O nome já diz tudo: Contrate Quem Luta. O aplicativo desenvolvido pelo Núcleo de Tecnologia do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) busca criar oportunidades aos trabalhadores a partir da tecnologia. Logo ela, que, muitas vezes, é associada à precarização ou a perda de postos de emprego. Com quase dois anos de vida, o CQL conecta os integrantes do movimento a pessoas que precisam de alguma prestação de serviços. Hoje, com cerca de 260 prestadores na base de dados, o CQL atua na Grande São Paulo e a expectativa é que se expanda para outros lugares do Brasil como Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Alagoas e Minas Gerais ainda este ano.
A ideia do CQL começou com integrantes do MTST do Rio de Janeiro, mas sem ser um processo automatizado. Era apenas um número de Whatsapp com o qual os possíveis clientes podiam entrar em contato para buscar um prestador de serviço qualificado para a demanda e, claro, participante do movimento.
Em 2019, um militante do MTST sugeriu que esse serviço fosse transformado num aplicativo. Nessa mesma época, nascia o Núcleo de Tecnologia do movimento. Após uma vivência com a tecnologia a partir de uma lógica capitalista nas empresas em que trabalhavam, os companheiros do movimento começaram, de forma coletiva, a questionar o uso da tecnologia diante desse contexto social. “Como que a gente poderia botar essas tecnologias que, normalmente, são utilizadas para geração de lucro e reforçar uma lógica de exploração da classe trabalhadora em função da própria classe trabalhadora?”, reflete Felipe Bonel, um dos desenvolvedores do Contrate Quem Luta.
Inteligência artificial para gerar trabalho
A partir dessa vontade de subverter o uso da tecnologia, em meados de 2020, o Núcleo de Tecnologia conseguiu juntar gente suficiente para automatizar o Contrate Quem Luta. Em conversas com os acampados, os desenvolvedores entenderam quais eram as necessidades e as possibilidades técnicas para eles usarem o aplicativo. O funcionamento do CQL consiste em um robô, à base de inteligência artificial, perguntar para a pessoa qual o tipo de ajuda ela precisa. Ele entende tanto afirmações diretas quanto algumas abstrações. “Após isso, ele pede a geolocalização do usuário, analisando longitude e latitude. Depois, organiza todos os trabalhadores do MTST na base de dados por geolocalização para conseguir indicar o prestador de serviço que esteja numa ocupação mais próxima daquele possível contratante, colocando-os em contato”, explica Bonel.
Planos de incluir e-learning
Integrante do Núcleo de Tecnologia, Bonel revela mais um objetivo para este ano. “Estamos trabalhando outros pontos para fechar a lógica do CQL. Começou como um aplicativo de trabalho, mas também pensamos em fazer uma plataforma que consiga fechar todo o círculo de contratações profissionais”. A ideia é possibilitar uma qualificação profissional para os prestadores de serviço, por meio de e-learning, e também disponibilizar um portal de contratação para empresas interessadas em uma parceria terem acesso direto ao currículo dos prestadores de serviço que estão na base de dados.
O aplicativo não tem custo para o trabalhador. Diante do contexto de pandemia em 2021 — quando a primeira versão do CQL foi lançada –, os desenvolvedores se preocuparam em viabilizar um aplicativo que não cobrasse os trabalhadores. “A construção civil e os serviços domésticos, por exemplo, foram severamente impactados. E as pessoas precisavam de ajuda para botar o pão na mesa. Fomos atrás de desenvolver uma ferramenta em que as pessoas pudessem fazer isso e não tivessem que pagar taxas abusivas para alguma empresa intermediária de tecnologia”. O prestador de serviço do CQL tem a liberdade de dar o orçamento para o cliente, mas é necessário que participe das reuniões mensais da plataforma e compartilhe a experiência com os outros companheiros.
Trabalho na pandemia
No primeiro ano de operação, o CQL tinha cerca de 150 pessoas cadastradas na base de dados e houve a geração de mais de 5000 oportunidades de trabalho.”Com pouca divulgação, com o poder das redes do MTST, com eventuais posts na página do Guilherme Boulos e com todos os preconceitos que as pessoas têm com movimentos sociais e os sem-teto, a gente conseguiu gerar oportunidade suficiente para botar 150 pessoas para trabalhar durante um dos anos mais difíceis da economia brasileira”, conta. Bonel enxerga o impacto na vida de alguns desses trabalhadores que conseguiram manter uma renda fixa com o CQL pela fidelização dos clientes ou pela recomendação do serviço para outras pessoas.
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Veja o que já enviamosAtor divulgou Contrate Quem Luta
Um desses trabalhadores é Edson Lima. Militante do MTST com atuação nos setores de organização e autodefesa e também mestre de obras, Edson é coordenador do CQL na região Sul/Sudoeste e presta serviços de construção civil. “Chego na casa da pessoa, me apresento e pergunto no que eu posso ajudar. Cobro 50 reais pela visita. Conseguindo resolver na hora, eu faço. Se não, falo a quantidade do material que precisa e o quanto vai ficar”, conta. Focado em fazer o seu trabalho, entre muitas demandas, ele não repara na casa das pessoas e já atendeu chamadas tanto de anônimos quanto famosos.
Inclusive, no início deste mês de janeiro, o ator Sérgio Marone divulgou o aplicativo do CQL em uma das suas redes sociais. Com quase 2 milhões de visualizações no post, a demanda pelos serviços prestados foi a maior desde o surgimento da iniciativa em fevereiro de 2021. “O movimento da plataforma estava um pouco baixo e estávamos aproveitando para testar algumas inovações na forma como a gente lidava com os fluxos. Com o post, de 5 de janeiro até aqui, a gente teve mais movimento no CQL do que no ano de 2022 inteiro”, conta Bonel.
Para conciliar luta e ofício
Edson destaca a autonomia no trabalho como um dos dos impactos do CQL em sua vida. “Antes eu trabalhava em empresa e, aqui no CQL, eu sou o meu próprio patrão. Eu não tenho horário para trabalhar, eu trabalho agendado. E, financeiramente, é muito mais que o salário de um mestre de obras, umas três vezes mais”, relata. Além disso, atualmente, ele tem muito mais tempo para poder se dedicar à militância. Por fazer parte de dois setores do MTST, ele tem muitas reuniões e atos. “Quando faço ocupação, eu preciso ficar 15 dias fora e formar os novos setores de autodefesa das pessoas que vão cuidar da segurança do terreno. Se eu estou numa empresa, como faço isso?”
CQL é positivo para o MTST
Para o militante, o CQL é uma iniciativa maravilhosa para o movimento. Antes, o foco do seu trabalho social era ocupar terra e dar moradia. “Agora eu tenho condições de dar o que eu dava antes e chegar na ocupação falando que tem trabalho também. A ocupação é o último lugar que uma pessoa quer ir, a gente vai morar na ocupação porque está numa situação muito difícil. É pé no barro, é lama com criança pequena e tudo”. Edson reafirma o quanto o CQL pode ajudar a vida dessas pessoas a terem condições de alugar uma casa em vez de ficar na ocupação ou de poder ter a própria comida em vez de precisarem enfrentar filas para a Cozinha Solidária.
Por ser um braço do MTST, não tem como desvincular o CQL do movimento social. A iniciativa permite que haja um diálogo com a sociedade sobre o movimento. “Quando andamos na rua com a blusa do MTST ou do próprio CQL, somos identificados. As pessoas param pra conversar, querem conhecer o movimento e tudo. Então, isso aqui não é status. Foi uma maneira que encontramos de unir o prestador a quem precisa do trabalho.”