Dez anos depois da lei de resíduos, Brasil ainda tem quase 3 mil lixões a céu aberto

Especialistas alertam para avanços tímidos, que põem o país abaixo da América Latina e do Caribe em termos de destinação final adequada de resíduos

Por Emanuel Alencar | ODS 6 • Publicada em 5 de agosto de 2020 - 17:55 • Atualizada em 21 de novembro de 2022 - 15:54

Catadores em lixão próximo ao Distrito Federal: 41% dos resíduos gerados no Brasil ainda vão para lixões (Foto: Marcelo Casal Jr./Agência Brasil)

Há dez anos o Brasil festejava a aprovação de uma nova lei que prometia ser um divisor de águas na gestão dos resíduos. Mas, a despeito de alguns avanços, o cenário da destinação final de lixo no país segue bastante complicado. Segundo a Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública (Abrelpe), o Brasil ainda conta com 2.970 lixões a céu aberto em funcionamento, com 3.001 municípios que fazem uso de unidades de destinação inadequadas (em lixões ou em aterros controlados), o que representa mais da metade das cidades brasileiras. Cerca de 730 aterros sanitários (estes sim, tecnicamente adequados), recebem 59% do total de resíduos gerados diariamente nas cidades do país. A média dos países da América Latina e do Caribe é de 69%, aponta o “World Bank Group”. Segundo a Abrelpe, só 4% do total de resíduos sólidos urbanos no país são reciclados.

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Especialistas no assunto, ouvidos pelo #Colabora, concordam que os avanços poderiam ter sido mais significativos, mas destacam que empresas estão, enfim, assumindo a rédea para garantir a chamada logística reversa dos produtos. É quando um material usado, depois de descartado, volta ao início da cadeia produtiva como matéria-prima, sendo passível de reciclagem ou reutilização. A logística reversa é uma obrigação imposta pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (lei 12.305, de 2 de agosto de 2010). A lei diz ainda que só podem ir para aterros sanitários os rejeitos, ou seja, tudo o que não for possível ser beneficiado e requalificado. Veda os lixões a céu aberto (o prazo inicial era 2014). Tudo o que não ocorre hoje, porém: toneladas de plásticos, metais, papéis e vidros seguem inundando lixões e aterros. Um ciclo que robustece a procura por matéria-prima virgem – um mal negócio para a sustentabilidade do planeta.

Um menino da comunidade ribeirinha de Educandos, em Manaus, brinca em meio ao lixo. Foto Michael Dantas/AFP
Um menino da comunidade ribeirinha de Educandos, em Manaus, brinca em meio ao lixo. Foto Michael Dantas/AFP

Superintendente da Associação Brasileira das Indústrias de Vidro (Abividro), Lucien Belmonte critica a estagnação dos percentuais de reciclagem do país. No caso do vidro, 60% do material consumido em capitais do Sudeste, por exemplo, acabam indo para aterros. As centrais de triagem de São Paulo, por exemplo, não separam o vidro de outros recicláveis. Uma destinação nobre – de origem “limpa”, o vidro é um material 100% reciclável – acaba não acontecendo.

“Os índices [de reciclagem] estão estagnados, pois o modelo vigente ainda prioriza os materiais que têm valor econômico. Os modelos que funcionam no mundo têm o Estado exigindo do setor privado, que responde de forma consciente e proativa. Aqui fica um eterno jogo de empurra-empurra. As embalagens consumidas no Brasil têm 40% de vidro reciclável. E esse percentual infelizmente se manteve estável de 2010 para 2020. É lindo falar do social, do econômico e do ambiental. Mas o fato é: a viabilidade financeira não está resolvida”, comenta Lucien. “Se não temos a entrega pelo cidadão [do vidro nos pós consumo], se não há triagem da prefeitura ou do consórcio, se não existe a volta do vidro, na chamada logística reversa, como vamos superar esse cenário?”

ANA assume atribuição de regular saneamento

Para o advogado Antônio Fernando Pinheiro Pedro, um dos consultores que trabalharam na formatação da lei, durante a última década a legislação dos resíduos ficou capenga por ausência de um ente regulador federal. Somente este ano, com o novo marco legal do saneamento (sancionado por Bolsonaro em 15 de julho), a Agência Nacional de Águas (ANA) assumiu a atribuição, transformando-se em Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANAS).

“Ocorreu que a Política Nacional de Resíduos Sólidos ficou todo esse tempo solta, sem regulação. Isso só aconteceu agora, com a ANAS, um ‘emendão’ na estrutura existente. É um pouco da história da síndrome de Janus, o deus que tem dois rostos no mesmo corpo. A partir de agora temos um início. Por enquanto só quem ganhou foi quem fez consultoria para municípios”, destaca.

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Fabrício Soler, advogado especializado em Direito dos Resíduos, avalia que houve sim, outros ganhos.

“Entendo o balanço [dos dez anos] como positivo. Tivemos produtos que não eram regulados, e passaram a ter acordos setoriais, termos de compromisso e dois decretos (um para a logística reversa de eletroeletrônicos e outro para medicamentos). O desafio é implementar gradualmente a logística reversa. O processo é crescente e deveremos ter em breve móveis e automóveis inseridos nessa cadeia”, pontua.

A análise mais otimista segue a visão de Solange Cunha, professora visitante de Direito Ambiental na Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ela enxerga muitos problemas na execução política da lei, mas destaca avanços.

“A lei foi discutida mais de 20 anos no Congresso. É tecnicamente bem feita, tem diretrizes, planos regionais, microrregionais. Lixões foram determinados para acabar em 2014. Não só não acabou como observamos vários problemas, como a importação de resíduos perigosos, processo contra o qual não há inspeção rotineira. Por outro lado, muitas empresas estão assinando acordos setoriais, tivemos recentemente o acordo dos produtos eletroeletrônicos. Vejo mais mobilização e comprometimento”.

Dívida das prefeituras chega a R$ 18 bilhões

A morosidade nos avanços decorre também de um crônico impasse econômico. Prefeituras brasileiras estão devendo nada menos do que R$ 18 bilhões para companhias de limpeza pública. Empresas que operam aterros sanitários relatam enormes dificuldades em manterem o serviço de pé, dado o volume crescente das dívidas. Prefeituras, por sua vez, relatam problemas de fluxo de caixa para bancaram um serviço essencial à coletividade.

O fato é que cada vez mais resíduos têm chegado nesses centros de tratamento. Em 2010, o Brasil gerava 173.583 toneladas/dia de resíduos. Em 2018 (último dado disponível pela Abrelpe), a geração diária saltou para 216.629 toneladas (um aumento de 24,7%). Mas nesse intervalo de oito anos, a população brasileira cresceu 6,98% (de 194,8 milhões para 208,4 milhões). Um descompasso que mostra que a redução do consumo e a reutilização (medidas anteriores à reciclagem) ainda são letra morta.

Emanuel Alencar

Jornalista formado em 2006 pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou nos jornais O Fluminense, O Dia e O Globo, no qual ficou por oito anos cobrindo temas ligados ao meio ambiente. Editor de Conteúdo do Museu do Amanhã. Tem pós-graduação em Gestão Ambiental e cursa mestra em Engenharia Ambiental pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Apaixonado pela profissão, acredita que sempre haverá gente interessada em ouvir boas histórias.

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Um comentário em “Dez anos depois da lei de resíduos, Brasil ainda tem quase 3 mil lixões a céu aberto

  1. José Eduardo Ismael Lutti disse:

    Concordo que tivemos avanços significativos na questão dos resíduos sólidos no Brasil a partir da PNRS, mas isso não implica necessária e proporcionalmente avanços na gestão dos resíduos sólidos por parte daqueles que estão obrigados pela lei a fazê-la.
    Em que pese a lei não ser clara quanto aos limites das responsabilidades de cada ator no ciclo de vida dos produtos e embalagens, certo é que perdemos uma grande oportunidade de solucionar eventuais dúvidas quando da edição, pelo poder executivo federal, do decreto regulamentador da lei, pois não foram estabelecidos tais balizamentos. Não se pode generalizar, evidentemente, mas grande parte do setor empresarial (importadores, fabricantes, distribuidores e comerciantes) vêm se valendo dessa falta de coragem do poder executivo para não cumprir as obrigações próprias da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos e embalagens pós consumo.
    O baixo e estagnado índice de reciclagem brasileiro, não mais que 5% do que é efetivamente coletado, demonstra claramente que estamos trilhando caminhos inadequados e, consequentemente, ineficientes do ponto de vista da sustentabilidade socioambiental.
    Passou da hora de os poderes executivos, federal, estaduais e municipais, fazerem “a lição de casa” de acordo com a “cartilha” (lei da PNRS). Refiro-me a duas linhas de ações a serem adotadas pelo poder público: Uma, executar, e de forma adequada, as atividades a que estão obrigados pela lei de resíduos sólidos, dentre as quais, a mais importante, é a elaboração e publicação dos respectivos Planos de Resíduos Sólidos e Planos Municipais de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PMGIRS); e, duas, encontrar e implementar soluções para o efetivo “equilíbrio econômico e financeiro” do sistema municipal de gestão de resíduos sólidos.
    Mas o que são o “gerenciamento de resíduos sólidos” e a “gestão integrada de resíduos sólidos”? Segundo a lei de resíduos sólidos é, para o primeiro, o “conjunto de ações exercidas, direta ou indiretamente, nas etapas de coleta, transporte, transbordo, tratamento e destinação final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos, de acordo com plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos ou com plano de gerenciamento de resíduos sólidos; e, para o segundo, “conjunto de ações voltadas para a busca de soluções para os resíduos sólidos, de forma a considerar as dimensões política, econômica, ambiental, cultural e social, com controle social e sob a premissa do desenvolvimento sustentável”.
    Patente, pois, a importância dos planos municipais de gestão integrada de resíduos sólidos. Somente por meio desse instrumento é que o gestor público terá condições de adotas ações pautadas exclusivamente em critérios técnicos.
    Além de ter diagnósticos dos resíduos produzidos no território do município, como origem, volume, caracterização e formas de destinação e disposição final, os gestores poderão também, por meio dos PMGIRS, identificar os grandes geradores, públicos e privados, de resíduos obrigados a destinar por sua conta os resíduos gerados em suas atividades, bem como a identificação daquelas pessoas jurídicas obrigadas a implementar sistemas de logística reversa.
    Mas, além de outras ações mínimas do PMGIRS, destacam-se a definição de um “sistema de cálculo dos custos da prestação dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos, bem como a forma de cobrança desses serviços”. Por meio das definições dos custos e formas de cobrança por esse serviço, o município chegará ao efetivo equilíbrio econômico e financeiro do sistema de gestão integrada de resíduos sólidos. Isso é indispensável para a eliminação dos “lixões”.
    Outro aspecto de grande importância dos PMGIRS são as definições pelo município de um sistema de coleta seletiva de resíduos recicláveis e as responsabilidades por sua operacionalização e, também, as ações do sistema de logística reversa de produtos e embalagens pós consumo, de obrigação do setor empresarial, que ficarão a cargo do poder público. Nesse caso, ficarão definidos os custos dessas atividades a fim de que o poder público seja remunerado pelo setor empresarial.
    Implantadas a coleta seletiva e a logística reversa de materiais recicláveis restarão somente rejeitos a serem dispostos em aterros sanitários. Certamente isso contribuiria em muito para a eliminação dos “lixões”.
    Mas não são somente as ações dos poderes públicos que estão impedindo o crescimento dos índices de reciclagem, a maior parcela de culpa por isso cabe ao setor empresarial.
    Nesse ponto, a despeito das disposições legais quanto às obrigações do setor privado na coleta, transporte, triagem, reuso, reciclagem dos produtos e embalagens pós consumo e a disposição final dos rejeitos daí decorrentes, os importadores, fabricantes e comerciantes não estão se entendendo a fim de adotarem e implementarem sistemas de logística reversa efetivamente eficientes, salvo raras exceções como os de embalagens de agrotóxicos, óleos lubrificantes usados e embalagens de alumínio.
    Divergem especialmente quanto à divisão dos custos da operacionalização do sistema. Os sistemas existentes estão em grande parte sendo sustentados pelos fabricantes de produtos. Os importadores, salvo os de lâmpadas fluorescentes, de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista, não são vistos nos acordos setoriais assumindo sua parcela de responsabilidade. Igualmente se encontram os grandes varejistas que, como comerciantes, se posicionam com quem possui reduzidas responsabilidades ambientais quando, na realidade, devem ser equiparados aos fabricantes em face do significativo portifólio de produtos de marcas próprias que colocam no mercado consumidor.
    Esses atores também têm se valido, sem a justa contrapartida, é bom que se registre, do trabalho dos integrantes das cooperativas e associações de catadores de resíduos recicláveis que nada, ou quase nada, recebem pelos seus serviços prestados. No entanto, “respeitáveis” conglomerados industriais se apropriam dos resultados do trabalho dessas pessoas para suas campanhas de marketing.
    Avanços tivemos, mas estamos muito longe de algo a comemorar nesse aniversário de dez anos da Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos.

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