A Resistência francesa!

Professores em greve há quase dois meses garantem: “não vamos desistir”. Foto Karine Pierre / Hans Lucas

Depois da greve mais longa nos transportes, a reforma da previdência une categorias em atos contra o Governo

Por Marlene Oliveira | ODS 8 • Publicada em 19 de fevereiro de 2020 - 15:15 • Atualizada em 12 de março de 2020 - 17:36

Professores em greve há quase dois meses garantem: “não vamos desistir”. Foto Karine Pierre / Hans Lucas

Está escrito na história: os franceses resistem. Mais do que isso, eles sabem a força que têm. São empoderados e protagonistas. Não abaixam a cabeça, mesmo com o risco de perdê-la – pelo menos até 1977, quando o último condenado à morte foi executado pela guilhotina, em Marselha. 

Apesar do país ter o maior orçamento social do mundo ocidental – junto como os países nórdicos, e um dos mais generosos sistemas de proteção social – o que, para nós, brasileiros, parece conto de fadas, o povo francês é um contestador nato. Pode parecer paradoxal, e talvez seja, mas a preocupação com a igualdade, a expressão do sentimento de injustiça e o ódio aos privilégios que os ricos têm são sentimentos muito fortes na França.  

Em conversa com uma colega, que trabalha para uma empresa francesa da área de petróleo, ela me contou que o dia do anúncio dos resultados financeiros era considerado por eles como um dia de “crise”. Não que os resultados fossem ruins, ao contrário, eles eram excelentes, mas era exatamente isso que despertava uma ira e uma “saraivada” de críticas vindas de todos os lados.

Manifestante em Paris pergunta: "Tenho cara de privilegiada?". Foto Karine Pierre / Hans Lucas
Manifestante em Paris pergunta: “Tenho cara de privilegiada?”. Foto Karine Pierre / Hans Lucas

Desde novembro de 2018, religiosamente todos os sábados, os “coletes amarelos” fazem “manif” – forma local de dizer manifestação –  para lembrar ao Governo que ” todo o poder emana do povo” – coincidentemente,  nosso parágrafo único do artigo 1º da constituição federal de 1988. 

A queda de braço fez o governo ceder em alguns pontos, mas isso só não foi o bastante e, por isso, a luta continua. Além de expressar a cólera de quem se sente injustiçado num país onde as desigualdades começam a aumentar, os “coletes amarelos” exigem uma reforma fiscal mais igualitária, além de uma reforma do sistema político e maior participação dos cidadãos nas decisões políticas.

É impossível governar um país com mais de 300 queijos

Essa é uma das críticas feitas a Emmanuel Macron: seu estilo de governar. Criticado pelo seu percurso profissional –  ele foi sócio do banco Rothschild antes de entrar na vida política, Emmanuel Macron é considerado o presidente dos ultra-ricos. A revogação do “Imposto sobre a Fortuna” foi um dos atos presidenciais que fez o povo desconfiar que a agenda neoliberal das reformas beneficiaria, majoritariamente, as classes dominantes. Isso abriu uma série de crises entre o Governo e o povo francês: a mais recente, a reforma do sistema previdenciário.

A proposta do governo, em grandes linhas, é unificar o sistema de aposentadorias que hoje são 42, por um sistema “universal” e passar a idade mínima para a aposentadoria de 64 para 62 anos. Isso acabaria com algumas categorias “especiais”, que conquistaram vantagens exclusivas ao longo dos anos, e até dos séculos, como é o caso das bailarinas do Opéra. Entre as vantagens está poder se aposentar mais cedo e até a forma como é calculado o benefício. 

Alegando que as mudanças não tinham sido negociadas com os sindicatos – sim, aqui tem que negociar – várias categorias aderiram a convocação de greve, entre elas a dos professores, bailarinas e equipes do Opéra e da Comédie Française, pessoal da área da saúde, professores e os transportes. Nesse ponto, o sinal vermelho acendeu e, sem acordo, uma greve nos transportes, iniciada no dia 5 de dezembro de 2019, tornou-se a mais longa na história. E olha que o povo daqui tem experiência em greves longas: foram 28 dias em 1986 e, em 1995, foram 22 dias de paralisação, que levaram o primeiro ministro na época, Alain Juppé, a fazer marcha à ré no projeto de reforma das aposentadorias.

Metrô-boulot-dodô

O metrô faz parte da cultura e do cotidiano francês. Cantado em prosa e verso e retratado em inúmeros filmes, ele incarna um dia típico de um trabalhador: “metrô-boulout-dodô”, algo como « metrô-trabalhar-dormir ». 

Sem metrô, você não vai a lugar nenhum. Com 14 linhas, mas com apenas 2 funcionando normalmente por serem automáticas, o parisiense teve que caminhar muito, por vezes, quilômetros. Como sempre, quem mora nas periferias sofre mais: pelas distâncias e também porque, muitas vezes, trabalham em atividades que não permitem o “teletravail” – trabalhar de casa. Para quem não pode arcar com despesas adicionais de táxis ou similares, o jeito foi apelar para as bicicletas, patinetes e skates que invadiram as ruas.

Em algumas vias da cidade, onde existem “contadores”, como no Boulevard Voltaire por exemplo, no dia 12 de dezembro, foram contadas 10.750 bicicletas e 10.906 carros! Paris jamais atingiu essa marca antes!

Em frente à Opera Nacional de Paris, manifestantes fazem mais um protesto contra a reforma da previdência. Foto Karine Pierre / Hans Lucas Formato de mídia
Em frente à Opera Nacional de Paris, manifestantes fazem mais um protesto contra a reforma da previdência. Foto Karine Pierre / Hans Lucas Formato de mídia

Apesar da solidariedade de ciclistas experientes, que se dispõem a acompanhar os iniciantes nos trajetos, houve uma explosão no número de acidentes, causados pelo volume e tipos diferentes de veiculos em circulação. 

Mesmo com os percalços cotidianos e o enorme impacto no turismo –  hotéis, restaurantes, teatros, e até o museu do Louvre, registraram uma queda no número de visitantes, a sociedade civil vem demonstrando apoio aos grevistas: até o início de janeiro, mais de €2 milhões já haviam sido doados por mais de 100 mil simpatizantes à causa para ajudar os grevistas que tiveram seus salários cortados. 

O governo municipal também demonstrou solidariedade: a prefeitura de Paris anunciou uma ajuda aos donos de restaurantes estimada em €2,5 milhões. Já para os usuários dos transportes, os passes mensais estão sendo reembolsados – aqui, você pode comprar um passe mensal ou semanal e utilizar quantas vezes quiser, em toda a rede pública de transportes.

Embora os transportes tenham voltado à normalidade, o movimento de greve continua. As diferentes categorias divulgam um calendário de manifestações e prosseguem no confronto com o Governo contra a reforma do sistema previdenciário. Próximo encontro previsto para o dia 20 de fevereiro, com mais uma parada nos transportes públicos.

Como dizem os franceses: on ne lâche pas! Nós não vamos desistir.

Marlene Oliveira

Jornalista e profissional de comunicação, vive em Paris e conhece bem a ebulição do ambiente corporativo. Acredita que a queda do império romano "é pouco" perto das transformações que a sociedade está vivendo mas, otimista até a raiz dos cabelos, acredita que dias melhores virão. Inxalá!

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