Morre Martinha, travesti símbolo de resistência no período da ditadura militar

De acordo com a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia, Martinha Sá morreu em decorrência da covid-19.

Por Yuri Alves Fernandes | ODS 5 • Publicada em 22 de setembro de 2020 - 18:51 • Atualizada em 25 de setembro de 2020 - 11:03

Na época do boom da Aids, Martinha conta que travestis eram expulsas dos ônibus de Salvador (Foto: Karol Azevedo)

Marta Maria de Sá – ou apenas Martinha – desde criança foi obrigada a aprender a resistir. Era o seu único caminho. Em casa, quando era ameaçada pela própria mãe por causa dos trejeitos femininos. Nas ruas, quando se viu aos oito anos de idade tendo que se prostituir para sobreviver. Nas escolas, expulsa várias vezes por ser considerada uma má influência para os outros alunos. Nas prisões, só na época da ditadura militar foram mais de 200. Travesti, ela conseguiu ultrapassar a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil, que é de apenas 35 anos. Mas, nesta semana, Martinha entrou em outra triste e atual estatística: a das vítimas da covid-19. Aos 64 anos.

Pegavam a gente, levavam para a praia deserta, mandavam uma segurar no membro da outra e mandavam a gente cantar ‘Ciranda Cirandinha’

Segundo a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia (SJDHDS), a morte aconteceu em Salvador, onde ela morava, na última quinta-feira, 16. “Martinha era símbolo de resistência e luta pelos direitos da população LGBTQIA+ , durante toda a vida enfrentou e combateu o preconceito, foi vítima de violência física e perseguição, enfrentou a ditadura militar e a prisão, mas nunca deixou de lado a sua identidade e a busca por respeito e igualdade”, informou a nota publicada no site oficial.

No dia 15 de maio de 2018, conheci Martinha nas gravações da série do #Colabora “LGBT+60: Corpos que Resistem”. Fiquei sabendo da sua luta e história por meio de uma reportagem escrita pelo jornalista Jordan Dafné para o Correio 24 horas. E que história! Contei sobre ela na época da publicação do segundo episódio do projeto. Reconto aqui, como forma de homenagem:

Meu encontro com Martinha, em maio de 2019, em Salvador, na Bahia (Foto: Arquivo pessoal)

Quando criança, Martinha foi expulsa de quatro colégios. Sofria ameaças da própria mãe que afirmava que lhe daria uma injeção de estricnina (veneno para rato) enquanto ela dormia ou enfiaria pimenta em seu ânus. Sem escola e com medo de ficar em casa, Martinha foi para rua. Dormia pelas praças de Salvador. A prostituição foi a saída encontrada para sobreviver. Era uma menina. Tinha apenas 8 anos quando fez seu primeiro programa.

No nosso encontro – na sede do Grupo Gay da Bahia, local escolhido por ela para a entrevista – Martinha chegou com duas muletas. O corpo estava debilitado. Nos últimos anos, havia sofrido dois AVCs. Por conta de todas as adversidades vividas, a seriedade em tratar dos assuntos era quase que inevitável. O riso tímido só apareceu quando falou que o silicone a deformou.

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A postura é de quem precisou ser forte e resistir, sempre. Sobretudo na época da ditadura militar no Brasil. As marcas ainda estavam lá. Foi presa mais de 200 vezes, vítima de uma verdadeira caça a tudo ao que não era considerado como bons costumes sociais. “A gente ia comprar uma carne no açougue de manhã, a polícia via e levava”, contou. Os abusos físicos e sexuais eram constantes: “Pegavam a gente, levavam para a praia deserta, mandavam uma segurar no membro da outra e mandavam a gente cantar ‘Ciranda Cirandinha’”. Na sobrancelha, mostrou a cicatriz após uma ‘cabada’ de revólver que levou de um policial.

Martinha mostra cicatriz resultado de violência policial durante a Ditadura Militar: ‘A gente ia comprar uma carne no açougue de manhã, a polícia via e levava’. (Foto: Karol Azevedo)

Apesar do passado doloroso, ela sonhava. E seu sonho era dos mais nobres. Queria abrir uma casa de apoio para LGBTs que são expulsos de casa. Quase chegou a realizar, mas colocaram fogo na casa que comprou após um período em que se prostituía quase 24 horas por dia. Perdeu quase todas as amigas travestis ou trans: vítimas da AIDS, da violência policial ou da transfobia.

“Eu acho que é como se Deus me escolhesse para poder estar viva para poder contar essas histórias para as gerações de hoje”. Sua trajetória deixa um legado não só para a comunidade LGBT+, mas para toda a sociedade, que não pode jamais permitir que histórias como a de Martinha se repitam.

Obrigada a sair de casa aos 8 anos, Martinha queria abrir uma casa de apoio para LGBTs: (Foto: Yuri Fernandes)

Yuri Alves Fernandes

Jornalista e roteirista do #Colabora especializado em pautas sobre Diversidade. Autor da série “LGBT+60: Corpos que Resistem”, vencedora do Prêmio Longevidade Bradesco e do Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+. Fez parte da equipe ganhadora do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, com a série “Sem direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”. É coordenador de jornalismo do Canal Reload e diretor do podcast "DáUmReload", da Amazon Music. Já passou pelas redações do EGO, Bom Dia Brasil e do Fantástico. Por meio da comunicação humanizada, busca ecoar vozes de minorias sociais, sobretudo, da comunidade LGBT+.

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3 comentários “Morre Martinha, travesti símbolo de resistência no período da ditadura militar

  1. ISABELITA DOS PATINS disse:

    PARABENS PELA BELA MATERIA REFERENTE A = MARTINHA = E SE PREOCURAEM COM O GRUPO GLBT = RECEBAM MEUS CUMPRIMENTOS ISABELITA DOS PATINS- EMBAIXadora DA SOLIDARIEDADE E EMB DO RIO DE JANEIRO =

  2. Eleonora disse:

    apenas uma questão. Ela não tinha oito anos quando fez o primeiro programa. Ela tinha oito anos quando foi abusada sexualmente em troca de dinheiro, não era uma relação consensual nem um vinculo com relação de trabalho. Ela foi abusada sexualmente. A mãe abusou dela, os “clientes” abusaram dela. Criança não faz programa, criança é estuprada.

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