ODS 1
Mulheres comandam sistema de dessalinização no Semiárido baiano para acesso à água
Projeto muda o cenário da região e permite novos investimentos com água de qualidade
Projeto muda o cenário da região e permite novos investimentos com água de qualidade
Nos últimos anos, a rotina mudou em Arapuá Novo, distrito de Jaguarari-BA, a 408 km de Salvador. Toda segunda e sexta-feira, desde 2019, as manhãs são de filas, organizadas por ordem de galões e baldes, na frente da estação do sistema de dessalinização de água implantado na comunidade. São cerca de 70 famílias em busca de água potável para beber e cozinhar.
A produtora rural Josélia da Silva, 39, vai semanalmente ao local encher seus três baldes. A água é para o consumo da casa onde reside com o marido e o filho. Moradora de uma área que pertence ao município vizinho, Juazeiro, ela diz que sua qualidade de vida mudou. “É como se fosse uma água mineral, mas é ainda melhor, porque a gente sabe de onde vem. A gente conhece quem faz o tratamento e tem acesso a um custo barato”, comenta.
Leu essas? Série especial de reportagens: A longa jornada em busca da água
Antes, a população consumia a água das torneiras que são abastecidas pela adutora do distrito, cedida por uma mineradora instalada na região. A grande questão é que essa água sai direto do rio, sem o devido tratamento. Em casa, as mulheres filtravam e adicionavam cloro ao abastecimento bruto de maneira caseira, embora nem sempre isso fosse eficaz.
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Veja o que já enviamosJá o sistema, trata 5 mil litros de recursos hídricos por vez, através do processo de osmose inversa, que utiliza membranas semipermeáveis para filtrar a água, deixando ela potável aos humanos. A água bruta, que está em uma das três caixas d’água, passa pelo dessalinizador e sai separada, entre a caixa da potável e do concentrado de sais, que será descartado em evaporação no tanque de contenção. A comunidade tem acesso ao consumo no chafariz, que encerra a estrutura.
Mais saúde na comunidade
Quando o tratamento da água consumida não é devidamente realizado, a saúde fica comprometida. Josélia lembra que a rotina de cuidado era intensa, principalmente quando o rio cria lama, que estraga as velas dos filtros de barro. “Teve um tempo que minha barriga ficava sempre doendo e eu desconfiei que fosse água, aí estava comprando água mineral. Mas, infelizmente, nem todo mundo tem condições de comprar”, lamenta.
O objetivo do Programa Água Doce, política pública do Governo da Bahia em parceria com o governo federal, é garantir que famílias tenham acesso à água de qualidade. No Semiárido, o desafio é justamente porque a maioria dos poços perfurados tem águas salobras, impróprias para o consumo humano.
O Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA) acompanha os sistemas de Arapuá Novo e outras 113 comunidades, em quatro territórios e 20 municípios baianos. O técnico social Yêgo Ravel Pinheiro, 30, que a cada três meses realiza visitas para acompanhar a eficiência do programa, conta que a população sempre “exalta muito essa tecnologia”.
“Essa tecnologia mudou completamente a questão do consumo da água nesses lugares. Muitos antes recebiam água de carro-pipa, que não se sabe a procedência ou como era tratada”, aponta Pinheiro.
A instituição promove a sustentabilidade do projeto, acompanhando os equipamentos para devidas manutenções técnicas e também oferecendo formações para gestão coletiva, que é formada em cada comunidade. “A longo prazo, se a comunidade se apropria e gerencia aquela tecnologia da melhor forma, garante uma durabilidade maior”, explica o técnico.
De acordo com o governo da Bahia, já foram instalados 291 sistemas de dessalinização, em 55 municípios do Semiárido, beneficiando atualmente 110 mil pessoas. O Programa Água Doce (PAD) também faz o monitoramento e a manutenção dos sistemas em funcionamento. O governo federal também mantém parcerias com todos os outros estados do Nordeste (Alagoas, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe) e com Minas Gerais, atuando com instituições estaduais, municipais e da sociedade civil.
Mulheres na linha de frente
A composição do grupo gestor é pré-requisito para a instalação do sistema. Em Arapuá Novo, a desconfiança de alguns moradores quase deixou a oportunidade passar. Os homens não acreditaram no funcionamento da proposta e foram as mulheres que se organizaram para guiar a empreitada.
Entre as sete que assumiram a responsabilidade, está Catiane Irene Benedito, 33. A dona de casa, nascida e criada na comunidade, se tornou uma das duas operadoras do sistema, fazendo a produção e distribuição da água. “Para a gente, é muito satisfatório ter esse projeto na comunidade. Temos uma água que é muito saborosa e de boa qualidade. Melhorou muito a questão da saúde, porque quem vivia com diarreia por conta da contaminação da água, já não sofre mais”, conta.
A cada 20 litros, é cobrada uma taxa de R$ 2,00. O valor é simbólico, visto que o galão de água mineral custa em média R$ 12 na região. Os valores arrecadados são divididos entre uma ajuda de custo para as operadoras e outra parte para o caixa, que funciona como uma reserva para manutenção do equipamento. Tudo é acompanhado pelas tesoureiras e fiscais do grupo de moradores.
Os recursos já foram utilizados para melhorar a estrutura do local onde o sistema funciona. Construíram um piso de cimento no lugar, antes coberto com britas. “Aqui sempre enchia de mato e a gente, um grupo só de mulheres, não tinha como ficar capinando, nem encontrava mão de obra. Aí resolvemos usar esse dinheiro em caixa para fazer o piso e acabou o problema”, explica Catiane.
A lavradora Nelma Pereira Bonfim, 51, divide a missão de manuseio da máquina e agradece pelo sistema que diz “ter caído do céu”. “Era uma dificuldade terrível pra gente tratar a água de beber com cloro; cuidava dentro da cisterna. Tinha que ser todos os dias, encher o filtro e tratar tudo. Colocava a noite para no outro dia estar boa”, lembra.
Nelma se orgulha da água que ajuda a tratar. Conta que já atendem outras comunidades vizinhas, de onde chegam moradores, de motos e caminhonetes, para abastecer seus reservatórios. “Eles acham que a nossa é bem mais gostosa, aí vem pegar aqui. Quem bebe a primeira vez, não deixa de pegar, porque ela é muito boa”, afirma.
Um futuro doce
A chegada da água potável também ajuda na economia das famílias. Algumas comunidades utilizam na irrigação de hortaliças ou em pequenas produções. Em Arapuá Novo, um grupo de mulheres se dedica a uma fábrica de doces e geleias, que utiliza o recurso natural da região para geração de renda.
A ‘Carmélias Doceria’ surgiu a partir de um curso de beneficiamento de frutas que elas participaram anos antes e, depois da oportunidade da água potável, resolveram investir nas produções. “A gente compra frutas e leite dos produtores daqui mesmo. O que a gente idealiza é que, no futuro, a gente vai melhorar muito a economia da comunidade”, explica Catiane.
Para elas, o compromisso que assumiram se tornou um espaço de troca e uma potente rede de mulheres. “É um ponto de encontro. Toda comunidade se reúne para pegar aquela água de qualidade e se encontra. Isso tem mudado a vida de um jeito que a gente nem esperava. Não era uma coisa que a gente fosse pensar um tempo atrás”, finaliza Josélia.
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Filho do Vale do São Francisco, na divisa da Bahia com Pernambuco, nasceu em Petrolina-PE e reside em Juazeiro-BA, onde se formou em 2016 pela Uneb. Atuou no jornalismo da TV Grande Rio - Afiliada Rede Globo mais de 07 anos. Já escreveu para a Folha de São Paulo, Uol TAB, Ecoa, Yahoo Notícias e outros veículos. Desde 2021, apresenta o programa Na Ponta da Língua, exibido na TVPE, TVE Bahia e TVU Recife