ODS 1
O que empurra as mulheres para a rua e para o crack?
Livro de antropóloga mostra como as políticas contra as drogas, violação de direitos, violência e situação socioeconômica afetaram as vidas de usuárias da substância em Salvador
“Gostava tanto da minha mãe que queria ficar na rua para não dar trabalho em casa para ela. Pensava assim, chegar, suja, fedendo, ainda dar trabalho para minha mãe? Eu preferia estar na rua”. O depoimento da jovem identificada com o pseudônimo Dandara faz parte do livro “Tornar-se mulher usuária de crack: cultura e política sobre drogas”, escrito pela antropóloga baiana Luana Malheiro com base em seus três anos de pesquisas sobre o tema.
No livro, Dandara continua contando sua trajetória e mostrando as condições socioeconômicas foram definitivas para sua situação de rua: “Uma lembrança ruim que eu tenho da minha infância foi quando minha mãe começou a dizer que não tinha mais condições de ficar com a gente, que teria que dar para o Juizado, porque ela vendia cafezinho e mostrava quanto tinha rendido. Dava no máximo R$ 40,00. E tinha a luz, o gás, e ela no desespero sem saber como pagar. Aí eu falava: ‘Eu vou aqui e volto’. E sumia. Do que adiantava uma boca a mais? Eu preferia viver a minha vida só. Toda vez que eu tinha um dinheiro eu ia lá e fazia a feira pra minha mãe.”
[g1_quote author_name=”Luana Malheiro” author_description=”Antropóloga” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”02″]A violência racial e de gênero tem sido a principal porta de entrada para o uso abusivo de crack
[/g1_quote]A antropóloga, que é conselheira da ONG baiana Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, iniciou a pesquisa que deu origem ao livro, lançado recentemente, nas ruas do centro de Salvador, na época do seu mestrado na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Para Luana, a principal conclusão da pesquisa é que a maior parte das mulheres em situação de rua que faz uso abusivo de crack tem em sua história anterior outros problemas, que as levaram à situação em que se encontram.
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Veja o que já enviamos“Quando me refiro a mulheres com trajetória de vida nas ruas, isso significa que, em algum momento de suas vidas, elas tiveram a rua como morada, embora no momento da pesquisa muitas estejam em moradia precária, vivendo em ocupações ou em abrigos municipais”, explica Luana: “A violência racial e de gênero tem sido a principal porta de entrada para o uso abusivo de crack. A pesquisa buscou compreender com profundidade a cultura do uso de crack, buscando, a partir da reflexão das mulheres, entender quando o uso acontece, quando se torna abusivo e como essas mulheres conseguem alcançar o controle do uso”.
Violação de direitos
Luana pontua que, de acordo com sua pesquisa, o ambiente de violação de direitos é um elemento central para entender o uso abusivo de drogas. “Todas elas têm algum problema para chegar a esse ponto, pode ser um filho que perdeu, o marido que traiu, uma violência que sofreu, sempre tem alguma coisa. Muitas vezes, as mulheres não querem falar, nem assumir, mas têm. Todas elas têm algo para contar porque ninguém vai se jogar no crack assim de bobeira”, diz a autora.
A antropóloga trabalha há 15 anos com redução de danos do uso de crack na população em situação de rua. O caso de Dandara sustenta o raciocínio de que as mulheres já vêm de uma problemática anterior em casa ao irem para rua e passarem a abusar do crack. Em outro depoimento do livro, uma entrevistada relata: “Eu não entendia por que Deus tinha tirado minha mãe de mim, eu fumava e conversava com ele: ‘Minha mãe tinha 10 anos de obreira, por que você levou ela?’ Aí juntou com o estupro e o HIV. Eu fumava de dia, de tarde e de noite, eu comia pedra. Dormia com o crack e acordava com o crack. Eu fumava pedra e me esquecia dos meus problemas, eu escondia todos os meus problemas atrás do crack. (…) Mas quando passava aquela onda, voltava tudo à mesma miséria e aí faz o que nessa hora? Fuma de novo para esquecer e assim vai.”
Abuso sexual
Se a família, muitas vezes, representa apoio, em outras tantas, é um dos problemas. Não são raros os relatos, ouvidos pela antropóloga, de abuso sexual por padrastos ou outros homens que frequentavam as casas das meninas que foram parar nas ruas e se envolveram com o crack. “Eu já fui duas vezes prestar queixa, nunca aconteceu nada. Mandaram eu ir embora. Eu já fui com minha mãe e ele, nunca deu em nada. Uma dessas vezes, levaram ele para a cela, devem ter dado um aperto, mas, na mesma hora, ele tava aqui. Assim que eu cheguei ele já estava aqui dando risada da minha cara”, relata uma das entrevistadas.
Além dos relatos, o livro mostra como surgiram as políticas sobre drogas no Brasil e no mundo e qual a influência dessas políticas na vida dessas mulheres. “Considero bem importante a narrativa das mulheres e, também, a análise de como a política sobre drogas surgiu a partir de ideias pautadas no ódio racial, em bases racistas. O resultado é o que temos agora: um Estado que tem declarado guerra à sua população. Eu falo de uma cidade do Nordeste, Salvador. Poucos estudos falam desses contexto. Boa parte dos estudos se concentra no Sudeste. Podemos não ter uma intervenção militar formal como houve no Rio de Janeiro, mas vivemos uma guerra que não tem aparecido na mídia. E precisamos falar disso”, conclui Luana.
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Bernardo de la Peña é carioca e jornalista há mais de 25 anos. Trabalhou em "O Estado de S. Paulo" e "O Globo", onde ganhou dois Prêmio Esso. Escritor, publicou dois livros: "Memorial do escândalo", livro-reportagem sobre o mensalão, e "Um carioca no Planalto", memórias dos cinco anos que viveu em Brasília, a maior parte do tempo cobrindo o Planalto. Adora cavalos, a ponto de se arriscar a praticar salto na Sociedade Hípica Brasileira, um de seus lugares preferidos, ao lado da fazenda da família em Secretário, distrito de Petrópolis (RJ).