Um erro e muitos acertos na busca por diversidade racial no Oscar 2019

Spike Lee é abraçado por Samuel L. Jackson ao ganhar o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado ( Kevin Winter/Getty Images/AFP)

Prêmios inéditos para Spike Lee e profissionais negras vitoriosas em categorias técnicas não apagam polêmica que cerca vencedor de Melhor Filme

Por Thaís Britto | ODS 8ODS 9 • Publicada em 26 de fevereiro de 2019 - 01:33 • Atualizada em 26 de fevereiro de 2019 - 01:40

Spike Lee é abraçado por Samuel L. Jackson ao ganhar o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado ( Kevin Winter/Getty Images/AFP)
Spike Lee é abraçado por Samuel L. Jackson ao ganhar o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado ( Kevin Winter/Getty Images/AFP)
Spike Lee é abraçado por Samuel L. Jackson ao ganhar o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado ( Kevin Winter/Getty Images/AFP)

Quando criou a hashtag #OscarsSoWhite, em 2015, a blogueira April Reign provavelmente não previa que aquele tweet desencadearia mudanças reais na premiação hollywoodiana. Quatro anos depois, a cerimônia do Oscar exibida neste domingo bateu um recorde ao premiar pessoas não brancas em pelo menos dez categorias.

Foi ao assistir a transmissão dos indicados daquele ano que April lançou a hashtag no Twitter, propondo um boicote à cerimônia que tinha uma quase totalidade de pessoas brancas entre os potenciais vencedores. A campanha tomou enorme proporção e balançou a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas: naquele mesmo ano, sua então presidente, Cheryl Boone Isaacs, anunciou uma série de medidas para promover mais diversidade entre os votantes.

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Há 400 anos nossos ancestrais foram roubados da África e escravizados. Precisamos nos reconectar com nossos ancestrais para resgatar nossa humanidade

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As mudanças começaram a ser sentidas em 2017, quando pela primeira vez na história todas as categorias de atuação tinham atores negros entre os indicados, e “Moonlight”, de Barry Jenkins, levou o prêmio de melhor filme – após a histórica trapalhada com a troca de envelopes. No ano seguinte, mais uma “primeira vez”: Jordan Peele foi o primeiro negro a receber o prêmio de roteiro original por “Corra”. Mas a diversidade racial ficou levemente em segundo plano, já que a cerimônia aconteceu à luz do movimento #MeToo, contra o assédio sexual na indústria do cinema.

Este ano o recorde de prêmios veio com mais estreantes entre os ganhadores e, embora represente uma grande vitória, deixa também claro o longo caminho que ainda precisa ser percorrido. “Green book”, que levou a estatueta de Melhor Filme, está cercado de polêmicas e recebeu críticas de vozes negras em Hollywood. Como disse a própria April Reign em entrevista no tapete vermelho, enquanto ainda estivermos discutindo as “primeiras vezes” de vencedores negros em pleno 2019, a campanha #OscarsSoWhite seguirá sendo relevante.

Spike Lee abre o verbo: Com mais de 30 anos de carreira e algumas obras-primas do cinema no currículo, Spike Lee enfim ganhou seu primeiro Oscar “oficial” (ele tem um honorário) com o roteiro adaptado de “Infiltrado na Klan”. Em um discurso emocionado, ele falou sobre escravidão, ancestralidade e fez um apelo pelo voto “do lado certo da história” nas eleições americanas de 2020. “Há 400 anos nossos ancestrais foram roubados da África e escravizados. Precisamos nos reconectar com nossos ancestrais para resgatar nossa humanidade”, disse.

Vitórias inéditas de mulheres negras: outras duas debutantes vitórias da Academia de Cinema vieram da equipe de “Pantera negra”: Ruth E. Carter e Hannah Bleacher foram as primeiras mulheres negras a vencer em suas respectivas categorias: figurino e direção de arte. Um detalhe: elas são também as primeiras mulheres negras a vencer numa categoria que não seja de atuação desde 1984! “A Marvel pode ter criado o primeiro super-herói negro, mas com o figurino nós o transformamos num rei africano”, ressaltou Ruth em seu discurso. Já Hannah destacou o quanto se tornou uma mulher mais forte após o trabalho no filme: “Quando tudo parecer impossível, pensem nesta frase que aprendi com uma mulher muito sábia: ‘Eu fiz o meu melhor, e meu melhor é suficiente’.”  

Já Peter Ramsey tornou-se o primeiro diretor negro a conquistar a categoria de melhor animação com “Homem-Aranha no Aranhaverso”, que traz o super-herói como um adolescente negro.

Rami Malek, Olivia Colman, Regina King e Mahershala Ali, vencedores nas categorias de atuação: diversidade (Foto Hubert Boesl/DPA)

Diversidade na atuação: Entre as quatro melhores performances do ano segundo a Academia, três foram de atores não brancos. Mahershala Ali e Regina King levaram as categorias de coadjuvantes por, respectivamente, “Green book” e “Se a Rua Beale falasse”. Já Rami Malek – que é descendente de egípcios – ganhou como melhor ator por “Bohemian Rhapsody”.

Aqui cabe um comentário: apenas cinco atores negros venceram nas categorias principais de atuação em toda a história do Oscar. Foram Sidney Poitier (“Uma voz nas sombras”, 1964), Denzel Washington (“Dia de treinamento”, 2002), Jamie Foxx (“Ray”, 2005), Forest Whitaker (“O último rei da Escócia”, 2007) e Halle Berry (“A última ceia”, 2002) – até hoje a única mulher negra a possuir um Oscar de melhor atriz.

México sem muro no Oscar: o filme do diretor Alfonso Cuarón tinha como protagonista uma mexicana de origem indígena – e ela própria estava indicada ao prêmio de melhor atriz. Cuarón se tornou o cineasta mexicano mais condecorado pelo Oscar neste domingo, com os prêmios de direção, filme estrangeiro e fotografia.  

A relação dos EUA com o México e o famigerado muro prometido por Trump foram citados em diversos momentos da premiação, de Maya Rudolph logo no início da cerimônia dizendo, textualmente, “O México não vai pagar pelo muro”, até Cuarón finalizando seu discurso como melhor diretor com um “Muchas gracias, México”. O ator espanhol Javier Bardem também tocou no assunto e, em sua língua nativa, disse que “não há fronteiras e muros que freiem a inventividade e o talento”.

Racismo contado por brancos: o grande vencedor da noite poderia ser considerado superficialmente como uma vitória do movimento #OscarsSoWhite, mas um olhar mais aproximado mostra que não é bem assim. O longa de Peter Farrelly quer discutir racismo… com uma equipe inteira de pessoas brancas. O enredo da história de amizade do pianista Don Shirley  (vivido por Mahershala Ali) com Tony Vallelonga, motorista do músico numa turnê interpretado por Viggo Mortensen, é uma enorme passada de pano no racismo dos brancos ou, segundo o próprio Farrelly em seu discurso, um filme sobre “amar uns aos outros apesar das diferenças”. Além disso, a família de Don Shirley disse que o filme é uma sinfonia de mentiras. Para piorar, Nick Vallelonga é acusado de xenofobia.

Spike Lee sabe bem que racismo não é “diferença” e fez menção até de deixar o auditório na hora em que “Green book” foi anunciado como melhor filme. Na entrevista após a cerimônia, o diretor de “Infiltrado na Klan” relacionou o filme de Farrelly a “Conduzindo Miss Daisy”, longa de temática semelhante – e igualmente passador de pano… – que, coincidentemente, venceu como melhor filme no ano em que Spike Lee lançou seu essencial “Faça a coisa certa”, que não estava nem indicado. “Parece que toda vez que tem alguém conduzindo alguém, eu perco”, disse Lee na entrevista depois de umas taças de champanhe.

Thaís Britto

Carioca, tradutora e jornalista formada pela Uerj (#resiste), com passagens pelo jornal O Globo e pela editora Record. Fascinada em igual medida por ficção e pela realidade. Cultura, viagens e empatia são provavelmente suas palavras favoritas na vida.

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