O caminhoneiro sumiu

Empresas tradicionais do ramo como Mercedes, Volvo e DAF estão desenvolvendo sistemas autônomos para seus produtos. Foto Divulgação/Mercedes Benz

Veículos autônomos para o transporte de cargas começam a sair do papel e o futuro dos motoristas de caminhões será, no mínimo, diferente

Por Henrique Koifman | ODS 7 • Publicada em 6 de dezembro de 2017 - 08:26 • Atualizada em 6 de dezembro de 2017 - 13:59

Empresas tradicionais do ramo como Mercedes, Volvo e DAF estão desenvolvendo sistemas autônomos para seus produtos. Foto Divulgação/Mercedes Benz
Empresas tradicionais do ramo como Mercedes, Volvo e DAF estão desenvolvendo sistemas autônomos para seus produtos. Foto Divulgação/Mercedes Benz
Empresas tradicionais do ramo como Mercedes, Volvo e DAF estão desenvolvendo sistemas autônomos para seus produtos. Foto Divulgação/Mercedes Benz

Há duas semanas, a montadora descolada norte-americana Tesla apresentou oficialmente seu primeiro caminhão elétrico, o Semi, prometendo entregar as primeiras unidades em 2019 (as reservas já podem ser feitas no site). Nada demais, se pensarmos que os veículos híbridos e elétricos de carga estão nas planilhas de produção de praticamente todas as grandes marcas, a não ser por um pequeno detalhe: assim como os carros de passeio hoje produzidos pela companhia de Elon Musk, o caminhão trará de série o sistema de direção autônoma de acionamento opcional Autopilot que, na prática, é capaz de conduzir o “bruto” por longos trechos sem que seu motorista precise fazer, literalmente, nada. Pronto, a discussão sobre o futuro dos profissionais do volante voltou, mais uma vez, à pauta do dia.

Os argumentos em favor da intervenção cibernética na direção dos caminhões são encabeçados por estatísticas robustas: nos EUA, nada menos que 4.067 pessoas morreram e outras 116 mil ficaram feridas em acidentes envolvendo caminhões de grande porte em 2015. Segundo os mesmos dados, 94% das fatalidades foram resultado de “decisões ou erros humanos”.

Digo voltou porque, desde que os primeiros carros autodirigidos entraram em testes, há alguns anos, o temor de que essa tecnologia venha, como tantas outras, exterminar empregos tem andado em seu reboque. Um receio que atinge não somente os motoristas, mas também governos, como o dos EUA. Em dezembro de 2016, a Casa Branca publicou um estudo completo sobre o impacto da inteligência artificial e da automação na chamada empregabilidade e, adivinhe só, dedicou especial atenção à função de motorista de caminhão.

Pudera, somente pelas estradas do Tio Sam dirigem 2,5 milhões de profissionais – do total de 6,4 milhões que, segundo o International Transport Forum – ITF, estão atualmente ao volante de pesados ali e na Europa. Segundo o estudo publicado no finalzinho do governo Obama, algo entre 60% e 88% dos empregos para motoristas de ônibus e caminhões estariam ameaçados nos próximos 10 anos. Além da Tesla, empresas tradicionais do ramo como Mercedes, Volvo e DAF estão desenvolvendo sistemas autônomos para seus produtos, sem contar com outras novatas (ou start-ups, no jargão pós-português), como a sueca Einride.

A sueca Einride promete chegar ao mercado com um modelo no mínimo inusitado. Foto Divulgação/Einride
A sueca Einride promete chegar ao mercado com um modelo no mínimo inusitado. Foto Divulgação/Einride

Os argumentos em favor da intervenção cibernética na direção dos caminhões pesados são encabeçados por estatísticas bem robustas: nos EUA, nada menos que 4.067 pessoas morreram e outras 116 mil ficaram feridas em acidentes envolvendo caminhões de grande porte em 2015. Em 75% dos casos, mortos e feridos estavam a pé ou em outros veículos, atingidos pelos grandalhões. E, segundo os mesmos dados, 94% das fatalidades foram resultado de “decisões ou erros humanos”. Além disso, segundo relatório do Instituto Americano de Pesquisas do Transporte (American Transportation Research Institute – ATRI), os salários e benefícios para os condutores representam hoje 40% os custos operacionais da atividade – e o fator “custo”, como sabemos, costuma ser decisivo em decisões empresariais que leva às chamadas mudanças de paradigma.

Fabricantes dizem que não é bem assim. O quadro pintado pelas montadoras, no entanto, tenta mostrar um cenário mais simpático aos bípedes condutores. Executivos do grupo que reúne Mercedes e Daimler, por exemplo, afirmam que a chegada dos sistemas de pilotagem automática aos caminhões não aposenta os motoristas, e sim tende a valorizar e qualificar a profissão, que se tornaria até mais atraente – especialmente nas rotas mais longas, onde hoje há falta de profissionais. Segundo a American Trucking Associations,  somente nos EUA, para que os novos veículos comecem a ser utilizados, serão necessários estimados 25 mil novos motoristas, especialmente capacitados para essa tecnologia. Como a substituição dos veículos tradicionais acontecerá aos poucos, uma quantidade equivalente de profissionais se aposentará na mesma época e outros já em atividade receberão capacitação para os novos tempos.

A ideia é que, com parte de suas funções anteriores assumidas pela inteligência artificial, os condutores sejam liberados para exercerem outras atribuições relacionadas à logística, como o gerenciamento, planejamento, coordenação, atendimento de clientes etc. Na prática, a cabine do possante será transformada em uma espécie de escritório volante (ou “travelling office”, como provavelmente será chamado aqui no Brasil) e o velho chofer será substituído por um profissional com diversas outras responsabilidades – além de continuar sendo fundamental para cuidar do trajeto e da segurança da viagem.

Executivos do grupo que reúne Mercedes e Daimler afirmam que a chegada dos sistemas de pilotagem automática aos caminhões não aposentará os motoristas. Foto Divulgação/Daimler
Executivos do grupo que reúne Mercedes e Daimler afirmam que a chegada dos sistemas de pilotagem automática aos caminhões não aposentará os motoristas. Foto Divulgação/Daimler

Pode ser, mas uma das cerejas de LED desse bolo tecnológico – e que, não por acaso, encontra-se mais desenvolvida – é a possibilidade de formar comboios com vários veículos em uma mesma rota de longa distância. Algo como um trem em que os vagões são veículos interligados apenas virtualmente. Desse modo, apenas no caminhão que lidera o pelotão (em inglês, esse sistema é chamado justamente de platoon, ou pelotão) seria necessária a presença humana.

E no Brasil? Para começo de conversa, como comentamos em uma outra matéria sobre carros autônomos aqui mesmo no #Colabora, para que qualquer veículo autodirigido possa circular com segurança, é necessário ter, antes de qualquer outra coisa, caminhos compatíveis para isso – incluindo bom piso, padronização, sinalização adequada, rede de comunicação de qualidade e claro, uma legislação que preveja e regulamente tudo. Estamos ainda bem distantes disso – o que inviabiliza carretas “viajando sozinhas” por nossas estradas em um prazo bem mais longo do que no Primeiro Mundo.

Outro complicador: a idade da frota de caminhões e o ritmo de sua renovação. Segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, dos 2,32 milhões de caminhões em circulação no Brasil, 1,07 milhão pertencem a motoristas autônomos e têm em média 18 anos de uso. O outro 1,25 milhão de veículos têm como proprietárias empresas de transporte e, em média, pouco mais de 10 anos na estrada. Seguindo esse ritmo de renovação, para que os elétricos e autônomos se tornem realmente numerosos em nossas rodovias, serão necessárias, pelo menos, duas décadas. Isso se confiarmos no que dizem os representantes das montadoras e os motoristas continuarem sendo fundamentais a bordo dos veículos de carga, claro. Caso contrário, o que provavelmente veremos será mais um exemplo da concentração de recursos e de renda nas mãos de (poucas) grandes empresas.

Há duas semanas, a montadora norte-americana Tesla apresentou oficialmente seu primeiro caminhão elétrico: o Semi. Foto Divulgação/Tesla
Há duas semanas, a montadora norte-americana Tesla apresentou oficialmente seu primeiro caminhão elétrico: o Semi. Foto Divulgação/Tesla

Mas isso não quer dizer que não comecemos a ter sistemas de apoio ao motorista – que mantêm constantes velocidades e distância dos outros veículos, freiam automaticamente e com mais segurança diante de obstáculos e monitoram o entorno do veículo e todos os seus sistemas – embarcados nos pesos-pesados em breve por aqui. Além disso, os caminhões elétricos, especialmente os de menor porte, que fazem entregas, começarão a ser comuns nas cidades brasileiras já no começo da próxima década – a Man, pertencente ao grupo Volkswagen, por exemplo, já anunciou que irá fabricá-los em breve em Resende, no Estado do Rio de Janeiro. A chinesa BYD já oferece um modelo assim em nosso mercado e sua conterrânea JAC deve fazer o mesmo no ano que vem. Menciono os elétricos porque, não por acaso, ambas as tecnologias – motores a eletricidade e inteligência artificial ao volante – costumam andar de mãos dadas.

E os ônibus? Assim como os caminhões, toda a tecnologia ligada à autonomia também vem sendo desenvolvida para ônibus, tendo como foco inicial especialmente os de pequeno porte e com circulação limitada a trajetos curtos. Em vias segregadas – como as dos BRT que conhecemos aqui no Brasil –, a tendência é que a inteligência artificial, no mínimo como copiloto compulsório, seja comum em um prazo razoavelmente curto. Em Las Vegas, nos EUA, por exemplo, micro-ônibus já começaram a circular experimentalmente em avenidas abertas a outros veículos. O resultado, por enquanto, não foi dos mais animadores. Embora seja perfeitamente capaz de conduzir-se corretamente, parar nos pontos determinados e respeitar os sinais de trânsito, o ônibus autoconduzido se envolveu em um acidente logo em seu primeiro dia de circulação. Segundo seus operadores, a culpa da pequena batida, que não deixou feridos, foi do motorista de carne e osso de um caminhão, que não respeitou a preferência do autônomo e acabou se chocando com ele.

Esta parece ser a principal – se não a única – desvantagem dos veículos robotizados em relação aos conduzidos por motoristas que respiram: ao menos por enquanto, eles não conseguem antecipar nem reagir apropriadamente a comportamentos “não programados” de humanos barbeiros.

Henrique Koifman

É carioca e jornalista com passagem por jornais e revistas da grande imprensa. Sócio da Rebimboca Comunicação, dedicada à produção de conteúdo, é apaixonado por carros desde pequeno. Pilota o blog Rebimboca on-line, no portal do jornal O Globo e é apresentador do programa de TV Oficina Motor (canal +Globosat).

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