Ataques, resistência e lutas sociais: um retrato das candidaturas trans em 2020

Indianarae Siqueira, Mariana Franco Fuckner e Ariane Senna: três das 281 candidaturas de pessoas trans pelo Brasil nas eleições de 2020. (Fotos; Reprodução/ Instagram)

Número de transgêneros concorrendo em 2020 aumentou 209% em relação a 2016. Apesar da boa notícia, campanhas são marcadas por cobranças excessivas e ofensas, segundo postulantes

Por Agnes Reitz | ODS 5 • Publicada em 13 de novembro de 2020 - 09:00 • Atualizada em 19 de novembro de 2020 - 19:45

Indianarae Siqueira, Mariana Franco Fuckner e Ariane Senna: três das 281 candidaturas de pessoas trans pelo Brasil nas eleições de 2020. (Fotos; Reprodução/ Instagram)

Com 281 candidaturas pelo Brasil, o número de pessoas trans na disputa das eleições municipais deste ano teve salto de 209% em relação a 2016, quando houve 89 candidaturas e 8 pessoas eleitas. De acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais – Antra – a região Sudeste lidera com 117 candidaturas, sendo 63 só em São Paulo. Em seguida, temos 82 no Nordeste, 30 no Sul, e por último as regiões Norte e o Centro-Oeste, com 26 candidaturas cada. Desse total, cerca de 75% dos candidatos estão concorrendo pela primeira vez. Acesse ao relatório completo da Antra clicando aqui. 

O nosso maior desafio tem sido trazer esse deslocamento em que um corpo, visto única e exclusivamente na prostituição, está agora disputando um espaço de poder e decisão que é o cenário político

Para Keila Simpson, presidente da Antra, esse crescimento vem como uma resposta à falta de representação das entidades políticas sobre suas demandas específicas, como por exemplo saúde e mercado de trabalho, que quase nunca estão contidas nos planos de governos municipais. E a resposta para isso veio por meio da disputa em busca da construção de uma nova política que abrace a comunidade trans. 

A eleição de Erica Malunguinho, em 2018, e a expressiva quantidade de votos conquistados por Duda Salabert, que concorreu ao senado pelo Estado de Minas Gerais, também foram fundamentais para abrir caminhos para que outras personalidades trans pudessem acreditar que é possível conquistar espaços dentro da política. Desde 2018, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) permite que pessoas transexuais utilizem o nome social na candidatura para cargos políticos. No entanto, a mudança vem tardia considerando o decreto de uso de nome social em instituições públicas assinado pela ex-presidente Dilma Rousseff, em 2014. Mas ainda assim permitiu que 167 pessoas utilizassem do nome social, dentre elas, inclusive, 7 pessoas cisgêneras para concorrerem utilizando apelidos. 

Candidatas trans
Indianarae Siqueira, candidata a vereadora no Rio de Janeiro pelo PT e fundadora da Casa Nem. (Foto: Reprodução / Instagram)

“Tinha-se uma ideia muito errônea no passado que a população trans estava alheia a tudo e a todos e ela não está. Ela pode ainda não participar ativamente da vida social, muito mais por um contexto de violência e exclusão, mas ela não está alheia, não. Se ela estivesse alheia, ela estaria quietinha no seu canto recebendo as intempéries da vida e não reagindo”, acredita Keila Simpson.

AS VOZES NA DISPUTA 

A luta por visibilidade não é recente. Há quase trinta anos era eleita a primeira transexual no Brasil. Kátia Tapety conquistou uma das cadeiras da Câmara de Vereadores no município de Colônia do Piauí, vencendo em primeiro lugar por três eleições consecutivas (1992, 1996 e 2000). Chegou a ser vice-prefeita em 2004. 

Em Santa Catarina, Mariana Franco Fuckner está se candidatando pela segunda vez. Ela foi a primeira candidata do estado a utilizar o recurso do TSE que permite o uso do nome social na candidatura política. Desta vez, pleiteando o cargo de vereadora de Florianópolis, cidade conhecida internacionalmente como capital do turismo LGBTQI+. Mariana revelou que a realidade da cidade é bem menos colorida do que é vendida: “Todas as propostas de lei envolvendo as pessoas LGBTQI+ aqui no município são sempre rejeitadas. Elas não são aprovadas principalmente por causa desse pensamento patriarcal muito forte. Então, se faz necessário termos representatividade, por isso eu me candidatei.” A capital catarinense registra cerca de 70 casos de violência por mês contra pessoas LGBTQI+ de acordo com o documentário “Depois do Frevo” do jornalista Mateus Faisting, lançado em 2018.

Candidatas trans
Mariana Franco Fuckner segura compromisso assinado pelos direitos das crianças. Ela concorre ao cargo de vereadora em Florianópolis. (Foto: Reprodução Instagram)

Para a ativista social e psicóloga Ariane Senna, candidata a vereadora em Salvador, na Bahia, a motivação vem da possibilidade de expandir seus esforços com os movimentos sociais por meio do espaço político. Ela que já foi presidenta do Conselho Estadual de Direitos da População LGBT da Bahia, em 2017, e secretária da Juventude da ANTRA até este ano, quer propor políticas públicas, principalmente, para a população trans. A candidata que foi expulsa de casa aos 13 anos e sentiu o gosto amargo da prostituição durante a adolescência para sobreviver, levanta o debate de que a prostituição não precisa ser o único caminho para travestis e transexuais, que são empurradas pra ele pela ausência de outras oportunidades no mercado de trabalho. 

Assim como Ariane, Indianarae Siqueira, candidata a vereadora no Rio de Janeiro, também viu a possibilidade de disputar na política nascer do seu ativismo. Em 2016, disputou uma das cadeiras da Câmara de Vereadores da capital fluminense se tornando a quarta suplente. Após ter sua candidatura a deputada federal impugnada em 2018, retorna esse ano.

Ruby Rivera, candidata a vereadora na cidade mineira de São João del-Rei diz que o que culminou em sua candidatura é a vontade de lutar contra a corrupção no município e renovar a Câmara de Vereadores. Assim como as três primeiras entrevistadas, 80% dos candidatos transexuais e transgêneros deste ano afirmaram que fazem parte de algum coletivo ou instituição que luta pelos direitos das pessoas trans, mostrando que o movimento, cansado de pedir por mudanças, decidiu colocar o nome em jogo e tentar fazer as mudanças acontecerem no lugar em que as decisões tomadas: nas Câmaras e Assembleias.

Candidatas trans
Ariane Senna, ativista social, psicóloga e candidata a vereadora em Salvador, na Bahia. (Foto: Reprodução/Instagram)

SÃO DOIS LADOS DA LUTA?

Ao contrário do que se possa imaginar, quase 40% das candidaturas de pessoas trans nas eleições municipais deste ano são filiadas a partidos de direita, porém no panorama municipal, as coligações e os partidos não são tão rígidos em relação à identificação política dos interessados em se candidatar. 

A candidata Ruby Rivera, que concorre pelo PODEMOS em São João del-Rei, Minas Gerais, rebate as críticas e afirma que sempre será de esquerda, independente do partido pelo qual se filiou: “Muitas pessoas podem não ver sentido, mas pra mim é um diferencial, ser uma trans num partido de direita. Eu quero representar as mulheres trans e as pessoas LGBTQI+ durante essa caminhada numa cidade conservadora como a minha. As pessoas aqui já conhecem a minha luta pelas minorias desde sempre, minha luta pelos LGBTQI+, então acho que isso não influenciará”.

Para Keila Simpson, no âmbito municipal o que conta é a condição que aquela pessoa trans tem de transitar dentro do espectro político local: “Provavelmente, foram esses partidos que mais abriram as portas ou as possibilidades para essas pessoas estarem, e isto é uma avaliação pessoal, não estou dizendo que os partidos de esquerda não fizeram esse mesmo movimento, mas talvez essas pessoas se identificaram com esses partidos, muito embora sem entender a fundo.” 

Candidatas trans
Ruby Rivera, candidata a vereadora na cidade mineira de São João del-Rei, Minas Gerais. Ela está entre os 40% de candidaturas em partidos de direita. (Foto: Reprodução/Instagram)

Em Viçosa, Minas Gerais, Brenda Santunioni é uma das duas mulheres trans candidatas a prefeitura no Brasil. A outra candidata é Letícia Lanz, que disputa a prefeitura de Curitiba pelo PSOL. Brenda concorre pelo Patriota e afirmou, em entrevista ao portal Gênero e Número, que a pluralidade de candidaturas de todos os tipos de pessoas, de diferentes origens, profissões e religiões são importantes para acabar com o preconceito. Desconsiderando candidaturas nas quais as pessoas trans abraçam mais a cis normatividade e estão realmente alinhadas com as agendas de direita, o processo de filiação pode ser transitório considerando a disponibilidade geográfica municipal, já que algumas afirmam manter seus posicionamentos progressistas mesmo estando em partidos conservadores.

Tinha-se uma ideia muito errônea no passado que a população trans estava alheia a tudo e a todos e ela não está. Ela pode ainda não participar ativamente da vida social, muito mais por um contexto de violência e exclusão, mas ela não está alheia, não

Para Ariane Senna, Mariana Franco Fuckner e Indianarae Siqueira, a presença feminina nos partidos se mostrou primordial durante o processo de filiação e lançamento das candidaturas. Ariane se filiou ao PSB exclusivamente pela presença e convite de mulheres que já estavam no partido. Mariana, que disputa pelo PCdoB, é secretária das Mulheres de Santa Catarina e escolheu o partido por ser o responsável em aprovar pautas voltadas para a comunidade LGBTQI+ no estado. Suas propostas incluem maior inclusão no mercado de trabalho, melhores treinamento da Polícia Militar e da área de saúde, considerando que pessoas trans evitam ambos os órgãos temendo constrangimentos. 

Já Indianarae prioriza pautas sociais como moradia, educação, saúde e a economia solidária, que visa proporcionar à população trans todos os direitos básicos. Ela se sentiu abraçada pelo PT após ser expulsa do PSOL, há dois anos: “Eu queria muito que fosse o PT porque faço parte do Comitê do Movimento Volta Dilma, faço parte da luta com as mulheres do PT sempre na rua, sempre em defesa de Lula e da Casa Nem – organização carioca que abriga pessoas LGBTQI+ em situação de vulnerabilidade, fundada por Indianarae. Além disso, Indianarae defende a causa animal e a popularização da alimentação vegana e de qualidade.

Candidatas trans
Brenda Santunioni, candidata a prefeitura de Viçosa, Minas Gerais, em campanha. Além dela, Letícia Lanz disputa cargo em Curitiba. (Foto: Reprodução/ Instagram)

NEM TUDO SÃO CORES

Além de lutar pela existência e pela disputa dos espaços políticos, as pessoas trans que se candidatam precisam resistir também nas ruas. Os ataques e a cobrança excessiva mostram que este é mais um caminho que não será traçado facilmente. Indianarae comenta que a maioria dos ataques que recebe são virtuais, principalmente por páginas que se intitulam pertencentes ao feminismo radical. Já Mariana Franco percebe, além dos ataques pela internet, a rejeição também acontecendo nas ruas. As pessoas trans estão saindo do lugar da marginalização construída historicamente e partindo para espaços antes não conquistados, e isso incomoda a comunidade cisnormativa. 

Ariane Senna pontua que percebe uma cobrança muito maior sobre os candidatos trans: questionam a capacidade e a formação, porque a sociedade não está acostumada com pessoas trans nesses espaços. “Uma mulher trans tem que fazer com que as pessoas acreditem em sua capacidade intelectual, política e acadêmica. O nosso maior desafio tem sido trazer esse deslocamento em que um corpo, visto única e exclusivamente na prostituição, está agora disputando um espaço de poder e decisão que é o cenário político”, afirma.

Agnes Reitz

Agnes Reitz é jornalista pela Universidade Federal de São João del-Rei, mulher trans e apaixonada por tecnologia.

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