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Homens, parem de nos pedir calma!

Aos olhos do patriarcado, somos sempre toleráveis desde que comedidas, agradáveis, ou, preferencialmente, caladas

ODS 5 • Publicada em 30 de setembro de 2025 - 09:11 • Atualizada em 30 de setembro de 2025 - 11:14

Tendo vivido mais da metade dos meus 40 anos em Minas Gerais, tomo a liberdade de me considerar flumineira. Afinal, sou constituída tanto da mineiridade adquirida quanto dos ares fluminenses de nascença em Três Rios, no interior do Rio de Janeiro. Dito isso, ouso proclamar uma heresia ao estado que me adotou, vindo confessar publicamente meu desdém e desapreço por um de seus quinhões. Eu ODEIO “Maria,Maria”, do Milton Nascimento.

Leu essa? Historicamente as mulheres sempre pagaram a conta

Espero não ter minha carteirinha de mineira confiscada, mas me arrepia a coluna inteira a ideia de que se exalta uma mulher que “ri quando deve chorar e não vive, apenas aguenta”. É óbvio que eu não estou criticando o orixá musical mineiro, ou todas as mulheres fortíssimas condenadas a aguentar em vez de viver. Mas me dá um desalento imenso ouvir a música sendo cantada a plenos pulmões, como se a gente só pudesse ser exaltada por conter nossas tristezas, nossas raivas e nossas vontades. E precisasse de alguém pra dizer por nós que merecemos “viver e amar”.

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Mas a real é que vivemos isso todo dia. Eu duvido muito que uma mulher consiga passar uma semana da vida sem que um homem a peça (ou mande) para ter calma. No trabalho, em casa, na rua, num ambiente de estudos ou no quinto dos infernos. Qualquer subtom de voz não entendido como subserviente, fofo, agradável, complacente, obediente, sevil, gentil, frágil ou vulnerável é lido como a perda da docilidade que sempre esperam de nós. Como se devêssemos ser mamães generosas “ready-to-go”, máquinas biologicamente projetadas para acolher, sorrir e se conter.

Historicamente, a raiva foi confiscada das mulheres como se fosse um sentimento ilegítimo. Enquanto a fúria masculina é lida como coragem, autoridade ou até paixão, a feminina é ridicularizada ou patologizada. Somos chamadas de loucas, histéricas, descontroladas. É só a gente se lembrar de como a presidenta Dilma foi rotulada, com absolutamente TODOS os adjetivos que usei antes.

Aos olhos do patriarcado, nós, mulheres, somos sempre toleráveis desde que comedidas, agradáveis, ou, preferencialmente, caladas (Ilustração: pikisuperstar / frepik)
Aos olhos do patriarcado, nós, mulheres, somos sempre toleráveis desde que comedidas, agradáveis, ou, preferencialmente, caladas (Ilustração: pikisuperstar / frepik)

Essa operação não é neutra: ela serve para manter intacta a ordem patriarcal que só tolera as mulheres quando estão em silêncio, sorrindo ou servindo. A raiva, que poderia ser combustível de mudança, é devolvida a nós como defeito de caráter ou doença.

E se a raiva é interditada às mulheres em geral, às mulheres negras ela é ainda mais criminalizada. A figura da “mulher barraqueira”, constantemente evocada para deslegitimar suas vozes, é herdeira direta do racismo estrutural que animaliza e inferioriza corpos negros. Como apontam autoras como Patricia Hill Collins e Sueli Carneiro, a raiva negra é tratada como ameaça, e não como resposta legítima a séculos de exploração, violência e desigualdade.

Já com as mulheres trans, por exemplo, qualquer gesto de indignação é imediatamente traduzido como violência, perigo, monstruosidade. A transfobia, aliada ao machismo, constrói a imagem da mulher trans como alguém fora de controle, quando na verdade é ela quem mais sofre controle, vigilância e exclusão.

Essas engrenagens nos lembram que não se trata apenas de emoções individuais, mas de regulações sociais que distribuem desigualmente quem pode sentir e expressar raiva. Mas em todos os casos, a mensagem é a mesma: a raiva feminina não pode existir, porque ameaça desestabilizar os pilares do patriarcado.

E no entanto, estamos borbulhando de raiva. Raiva da misoginia que nos violenta dentro de casa, nas ruas e nas instituições. Raiva do machismo que insiste em nos pagar menos, mesmo quando somos mais qualificadas. Raiva da negligência com a saúde feminina: quantas doenças e condições que atingem as mulheres (como a endometriose, a menopausa, a fibromialgia) seguem subdiagnosticadas, invisibilizadas ou ignoradas pela pesquisa médica porque não são prioridade? Raiva porque, ainda hoje, denunciar um estupro é enfrentar a humilhação de ter sua palavra questionada. Raiva porque não queremos mais ser resilientes, queremos ser ouvidas em todas as dimensões da nossa ira.

Como nos lembra minha guru Audre Lorde, “toda mulher possui um arsenal de raiva bem abastecido que pode ser muito útil contra opressões, pessoais e institucionais, que são a origem dessa raiva”. É esse arsenal que convoco agora: sejamos raivosas, zangadas, bravas, putas da vida, pistolas, revoltadas.

Por isso, homens, parem de pedir calma às mulheres enquanto não a demandam a seus parceiros histéricos de pelada e botequim, que chegam a matar por uma disputa de futebol ou de qualquer motivo torpe pelo qual sintam sua macheza ameaçada. Não estamos e não ficaremos calmas. Controlem vocês os seus chiliques e parem de esperar que sejamos Marias que riem quando devem chorar.

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