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Mulher trans, Mykaella precisou escolher entre pagar o aluguel ou a comida: ‘Fui viver na rua’
Especial ‘Com Nome, Mas Sem Endereço” | Mineira de 28 anos, ela encarou a prostituição para sobreviver e passou um mês nas ruas do Rio de Janeiro até encontrar centro de acolhimento.
Eu me chamo Mykaella Nazario e tenho 28 anos. Sou de Minas Gerais, mas hoje estou no Rio de Janeiro. Já passei por muita situação de dificuldade, mas hoje pago aluguel e curto a minha autonomia envolvida em projetos e trabalhos. Cheguei a viver na rua, passei por situação de vulnerabilidade por conta de uma vida “oculta” que levava — sou uma ex-garota de programa, mas não queria mais ficar naquela vida, em que eu não me reconhecia mais, nem enquanto uma mulher trans, nem como Mykaella e nem como Albert, meu nome de batismo. *Depoimento dado por Mykaella e transcrito pela repórter Francielly Barbosa.
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Nisso, comecei a conhecer projetos sociais para pessoas em situação de rua. Como sou de Minas Gerais e vim para o Rio de Janeiro sem nenhum conhecido aqui, sem ninguém, completamente sozinha, cheguei a essa situação de vulnerabilidade. Passei um tempo na rua até conhecer um abrigo, o Centro Provisório de Atendimento (CPA IV), na Lapa.
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Veja o que já enviamosInaugurado em 2020, o hotel social atua como abrigo para pessoas LGBTQIAPN+ em situação de rua e vulnerabilidade socioeconômica. Lá, fui me desenvolvendo, me construindo, me conhecendo e superando tudo que chegou para mim; situações de vulnerabilidade em que eu não queria estar, até por ter conhecimento — tenho o ensino médio completo — e por ter levado uma vida “boa”, porque a vida de uma garota de programa não é ótima, mas também não é ruim, só que acaba com o nosso psicológico. Preferia ter uma vida diferente, então foi um processo bem doloroso para adquirir tudo o que tenho hoje em dia.
Antes de chegar ao Rio de Janeiro, já tinha viajado por várias cidades. Quando ainda era garota de programa, já tinha morado no município e vi que o Rio abraçava muito a população LGBTQIAPN+, que tinha muita cultura e um envolvimento que achei muito gostoso, em que eu me encaixei muito. Quando decidi deixar essa minha página cair, decidi vir para o Rio de Janeiro, porque sabia que aqui iria me encontrar e conhecer pessoas que iriam me ajudar.
Como eu era garota de programa, ainda tinha um dinheiro na minha conta e isso foi dando para eu me manter um pouco, mas ainda assim estava começando a ficar apertado, aí fui vendo que estava começando a ficar numa situação muito mais vulnerável, que com o dinheiro que eu tinha ou eu pagava aluguel, ou eu comia, então passei por um tempo em vulnerabilidade, de ficar um tempo na rua, em vez de pegar o dinheiro que eu tinha e pagar o aluguel e ficar mais prejudicada, mais vulnerável ainda.
Com o pouco que eu tinha, se eu pagasse o aluguel não ia comer, não ia viver, então ‘preferi’ passar por uma situação de vulnerabilidade e guardar esse dinheiro para tomar um banho, comer um alimento, me sentir um pouco mais “confortável” naquela situação. No Rio de Janeiro, passei cerca de um mês em situação de rua. Eu sabia que a rua era bem complicada, sou uma ex-garota de programa, então vivia muito na noite, e por ser uma mulher trans, ter um corpo que está naturalmente em situação de vulnerabilidade, o risco é maior ainda.
A realidade sempre é um risco, mas como estava chegando agora, era novidade, e tem os interesses e a malícia do pessoal que já está ali e fica só esperando a oportunidade certa de te atingir e atingir qualquer outro em uma situação como a minha, principalmente quem não está no seu lugar de origem. Passei por isso e foi um período muito doloroso.
Assassinato, estupro, a covardia em geral. Se você não faz o que eles querem, eles te forçam. O abuso contra a sua privacidade é um risco em geral para qualquer um, não só para mulheres trans. Nem todo mundo tem aquela malícia de ser forte, de enfrentar, de se impor, muitos ficam retraídos, já pelo processo da ficha de estar em situação de rua cair. Passei, inclusive, por essa posição de ficar recuada, retraída, nos primeiros dias, porque não esperava e não queria estar em situação de rua, mas cheguei a essa condição e a realidade caiu na minha cabeça. Eu não queria isso, porque tenho uma vida e tive uma vida boa, então pensava “ou fico nessa vida para morrer no meio deles, ou vou dar meus passos para sair ou eu volto para a prostituição”. Preferi dar meus passos para frente e procurar me conhecer no Rio de Janeiro. Comecei a conhecer pessoas, participar de projetos, até encontrar o abrigo de acolhimento.
Graças a Deus tenho uma boa comunicação, um bom diálogo com as pessoas, e isso foi me abrindo várias portas. Fui conhecendo várias pessoas que foram me instruindo a esses lugares, como abrigos, me guiando e me mostrando projetos de acolhimento, e eu fui indo. O CPA IV conheci por um amigo meu, que também estava em situação de rua. De lá, conheci também o Centro Pop. Fiquei no acolhimento por quatro meses, foi uma superação bem rápida porque, graças a Deus, a minha boa comunicação foi abrindo caminhos para mim.
Uma coisa que me ajudou muito foi o Bolsa Família. Não sabia que poderia ser beneficiada por esse auxílio e no abrigo eles realizam o nosso cadastro no Cadastro Único (CadÚnico). Descobri que tinha esse direito, fiz o cadastro e foi aprovado. Com essa base financeira, mesmo que pouca, consegui sair do abrigo depois do período que poderia passar lá, de quatro meses. Acho esses espaços muito bons, mais ainda para quem quer sair dessa situação de vulnerabilidade. Fiquei um mês em condição de rua, nesse um mês fui bem ligeira, consegui acolhimento, mas poderia ter passado mais. Mas eu queria ficar estável, porque vi que estar em situação de rua não era uma coisa boa — não era para o meu perfil, não é do perfil de ninguém para falar a verdade.
Hoje, trabalho basicamente como porta-voz da revista TRAÇOS, além de alguns projetos, como o Instituto Lar, do Senado, e o Acelerando, da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Também recebo uma bolsa de R$ 250 da minha faculdade de Administração no Colégio Pedro II. Fora isso, vou sobrevivendo com doações dali, ajuda de custos daqui.
Vai fazer um ano e seis meses que consegui minha casa.
Esta reportagem faz parte da série especial “Com Nome, Mas Sem Endereço”. Clique na foto abaixo para conferir mais histórias.
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Estudante de Jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF), é fascinada por contar histórias com foco em desigualdades sociais, direitos humanos e questões de gênero. Na universidade, integrou o jornal O Casarão, a web rádio Nas Ondas do IACS e o projeto de pesquisa "Mídia, juventude e suicídio: um estudo sobre os padrões de cobertura da morte auto-provocada". Atuou como estagiária de redação na Agência Nossa e de assessoria de imprensa, com foco em divulgação científica, na UFF.