Dia em coworking, noite em abrigo: a luta de Juliel, mulher trans pós-graduada em situação de rua

Dia em coworking, noite em abrigo: a luta de Juliel, mulher trans pós-graduada em situação de rua

Juliel Duarte: 'O ruim é quando está chovendo ou é feriado e todos os ambientes estão fechados, aí o jeito é ficar embaixo de uma marquise'. (Arte: Dan Torres)

Especial ‘Com Nome, Mas Sem Endereço' | Paraibana de 37 anos com dois filhos conta que após transição tudo ficou mais difícil: há dois anos nas ruas do Rio, já dormiu em aeroporto e passa o dia procurando wi-fi para trabalhar.

Por Francielly Barbosa | ODS 16ODS 5 • Publicada em 17 de maio de 2024 - 08:27 • Atualizada em 27 de maio de 2024 - 10:05

Eu sou Juliel Duarte e tenho 37 anos. Nasci na Paraíba, mas vim para o Rio de Janeiro ainda pequena, aos 7 anos, e estou aqui até hoje. Na época, não tinha feito a transição ainda, eu tinha outra vida antes, muitos problemas, mas quando percebi que era uma mulher trans resolvi fazer tudo que uma mulher trans faz e mudei. *Depoimento dado por Juliel e transcrito pela repórter Francielly Barbosa. 

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Trabalhava no administrativo de uma faculdade, mas veio a pandemia e a faculdade faliu. Por conta disso, me demitiram. No período, recebi a indenização, mas logo depois me assumi como mulher trans, então tudo ficou mais difícil. Surgiu o preconceito, as pessoas passaram a me olhar com outros olhos, pensam que é um homem vestido de mulher e acham esquisito. 

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Naquele momento, guardei o dinheiro da rescisão para ir vivendo, sempre tendo em mente que precisava arrumar outro emprego, mas as portas se fecharam. Eu estava terminando a pós-graduação na época, que consegui pagar com aquele dinheiro e terminar. Depois, me mudei de um apartamento maior para um quartinho e fiquei morando nesse quartinho, mas o dinheiro acabou, e eu não conseguia mais novamente.

Ia fazendo bicos para me sustentar, mas, sem ter como me manter, peguei minha mala, entreguei o quarto e fui para a rua. A pessoa que me alugava o espaço até me deixou morar por mais um tempo, três meses, sem pagar, mas insisti: “Olha, eu quero pagar. Quero voltar aqui e continuar morando”, porque eu até gostava do lugar. Fiquei na rua por causa disso, por falta de dinheiro e por falta de trabalho. 

Ia fazendo bicos para me sustentar, mas sem ter como me manter, peguei minha mala, entreguei o quarto e fui para a rua.

Juliel Duarte
37 anos

Agora, tem dois anos que fui para a rua. Minha vida mudou completamente. A primeira vez, lembro, peguei o VLT, fui para o aeroporto e fiquei lá com a minha mala, vestida, limpinha, porque, apesar de estar em situação de rua, procuro lugares para tomar banho, para trocar de roupa e não fico com aquela aparência de pessoa suja. As pessoas olham para mim e não acreditam que estou na rua, os outros até me pedem dinheiro achando que tenho para dar. 

Nesse primeiro momento, fiquei três dias dormindo no saguão do aeroporto, só que não é permitido ficar ali e eu não sabia disso, até o homem da segurança vir falar comigo e perguntar pela minha passagem. Respondi que não tinha e ele me avisou que não podia ficar ali, que já perceberam que eu estava ali há três dias e que teria que ir embora, perceberam que eu estava em situação de rua.

Peguei o VLT mais uma vez, mas parei na Avenida Rio Branco e fiquei aqui no Centro do Rio. Encontrei muita gente, numa situação ainda pior que a minha, no papelão, no chão, naquela situação que olho e penso “como o ser humano consegue ficar assim?”. Estou em uma situação difícil? Estou, mas consigo procurar um abrigo um pouco melhor.

Ultimamente tenho conseguido sobreviver, faço algumas coisas que me rendem algum dinheiro, busco oportunidades, instituições e já fui em ONGs pedir ajuda. Em dois anos em que estou na rua, não tenho coragem de pedir esmola, não peço dinheiro, nem comida, peço apenas onde sei que as pessoas têm a obrigação de me ajudar, como na Prefeitura ou em uma ONG que está trabalhando com pessoas em situação de rua, por exemplo. Aí, sim, vou lá e peço.

Para sair da situação de rua, procurei um abrigo, falei com uma assistente social que conseguiu uma vaga para mim no hotel social onde estou, o segundo em que vivi — primeiro fiquei no Centro Provisório de Atendimento (CPA IV). Lá, estive por sete meses, até mudar para um abrigo no Catete, onde estou vivendo agora, que é o Hotel Acolhedor. 

Para aprender e viver em paz dentro do abrigo, eu me fechei, fiquei na minha, procurei respeitar os outros ao máximo e engoli muita coisa, de pessoas que querem invadir o meu espaço e quem quer desrespeitar as regras.

Juliel Duarte
37 anos

Passei uma semana na rua até conseguir o abrigo. Consegui rápido, porque fui justamente direto no Centro de Referência da Assistência Social (Cras), mas até chegar ao Cras passei por diversos órgãos. Fui à ONG Menina, Moça-Mulher, na Lapa, onde me falaram de um acolhimento em outro lugar. Falei com a assistente social e ela me mandou para o Cras, que me encaminharam para o abrigo.

No Hotel Acolhedor, tenho mais espaço, porque é um abrigo misto, com pessoas tanto cisgêneras, quanto LGBTQIAPN+. Já passei por algumas situações de transfobia. Você entende quando aquele termo está sendo usado na intenção de ofender. A pessoa vai te chamar daquilo porque ela quer te afetar, ela quer te atacar, como se aquela palavra tivesse um significado ruim e por isso ela te chama assim. 

Isso já aconteceu comigo partindo de algumas pessoas, porque a vida dentro do abrigo é muito difícil. Para aprender e viver em paz dentro do abrigo, eu me fechei, fiquei na minha, procurei respeitar os outros ao máximo e engoli muita coisa, tanto de pessoas que querem invadir o meu espaço quanto de quem quer desrespeitar as regras. 

Tem regras, horário de silêncio, horário de tudo, porém a pessoa não quer respeitar, aí a gente tem que chamar o educador, e se fazemos isso somos chamados de “X9”, de pessoa que cagueta o outro, aí lá fora dizem que vão bater na gente, porque o abrigo só nos permite dormir no local à noite. Durante o dia, somos obrigados a ir para a rua.

As pessoas na rua, às vezes, olham a gente. Teve um homem que notei que ele ficou com raiva porque me olhou por trás, eu de costas, percebeu que eu era bonita, sentiu atração certamente e quando chegou perto falou “Ih, é um homem vestido de mulher” na minha cara. E eu não perguntei nada. Não conhecia ele, nunca havia visto antes, veio falando “que mulher bonita” e de repente fala isso na minha cara. Acontecem esses constrangimentos o tempo todo. 

Durante o dia, eu procuro shoppings e escritórios de coworking, evito ficar realmente na rua. Procuro galerias de shoppings que tenham wi-fi porque tenho minhas coisas na minha mala. É tudo portátil, onde eu for, eu levo. Carrego comigo minha mala, minha mochila e a roupa do corpo.

Juliel Duarte
37 anos

Eu respeito as pessoas, mas algumas pessoas em específico não me respeitam. Agora, tem pessoas que são muito legais comigo, num shopping, num restaurante, numa cafeteria, em lugares que frequento em que me tratam super bem, que me permitem entrar e sair, até para usar o banheiro feminino.

Hoje, estou fazendo um curso pela Secretaria da Mulher, o curso “Mulheres trans de negócios”, que oferece uma bolsa de R$ 400,00, e também tenho o auxílio Bolsa Família, de R$ 600,00. Tenho dois filhos, uma de 7 e um de 12 anos, então pago pensão para eles e o restante é para eu gastar com as minhas coisas. 

Recentemente, me inscrevi em outro curso, pelo SENAC agora, de linguagem PHP, porque quero voltar a estudar para reaquecer e assim conseguir um emprego. Durante o dia, eu procuro shoppings e escritórios de coworking, evito ficar realmente na rua. Procuro galerias de shoppings que tenham wi-fi porque tenho minhas coisas na minha mala. É tudo portátil, onde eu for, eu levo. Carrego comigo minha mala, minha mochila e a roupa do corpo.

No dia a dia, lavo minhas roupas na lavanderia, guardo o que posso no armário que temos no abrigo — não é permitido guardar muita coisa, mas o que posso deixo lá — e vou para um coworking. Na Avenida Rio Branco tem o escritório do Santander, que é um ambiente bem bacana, com móveis de escritório, e ali consigo algum trabalho. Como faço serviço de design e tenho formação na área de Técnicas de Informação, fico buscando clientes para atender e ganhar um dinheiro. 

O ruim é quando está chovendo ou é feriado e todos os ambientes estão fechados, aí o jeito é ficar embaixo de uma marquise, embaixo de um local em que eu possa me abrigar. Para mim, o pior dia é feriado, porque está tudo fechado, e quando está chovendo.

Sei que é muito difícil viver nas ruas enquanto mulher trans. Acho que sofro menos violência porque sou muito na minha, fico muito isolada e muito quieta, não interajo muito com as pessoas, mas percebo que no caso de outras meninas que interagem muito com as outras pessoas, isso pode aumentar a probabilidade delas de sofrerem violências, como uma possível violência física. Já presenciei alguns casos, é muito horrível, o conselho que dei é ir à delegacia, não deixar impune, registrar ocorrência. A pessoa foi e resolveu, mas nem sempre é tão fácil assim.

Parece que a sociedade tem na cabeça que uma trans ou uma travesti com roupas muito curtas deve virar alvo de violências. Percebi isso e para fugir desse tipo de ataque uso a minha roupa mais coberta, mais fechada.

Juliel Duarte
37 anos

Nunca sofri algo nesse nível, mas também faz apenas dois anos que me assumi como mulher trans e passo a maior parte do tempo transitando. Também gosto de usar roupas mais “comportadas” — gosto muito de usar vestido, não acho que fico bem de shorts curtos, é algo particular meu, mas não tenho nada contra quem usa roupas mais sensuais. Devido à terapia hormonal na Clínica da Família, com acompanhamento do médico, meu corpo já tem mudado e tenho me achado muito bonita, mais do que era antes, e isso desperta o olhar dos homens, mas eu me considero uma mulher trans ginessexual, porque me atraio por outra mulher, seja uma mulher cisgênero, trans ou travesti. 

Sobre violência, eu tenho sofrido, sim, violência verbal e psicológica de algumas pessoas, mas se a coisa for muito grave, muito gritante, vou denunciar, porque tenho direito de agir, mas procuro sempre ambientes onde vou sofrer menos, que vão ser mais seguros para mim e onde sei que tenho segurança. Vou às vezes para o Museu do Catete, que tem um jardim maravilhoso, com bastante guardas. Acabo limitando o raio de onde posso ficar andando com medo de uma possível violência, existe esse pensamento na minha cabeça.

Tenho andado mais sozinha. Quando saio, escolho bem a pessoa que vai comigo, normalmente uma pessoa que se veste igual a mim, porque os nossos corpos chamam atenção e parece que a sociedade tem na cabeça que uma trans ou uma travesti com roupas muito curtas deve virar alvo de violências. Percebi isso e para fugir desse tipo de ataque uso a minha roupa mais coberta, mais fechada.

Esta reportagem faz parte da série especial “Com Nome, Mas Sem Endereço”. Clique na foto abaixo para conferir mais histórias.

Especial: Com nome, mas sem endereço
Mykaella Nazario, Juliel Duarte, Natasha Lafayett e Harilda Mastranghi: mulheres trans ou travestis que vivem ou já viveram em situação de rua. (Arte: Dan Torres)

Francielly Barbosa

Estudante de Jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF), é fascinada por contar histórias com foco em desigualdades sociais, direitos humanos e questões de gênero. Na universidade, integrou o jornal O Casarão, a web rádio Nas Ondas do IACS e o projeto de pesquisa "Mídia, juventude e suicídio: um estudo sobre os padrões de cobertura da morte auto-provocada". Atuou como estagiária de redação na Agência Nossa e de assessoria de imprensa, com foco em divulgação científica, na UFF.

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