mugabe era o presidente africano mais velho até que, em novembro de 2017, aos 93 anos, foi forçado a renunciar ao cargo sob forte pressão de militares.
— O Zimbábue já foi um dos estados mais ricos do continente, mas tombou sob a tentativa do ex-presidente Robert Mugabe de ser presidente vitalício. O Zimbábue tornou-se conhecido por seu subdesenvolvimento crônico, uma economia em colapso e alegações de que o ex-presidente estava usando indevidamente fundos federais — afirmou Remofiloe Lobakeng.
— Essa doença dos ‘presidentes pra vida toda’ está provando ser um dos obstáculos mais duradouros para a governança democrática da África, assim como seu crescimento e prosperidade — destacou, ainda, a especialista em política internacional
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É jornalista desde 2004. Atualmente é correspondente na África para a GloboNews e outros meios brasileiros. Coordenou o projeto de Jornalismo independente "E aí, vereador?", apoiado pela Associação Brasileira de Imprensa. Em 2014 foi um dos palestrantes do Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, em São Paulo, quando falou sobre investigações em câmaras municipais.