A barragem da Hidrelétrica de Estreito, no Rio Tocantins, na divisa dos estados do Maranhão e Tocantins: comunidades reclamam de impacto no ritmo das cheias e na pesca (Foto: UHE Estreito / Divulgação)

Na bacia do Tocantins-Araguaia, envenenamento dos rios e desmatamento desenfreado

Na bacia do Tocantins-Araguaia, envenenamento dos rios e desmatamento desenfreado

Por Conexão UFF UFPA ODS 6

Polícia investiga extinção de 20 córregos e afluentes devido ao uso irracional da água pelo agronegócio

Publicada em 4 de novembro de 2025 - 00:08

Com uma área de aproximadamente 5 milhões km², quase 59% do território brasileiro, a Amazônia Legal, composta por nove estados, possui três das principais bacias hidrográficas do país: a bacia Amazônica, a do rio Paraíba e a bacia Tocantins-Araguaia. Esta última é a maior bacia hidrográfica exclusivamente brasileira, abrangendo 11% do território nacional e chegando a três regiões do país: Centro-oeste, Norte e Nordeste. Nelas, esta bacia abastece os seguintes estados: Goiás (26,8%), Tocantins (34,2%), Pará (20,8%), Maranhão (3,8%) e Mato Grosso (14,3%), além do  Distrito Federal (0,1%). Os seus principais rios são o Tocantins e o Araguaia.

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Há anos, o estado do Tocantins, que concentra a maior parte dessa bacia, vem assistindo os efeitos da deteriorização ambiental chegarem em suas águas. Só entre 2019 e 2024, essa região teve uma área desmatada equivalente a 1.744.753 hectares, um dado alarmante que reflete a intensificação do processo de degradação ambiental no estado. Essas áreas desmatadas são destinadas, principalmente, para a expansão da agropecuária, uma das atividades que mais contribuem para a emissão de gases de efeito estufa.

A comunidade foi obrigada a largar as roças de arroz por causa da cheia do Tocantins. Também estamos deixando a pesca porque os peixes ficaram escassos devido ao assoreamento do rio

Cleudiane Rodrigues
Líder comunitária do quilombo de Prachata

Obras de infraestrutura, como a construção de estradas e hidrelétricas também impactam essas bacias e sub-bacias hidrográficas.  “São dois os problemas principais que contribuem para a degradação da bacia: obras de engenharia que impactam a hidrologia e mudanças no uso e cobertura do solo.  As obras de engenharia incluem barragens, sistemas de irrigação e as atividades para implementar a hidrovia Tocantins-Araguaia. O canal do rio Tocantins e vários tributários foram profundamente impactados pela construção de barragens e hidrelétricas com fortes alterações na hidrologia, geomorfologia do canal, habitats, biodiversidade aquática e pesca”, explica o professor e pesquisador Fernando Pelicice, da Universidade Federal de Tocantins.

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De acordo com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), a perda dessa vegetação significa um grande risco, pois compromete o carregamento de reservatórios subterrâneos e rios que irrigam o país. “A construção de barragens e a expansão do agronegócio agravaram os conflitos no uso da terra. A construção de grandes reservatórios ao longo do rio Tocantins desalojou muitas comunidades ribeirinhas, que tiveram de ser indenizadas ou realojadas, por vezes em áreas distantes das ocupações históricas”, argumenta Pelicice.

Cleudiane Rodrigues no quilombo Prachata, no Tocantins: luta contra os impactosambientais na bacia hidrográfica do Tocantins-Araguaia causadas pelo desmatamento (Foto: Arquivo Pessoal)
Cleudiane Rodrigues no quilombo Prachata, no Tocantins: luta contra os impactos
ambientais na bacia hidrográfica do Tocantins-Araguaia causadas pelo desmatamento (Foto: Arquivo Pessoal)

O pesquisador destaca ainda os danos à agricultura de subsistência, praticada por quilombolas e indígenas: “As barragens também causaram forte impacto sobre a pesca, que declinou substancialmente em muitos trechos da bacia, com a perda de estoques pesqueiros muito apreciados, como grandes bagres e outros peixes de piracema. A expansão do agronegócio tem agravado a questão fundiária, exercendo pressão sobre terras tradicionalmente ocupadas por quilombolas e indígenas. No estado do Tocantins, em especial, existem muitas comunidades quilombolas que praticam a agricultura de subsistência e extrativismo, mas que hoje convivem com a fronteira agrícola e suas transformações”.

Esta é uma realidade enfrentada, por exemplo, pela líder comunitária Cleudiane Rodrigues, que vive no quilombo de Prachata, em Esperantina, município localizado no extremo norte de Tocantins, entre os rios Araguaia e Tocantins, na área geográfica denominada “Bico do Papagaio”. A comunidade de Prachata foi impactada pela construção da Barragem de Estreito, no Maranhão, também atravessado pelo rio Tocantins: “A comunidade foi obrigada a largar as roças de arroz por causa da cheia do Tocantins. Também estamos deixando a pesca porque os peixes ficaram escassos devido ao assoreamento do rio”, explica a quilombola.

A Bacia Tocantins-Araguaia (Reprodução: SGB)

Bacia do Araguaia em risco

Os impactos também foram constatados em uma pesquisa apresentada no IV Encontro Nacional de Desastres, em 2024, por Fernando Silva, mestre e doutorando em Desastres Naturais pela Universidade Estadual Paulista. “Essa ganância maquiada de desenvolvimento leva a ações inacreditáveis, como fazendeiros sendo investigados por, literalmente, desviarem ilegalmente um canal inteiro de rio. Além disso, a polícia de Goiás apura a extinção de cerca de 20 córregos e afluentes que simplesmente deixaram de existir devido à exploração ilegal dos recursos hídricos pelo agronegócio. É a morte do rio acontecendo em tempo real”, afirma o pesquisador. E denuncia: “A água não está só sumindo, está sendo envenenada. Estudos e reportagens escancaram que o rio Araguaia está contaminado por agrotóxicos, afetando diretamente a saúde das pessoas e de toda a biodiversidade aquática”.

Enquanto a água e a floresta desaparecem, o que cresce no lugar? O estudo aponta um aumento brutal de 48.366 km² de pastagem e o avanço da soja e outras lavouras. Essa é uma troca cruel: sai a biodiversidade que sustenta as comunidades e entra um modelo econômico concentrador, que gera um custo social e ambiental altíssimo para todos

Fernando Silva
Pesquisador

O progresso desenfreado, conforme destaca Silva, não leva em consideração os riscos e danos causados ao estilo de vida e modos de sobrevivência da população que mora naquela região. Não há transparência, tão pouco responsabilidade ambiental. As barragens construídas na região amazônica, e apresentadas como forma de desenvolvimento, são exemplos práticos dessa “maquiagem” progressista citada pelo pesquisador.

Os moradores que pescam, plantam e criam gado, no quilombo Prancheta, convivem diariamente com as consequências da construção da represa. Segundo Claudiane Rodrigues, os idealizadores da hidrelétrica de Estreito alegaram que a barragem não afetaria o local, o que não aconteceu: “Eles disseram que a gente poderia ficar despreocupado que não afetaria nós em nada, o que não foi verdade, pois afeta até hoje a população ribeirinha do rio Tocantins, né?”.

Na bacia do rio Araguaia, a beleza da paisagem contrasta com os riscos de contaminação das águas. Foto Divulgação
Na bacia do rio Araguaia, a beleza da paisagem contrasta com os riscos de contaminação das águas (Foto: Divulgação)

Os estudos de Fernando Silva fazem uma análise comparativa das mudanças que aconteceram na bacia do Araguaia entre 1985 e 2022. Os resultados apontam para os grandes impactos que a região vem sofrendo ao longo dos anos. “A pesquisa revela que a região ficou mais quente e tem chovido menos. Isso representa o fim do peixe, e sem peixe, não tem renda, sem renda, não tem o que botar na mesa. Enquanto a água e a floresta desaparecem, o que cresce no lugar? O estudo aponta um aumento brutal de 48.366 km² de pastagem e o avanço da soja e outras lavouras. Essa é uma troca cruel: sai a biodiversidade que sustenta as comunidades e entra um modelo econômico concentrador, que gera um custo social e ambiental altíssimo para todos”, alerta Silva.

Desse modo, os impactos causados pela aceleração do desmatamento na bacia do rio Araguaia demonstram que é preciso pensar ações mais concretas e eficazes para frear esses efeitos negativos, estabelecendo metas para garantir que todos os envolvidos estejam comprometidos em colocá-las em prática para proteger esse ecossistema e toda a sua biodiversidade.

Entre as soluções apontadas por Silva para mitigar os impactos negativos na bacia do rio Araguaia estão: “Primeiro: desmatamento ilegal zero, para ontem, com fiscalização pesada. Segundo: investir fortemente em recuperação, reflorestando as nascentes e matas ciliares. Terceiro: mudar o jeito de produzir, incentivando uma agricultura e uma pecuária inteligente,  que se entenda que sem água, não há negócio para ninguém”, explica.

Além disso, o pesquisador destaca a importância da participação ativa das comunidades que vivem na região. “E o mais importante: ouvir a ciência e as comunidades locais. A solução não virá somente de um escritório com ar-condicionado, mas do conhecimento de quem vive no rio, somado ao que nós, pesquisadores, estamos mostrando, além de uma luta, que é sobretudo política”, enfatiza Silva.

Futuro da bacia Tocantins-Araguaia

Diante desse cenário alarmante, é preciso que o debate se intensifique, que as autoridades responsáveis estejam comprometidas em conter as ações negativas, além de pensar em políticas que freiem esses impactos e responsabilizam os culpados, “pois a persistência dessas ações criminosas ameaça seriamente o futuro das bacias”, como pondera o pesquisador Pelicice.

“Se persistir o modelo de desenvolvimento atual, a bacia deve adquirir perfil de degradação semelhante ao observado em outras bacias do país, como a do alto rio Paraná (rios Grande, Tietê e Paranapanema), Paraíba do Sul e São Francisco. Essas bacias são caracterizadas pelo amplo desmatamento, regulação fluvial por múltiplas barragens em série, deterioração da qualidade da água, processos de assoreamento e erosão, invasão por múltiplas espécies exóticas, ampla perda de recursos naturais e agravamento da crise de biodiversidade”, alerta Pelicice.

Reportagem de Elizabeth de Jesus, Francy Ramos, Victoria Rodrigues, Giovana Rodrigues, Rafael Araújo (UFPA), Yasmin Martins, Lívia de Sant’Anna, Carolina Inocêncio, Danilo de Azevedo dos Santos, Gabriela Cavalheiro (UFF).

Conexão UFF UFPA

O Conexão UFF – UFPA é um projeto que reúne alunos dos cursos de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense e da Universidade Federal do Pará para a produção de reportagens especiais, sob a coordenação das jornalistas e professoras Adriana Barsotti (UFF) e Elaide Martins (UFPA).

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