Risco de escassez hídrica ameaça 74 milhões de brasileiros

Nascente do Rio Olho D`Água, no Mato Grosso do Sul. O Cerrado brasileiro é uma das áreas mais ameaçadas pela escassez. Foto José Sabino/BPBES

Pesquisadores fazem alerta, sugerem investimentos e recomendam mudanças nos modelos de gestão da água no país

Por Elizabeth Oliveira | ODS 13ODS 6 • Publicada em 8 de agosto de 2019 - 16:02 • Atualizada em 10 de agosto de 2019 - 16:02

Nascente do Rio Olho D`Água, no Mato Grosso do Sul. O Cerrado brasileiro é uma das áreas mais ameaçadas pela escassez. Foto José Sabino/BPBES
Nascente do Rio Olho D`Água, no Mato Grosso do Sul. O Cerrado brasileiro é uma das áreas mais ameaçadas pela escassez. Foto José Sabino/BPBES
Nascente do Rio Olho D`Água, no Mato Grosso do Sul. O Cerrado brasileiro é uma das áreas mais ameaçadas pela escassez. Foto José Sabino/BPBES

Como um país que tem aproximadamente 40% do seu território com níveis de ameaças (de moderado a alto) em suas fontes de água doce, o Brasil precisa se antecipar às previsões de escassez hídrica que poderá afetar 74 milhões de pessoas, além de provocar perdas de cerca de R$ 520 bilhões, até 2035, para diversos setores produtivos. A real adoção de uma agenda de investimentos e de outras ações que considerem a governança multissetorial da água será fundamental para o enfrentamento desses riscos, potencializados em cenários de crise climática, aumento da poluição, fragmentação de ecossistemas e mudanças no uso do solo para a expansão de atividades agropecuárias.

Conflitos poderão ser desencadeados na região Sudeste devido à interrupção do abastecimento, causada, por sua vez, por longos períodos de estiagem. Soma-se a esse cenário, agravado pela crise climática, a baixa qualidade dos recursos hídricos disponíveis

Essas são algumas recomendações do Relatório Temático Água – Biodiversidade, Serviços Ecossistêmicos e Bem-Estar Humano no Brasil, produzido por 17 pesquisadores brasileiros, por meio de uma parceria entre a Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES, da sigla em inglês), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Associação Brasileira de Limnologia (ABLimno). Essa compilação de dados, considerada pioneira no país, foi divulgada nesta quinta-feira, 8 de agosto, durante o 17º Congresso Brasileiro de Limnologia, em Florianópolis, onde estudiosos se reuniram para discutir questões desafiadoras sobre as dinâmicas que envolvem os ecossistemas aquáticos.

Arte Fernando Alvarus

 Atuante na coordenação do relatório temático, a pesquisadora Aliny Pires, da UERJ, explica que essa publicação é uma das primeiras no Brasil a destacar a importância da água “não somente como recurso, mas também como fonte de biodiversidade e patrimônio cultural”. Segundo ressalta, “essa abordagem mais integradora é fundamental para garantir uma gestão de longo prazo efetiva e conciliar os diferentes aspectos deste que é um dos principais ativos nacionais”. Ainda que importantes esforços de síntese já tenham sido empreendidos no caso dos relatórios da Agência Nacional de Águas (ANA), a pesquisadora considera que faltava no país uma análise sobre a biodiversidade e a sua integração com outros aspectos relacionados ao tema.

Como exemplo para ilustrar a percepção da pesquisadora, o relatório destaca que a bio­diversidade aquática “é um ativo estratégico no contexto econômi­co”. Cerca de um terço dos peixes pescados no Brasil são de água doce, tendo como grande contribuição a produção da região norte do país. Também é ressaltado que, pelo menos 80% dos reservatórios hidrelétricos do país recebem água de Unidades de Conservação, criadas para resguardar a biodiversidade e outros recursos naturais e culturais vitais para a sustentabilidade do país. Nesse contexto há de se considerar que produção hidrelétrica responde por cerca de 65% da matriz energética brasileira.

 Ameaças poderão ser potencializadas

O Brasil continua sendo uma liderança global em termos de recursos hídricos, com 12% das reservas superficiais de água doce disponíveis no mundo. Mas, segundo o relatório, um aspecto que não pode ser desconsiderado nesse debate é a distribuição desigual dessa oferta e da sua demanda no território nacional. “Consequentemente, a abundância da água e sua importância não garantem a segurança hídrica do Brasil, comprometendo a biodiversidade aquática, diversas atividades econômicas e o bem-estar da população”, segundo o relatório.

Como extremos em termos de oferta e demanda hídrica no Brasil se destacam os exemplos das regiões Sudeste e Norte. Enquanto a região Sudeste abriga 58% da população brasileira e concentra 13% da disponibilidade de água, 68% das fontes de água doce nacionais estão na região Norte que conta com apenas 7% do contingente populacional do país.

Piraputangas, em Bonito, no Mato Grosso do Sul. Cerca de um terço dos peixes pescados no Brasil são de água doce. Foto José Sabino/BPBES
Piraputangas, em Bonito, no Mato Grosso do Sul. Cerca de um terço dos peixes pescados no Brasil são de água doce. Foto José Sabino/BPBES

Diante desse desequilíbrio, segundo o relatório, alguns conflitos poderão ser desencadeados na região Sudeste devido à interrupção do abastecimento, causada, por sua vez, por longos períodos de estiagem. Soma-se a esse cenário, agravado pela crise climática, a baixa qualidade dos recursos hídricos disponíveis.

“A distribuição desigual dos recursos hídricos no país tem e terá cada vez mais um forte impacto na gestão territorial da água”, alerta o documento. Para ilustrar as consequências do desequilíbrio climático na oferta de água para as atividades econômicas, o relatório destaca que longos períodos de seca nas regiões Sudeste e Centro-Oeste já provocaram perdas estimadas em R$ 20 bilhões na receita agrícola em 2015.

Em relação à interferência da degradação ambiental na oferta hídrica, outro exemplo envolve a situação do estado do Rio de Janeiro, onde, segundo destacado no relatório, “48% dos rios monitorados são impróprios para tratamentos convencionais e 50% da água captada e distribuída no sistema de abastecimento do Guandu é utili­zada para tratar esgotos”.

Embora a problemática seja complexa em termos regionais, a questão territorial vai além das fronteiras do país, atin­gindo escalas continentais que não podem ser desconsideradas na gestão dos recursos hídricos. Um exemplo ajuda a esclarecer esse desafio. O Brasil tanto recebe de outros países cerca de 2,6 trilhões de metros cúbicos de água, por ano, como escoa, anualmente, aproximadamente 800 bilhões de metros cúbicos. “As reservas nacionais possuem, portanto, dependência intrínseca dos países vizinhos”, segundo o relatório.

A região do banhado gaúcho, típica dos pampas, é uma área de transição entre ecossistemas aquáticos e terrestres. Foto José Sabino/BPBES
A região do banhado gaúcho, típica dos pampas, é uma área de transição entre ecossistemas aquáticos e terrestres. Foto José Sabino/BPBES

Soluções demandam investimentos, pesquisa e participação social

 Para a pesquisadora Aliny Pires é fundamental que sejam realizados os investimentos em infraestrutura destinada à melhoria das condições de saneamento e de segurança hídrica, previstos no Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) e no  Plano Nacional de Segurança Hídrica (PNSH). “No entanto, é importante ressaltar que essas estratégias podem ser custosas e que a sistematização da informação sobre os usos diversos dos corpos hídricos, assim como o mapeamento de dados sobre a biodiversidade e o planejamento espacial serão etapas fundamentais para definir os caminhos mais seguros a serem seguidos”, afirma.

Os custos realmente são altos, mas estimativas sinalizam que os benefícios alcançados compensam. Nesse sentido, serão necessários investimentos de mais de R$ 70 bilhões anuais para reduzir os riscos econômicos associados à escassez hídrica, estimados em R$ 520 bilhões, em 2035, acima do dobro do valor observado em 2017.

Tendo em vista esse cenário de escassez prevista e seus impactos socioeconômicos e ambientais, o PNSH mencionado pela pesquisadora é destacado no relatório como mecanismo central à gestão dos recursos hídricos brasileiros. Estimativas apresentadas no documento indicam que para cada R$ 1 investido em infraestrutura destinada à segurança hídrica, são gerados mais de R$ 15 em benefícios relacionados à manutenção de inúmeras atividades produtivas no país.

Com relação à universalização do saneamento básico, prevista no Plansab, até 2030 o tratamento de esgoto deverá atingir 93% do território brasileiro, ante 68,5%, em 2017. Estimativas apresentadas no relatório indicam que os benefícios com essas iniciativas são da ordem de R$ 1,5 trilhão, montante quatro vezes maior do que o gasto para sua implementação.

De acordo com o relatório, serão necessários investimentos de mais de R$ 70 bilhões anuais para reduzir os riscos econômicos associados à escassez hídrica, estimados em R$ 520 bilhões, em 2035, acima do dobro do valor observado em 2017

Também é ressaltado na publicação que o Brasil enfrenta grandes perdas na distribuição da água e que uma redução média desse prejuízo para valores próximos a 15% proporcionaria um ganho líquido de cerca de R$ 37 bilhões, até 2033.

Dentre outras recomendações discutidas no relatório, segundo a pesquisadora da UERJ, se destacam “a proteção e a restauração dos corpos aquáticos, o desenvolvimento de tecnologias para segurança hídrica, em especial soluções baseadas na Natureza, além da incorporação da dimensão ambiental no planejamento espacial e a melhoria da interface envolvendo ciência para a tomada de decisão”. O grande desafio nesse contexto envolve a articulação entre os diferentes atores neste processo.

No que se refere à restauração florestal e à conservação dos mananciais e da vege­tação ribeirinha, o relatório apresenta exemplos de como a mata nativa pode trazer benefícios para a qualidade da água, reduzindo os gastos com tratamento, já que atua na proteção do solo, do lençol freático e de áreas de recarga de aquíferos, além de favorecer a biodiversi­dade aquática. “No sistema Cantareira, situado na região metropolitana da cidade de São Paulo, a recomposição da vegetação nativa pode reduzir em cerca de três vezes os custos com o tratamento da água, considerando-se os valores da restauração”, informa o documento.

Sob essa perspectiva benefícios podem ser alcançados com o cumprimento da Lei de Proteção à Vegetação Nativa (LPVN) que incorporou alterações ao Código Florestal, em 2012, e iniciativas com enfoque no pagamento por serviços ambientais (PSA) que têm remunerado produtores rurais que conservam as áreas florestais existentes nas suas propriedades, acarretando, assim, em melhoria da qualidade das fontes de água. São destacados como exemplos, no relatório, o programa Produtor de Água, criado pela ANA para disseminação no país, além do projeto Conservador das Águas, desenvolvido em Minas Gerais.

O relatório destaca a importância do setor privado no estabelecimento das so­luções para a gestão da água no Brasil, por ser detentor de grande parte das áreas com remanescentes de vegetação nativa, além de ser amplamente afetado por alterações na disponibilidade hídrica. Nesse sentido, são mencionadas possibilidades de parcerias entre os setores público e privado. Segundo destacado, algumas iniciativas vêm sendo implementadas com esse objetivo, com base em Diretrizes Empresariais para a Valoração Econômica de Serviços Ecossistêmicos (Devese).

Para Aliny Pires, a sociedade tem papel fundamental rumo às transformações necessárias mencionadas no relatório. Mesmo diante de inúmeros retrocessos na agenda socioambiental brasileira, a pesquisadora argumenta que “considerando a urgência do tema, é a mobilização popular que será capaz de atingir tomadores de decisão, o mercado e o estabelecimento de um valor que permeie toda a sociedade”. Mas para alcançar esses objetivos ela reconhece que será essencial “garantir o acesso à informação de qualidade, com respaldo científico e associado às políticas públicas”, esforço que se traduz no trabalho que ela e outros 16 pesquisadores desenvolveram e começam a disseminar.

Elizabeth Oliveira

Jornalista apaixonada por temas socioambientais. Fez doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED), vinculado ao Instituto de Economia da UFRJ, e mestrado em Ecologia Social pelo Programa EICOS, do Instituto de Psicologia da UFRJ. Foi repórter do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e colabora com veículos especializados, além de atuar como consultora e pesquisadora.

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