Contrate Quem Luta: aplicativo do MTST faz sucesso com prestação de serviços

Aplicativo conecta integrantes do movimento social a clientes; meta é desenvolver plataforma e até incluir e-learning

Por Ana Carolina Aguiar | ODS 8 • Publicada em 30 de janeiro de 2023 - 10:49 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 14:39

Edson há dois anos é um dos coordenadores do Contrate Quem Luta em São Paulo na região Sul/Sudoeste. Foto:Reprodução/Instagram

O nome já diz tudo: Contrate Quem Luta. O aplicativo desenvolvido pelo Núcleo de Tecnologia do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) busca criar oportunidades aos trabalhadores a partir da tecnologia. Logo ela, que, muitas vezes, é associada à precarização ou a perda de postos de emprego. Com quase dois anos de vida, o CQL conecta os integrantes do movimento a pessoas que precisam de alguma prestação de serviços. Hoje, com cerca de 260 prestadores na base de dados, o CQL atua na Grande São Paulo e a expectativa é que se expanda para outros lugares do Brasil como Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Alagoas e Minas Gerais ainda este ano.

A ideia do CQL começou com integrantes do MTST do Rio de Janeiro, mas sem ser um processo automatizado. Era apenas um número de Whatsapp com o qual os possíveis clientes podiam entrar em contato para buscar um prestador de serviço qualificado para a demanda e, claro, participante do movimento.

Como que a gente poderia botar essas tecnologias que, normalmente, são utilizadas para geração de lucro e reforçar uma lógica de exploração da classe trabalhadora em função da própria classe trabalhadora?

Felipe Bonel
Núcleo de Tecnologia do MTST

Em 2019, um militante do MTST sugeriu que esse serviço fosse transformado num aplicativo. Nessa mesma época, nascia o Núcleo de Tecnologia do movimento. Após uma vivência com a tecnologia a partir de uma lógica capitalista nas empresas em que trabalhavam, os companheiros do movimento começaram, de forma coletiva, a questionar o uso da tecnologia diante desse contexto social.  “Como que a gente poderia botar essas tecnologias que, normalmente, são utilizadas para geração de lucro e reforçar uma lógica de exploração da classe trabalhadora em função da própria classe trabalhadora?”, reflete Felipe Bonel, um dos desenvolvedores do Contrate Quem Luta. 

Inteligência artificial para gerar trabalho

A partir dessa vontade de subverter o uso da tecnologia, em meados de 2020, o Núcleo de Tecnologia conseguiu juntar gente suficiente para automatizar o Contrate Quem Luta. Em conversas com os acampados, os desenvolvedores entenderam quais eram as necessidades e as possibilidades técnicas para eles usarem o aplicativo. O funcionamento do CQL consiste em um robô, à base de inteligência artificial, perguntar para a pessoa qual o tipo de ajuda ela precisa. Ele entende tanto afirmações diretas quanto algumas abstrações. “Após isso, ele pede a geolocalização do usuário, analisando longitude e latitude. Depois, organiza todos os trabalhadores do MTST na base de dados por geolocalização para conseguir indicar o prestador de serviço que esteja numa ocupação mais próxima daquele possível contratante, colocando-os em contato”, explica Bonel.

Planos de incluir e-learning

Integrante do Núcleo de Tecnologia, Bonel revela mais um objetivo para este ano. “Estamos trabalhando outros pontos para fechar a lógica do CQL. Começou como um aplicativo de trabalho, mas também pensamos em fazer uma plataforma que consiga fechar todo o círculo de contratações profissionais”. A ideia é possibilitar uma qualificação profissional para os prestadores de serviço, por meio de e-learning, e também disponibilizar um portal de contratação para empresas interessadas em uma parceria terem acesso direto ao currículo dos prestadores de serviço que estão na base de dados.

O aplicativo não tem custo para o trabalhador. Diante do contexto de pandemia em 2021 — quando a primeira versão do CQL foi lançada –, os desenvolvedores se preocuparam em viabilizar um aplicativo que não cobrasse os trabalhadores.  “A construção civil e os serviços domésticos, por exemplo,  foram severamente impactados. E as pessoas precisavam de ajuda para botar o pão na mesa. Fomos atrás de desenvolver uma ferramenta em que as pessoas pudessem fazer isso e não tivessem que pagar taxas abusivas para alguma empresa intermediária de tecnologia”. O prestador de serviço do CQL tem a liberdade de dar o orçamento para o cliente, mas é necessário que participe das reuniões mensais da plataforma e compartilhe a experiência com os outros companheiros. Apresentação da plataforma Contrate Quem Luta na Ocupação Luisa Mahin, extremo Sul de São Paulo, em março de 2022. Foto: Divulgação/InstagramApresentação da plataforma Contrate Quem Luta na Ocupação Luisa Mahin, extremo Sul de São Paulo, em março de 2022. Foto: Divulgação/Instagram

Trabalho na pandemia

No primeiro ano de operação, o CQL tinha cerca de 150 pessoas cadastradas na base de dados e houve a geração de mais de 5000 oportunidades de trabalho.”Com pouca divulgação, com o poder das redes do MTST, com eventuais posts na página do Guilherme Boulos e com todos os preconceitos que as pessoas têm com movimentos sociais e os sem-teto, a gente conseguiu gerar oportunidade suficiente para botar 150 pessoas para trabalhar durante um dos anos mais difíceis da economia brasileira”, conta. Bonel enxerga o impacto na vida de alguns desses trabalhadores que conseguiram manter uma renda fixa com o CQL pela fidelização dos clientes ou pela recomendação do serviço para outras pessoas. 

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Ator divulgou Contrate Quem Luta

Um desses trabalhadores é Edson Lima. Militante do MTST com atuação nos setores de organização e autodefesa e também mestre de obras, Edson é coordenador do CQL na região Sul/Sudoeste e presta serviços de construção civil. “Chego na casa da pessoa, me apresento e pergunto no que eu posso ajudar. Cobro 50 reais pela visita. Conseguindo resolver na hora, eu faço. Se não, falo a quantidade do material que precisa e o quanto vai ficar”, conta. Focado em fazer o seu trabalho, entre muitas demandas, ele não repara na casa das pessoas e já atendeu chamadas tanto de anônimos quanto famosos. 

Inclusive, no início deste mês de janeiro, o ator Sérgio Marone divulgou o aplicativo do CQL em uma das suas redes sociais. Com quase 2 milhões de visualizações no post, a demanda pelos serviços prestados foi a maior desde o surgimento da iniciativa em fevereiro de 2021. “O movimento da plataforma estava um pouco baixo e estávamos aproveitando para testar algumas inovações na forma como a gente lidava com os fluxos. Com o post, de 5 de janeiro até aqui, a gente teve mais movimento no CQL do que no ano de 2022 inteiro”, conta Bonel.

Para conciliar luta e ofício

Edson destaca a autonomia no trabalho como um dos dos impactos do CQL em sua vida. “Antes eu trabalhava em empresa e, aqui no CQL, eu sou o meu próprio patrão. Eu não tenho horário para trabalhar, eu trabalho agendado. E, financeiramente, é muito mais que o salário de um mestre de obras, umas três vezes mais”, relata. Além disso, atualmente, ele tem muito mais tempo para poder se dedicar à militância. Por fazer parte de dois setores do MTST, ele tem muitas reuniões e atos. “Quando faço ocupação, eu preciso ficar 15 dias fora e formar os novos setores de autodefesa das pessoas que vão cuidar da segurança do terreno. Se eu estou numa empresa, como faço isso?”

CQL é positivo para o MTST

Para o militante, o CQL é uma iniciativa maravilhosa para o movimento. Antes, o foco do seu trabalho social era ocupar terra e dar moradia. “Agora eu tenho condições de dar o que eu dava antes e chegar na ocupação falando que tem trabalho também. A ocupação é o último lugar que uma pessoa quer ir, a gente vai morar na ocupação porque está numa situação muito difícil. É pé no barro, é lama com criança pequena e tudo”. Edson reafirma o quanto o CQL pode ajudar a vida dessas pessoas a terem condições de alugar uma casa em vez de ficar na ocupação ou de poder ter a própria comida em vez de precisarem enfrentar filas para a Cozinha Solidária.

Por ser um braço do MTST, não tem como desvincular o CQL do movimento social. A iniciativa permite que haja um diálogo com a sociedade sobre o movimento. “Quando andamos na rua com a blusa do MTST ou do próprio CQL, somos identificados. As pessoas param pra conversar, querem conhecer o movimento e tudo. Então, isso aqui não é status. Foi uma maneira que encontramos de unir o prestador a quem precisa do trabalho.”

Ana Carolina Aguiar

Jornalista, comunicadora antirracista, da Baixada Fluminense e apaixonada por ouvir e contar histórias. Seja por meio da fotografia, audiovisual ou escrita. Foi estagiária da assessoria de comunicação do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro e colaboradora do portal Notícia Preta.

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