ODS 1
Protesto contra brasileiras inspirou série na TV portuguesa
Movimento Mães de Bragança ficou conhecido em toda a Europa ao acusar prostitutas de usarem até feitiços para atrair homens aos bordéis
Movimento Mães de Bragança ficou conhecido em toda a Europa ao acusar prostitutas de usarem até feitiços para atrair homens aos bordéis
Em 2003, um grupo de mulheres de Bragança, cidade de 30 mil habitantes no norte de Portugal, organizou um abaixo-assinado exigindo a expulsão das brasileiras que trabalhavam com prostituição em casas noturnas. O movimento agitou a pacata vida dos moradores da região, ganhou as manchetes da imprensa portuguesa e foi parar na capa da revista Time, que dedicou reportagem de oito páginas sobre o “novo Distrito da Luz Vermelha”, citando o famoso bairro de Amsterdã. O documento – entregue ao governador, à polícia e à Câmara – afirmava que “uma onda de loucura” havia tomado conta dos homens, que teriam passado a dormir fora de casa, negligenciar o cuidado com os filhos e acumular dívidas que comprometiam o orçamento familiar.
O movimento, autointitulado Mães de Bragança, acusava as imigrantes de contribuírem para a degradação dos valores morais da região. As portuguesas, com a repercussão do caso, conseguiram fazer com que a política agisse contra os bordéis da cidade: mais de 40 prostitutas – brasileiras, na maioria – chegaram a ser detidas e os proprietários de três casas noturnas, acusados de explorar a prostituição, foram processados e condenados. A história se tornou inspiração para a série “Luz Vermelha”, exibida pela rede de televisão portuguesa RTP. Em entrevista à revista Sábado, a escritora Patrícia Müller, responsável pelo roteiro, enfatizou que o lado pitoresco do episódio esconde a complexidade real da situação. “Foi uma guerra entre mulheres que escondia perversidades maiores como o tráfico e a exploração de seres humanos”, afirmou.
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Veja o que já enviamosO manifesto das Mães de Bragança conseguiu reunir centenas de assinaturas. “Somos agora invadidas e fustigadas por dezenas de prostitutas aquarteladas em boates e, mesmo durante o dia, em bairros residenciais, em todo o canto e esquina da nossa cidade. Como é possível permitir-se a continuada abertura de casas de alterne, onde o flagelo da droga e da prostituição é incrementado?” dizia o documento. As casas de alterne – assim chamadas porque as mulheres alternavam homens – eram realmente locais de prostituição. “Elas vieram aliciar os nossos maridos com falinhas meigas, canas-de-açúcar e droga à mistura!”, prosseguia o manifesto das Mães de Bragança.
Apesar de haver prostitutas de outras nacionalidades, as brasileiras eram os principais alvos da ira das mulheres de Bragança. Nas seguidas reportagens publicadas após o manifesto, as portuguesas afirmavam que as prostitutas usavam feitiços, rezas, bruxarias e macumbas para atrair os homens, com artes que envolviam pétalas de rosa e raízes de amor-perfeito. “Elas põem flores nos cruzamentos para conquistar os homens e os nomes dos inimigos nas solas dos sapatos”, disse uma das Mães de Bragança à revista Time.
Com a repercussão nos veículos de comunicação de todo o país e a pressão de grupos conservadores, autoridades e policias de Bragança e região começaram a apertar o cerco contra as casas de alterne. Batidas policiais passaram a ser frequentes. Em fevereiro de 2004, uma grande operação policial, autorizada pela Justiça, terminou com com o fechamento das três principais casas noturnas com prostituição na cidade. No total, mais de 50 brasileiras chegaram a ser detidas para investigação e depoimento – a prostituição não é crime em Portugal desde 1983, mas a exploração da prostituição é. Foram processadas 14 pessoas, entre proprietários, gerentes e empregados de três estabelecimentos associados à prática de prostituição com mulheres brasileiras. Os donos foram condenados a sete anos de prisão. Prostitutas brasileiras, ilegais, foram deportadas; outras atravessaram a fronteira com a Espanha para trabalhar em uma cidade vizinha, que passou a ser frequentada pelos antigos clientes portugueses.
O protesto das Mães de Bragança e sua repercussão aumentaram o estigma contra as mulheres brasileiras em Portugal. “Esse conflito tornou-se um marcador fundamental no imaginário e estereótipo em relação à mulher brasileira, gerando desconfiança e uma associação quase direta dessas mulheres à prostituição”, escreveu a antropóloga Filipa Alvim, que estudou o caso. O pesquisador José Machado Pais, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, entrevistou dezenas de pessoas para escrever seu livro Enredos sexuais, tradição e mudança e surpreendeu-se com o tratamento dado pelas portuguesas aos maridos frequentadores dos bordéis. “Os maridos traidores foram poupados, diria mesmo desculpabilizados. As mulheres traídas acusavam as sedutoras de além-mar de amarrarem os maridos com drogas, feitiços, macumbas e até um misterioso chá que os punha de cabeça à roda”, afirmou Pais ao lançar seu livro em 2016.
Foi todo esse debate detonado pelo movimento das Mães de Bragança que inspirou a escritora Patrícia Muller no roteiro da série de ficção para a TV. “Luz Vermelha” acompanha a história de Bruna, uma jovem brasileira, mãe solteira, que vai para Portugal em busca de vida melhor e é aliciada para a prostituição. A brasileira – vivida por Mariana Badan, atriz e cantora de Cuiabá, radicada em Portugal há dois anos – vai trabalhar num casa de alterne, numa cidade do interior de Portugal, frequentada pelos homens mais importantes do lugar. A casa reúne brasileiras, africanas e prostituas da Europa Oriental e, como no caso de Bragança, mulheres da cidade mandam carta às autoridades pedindo o fechamento do bordel; investigações desenvolvidas por jornalistas e policiais do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) movimentam a trama.
Em entrevista no lançamento da série pela RTP (Rádio e Televisão de Portugal), a roteirista Patrícia Müller lembrou que “há um fosso enorme entre o que nos vendem sobre a igualdade e emancipação das mulheres” e a realidade. “Para a maioria dos homens ainda é normal frequentarem prostitutas e ainda se queixarem que suas mulheres não são suficientemente sedutoras. Por outro lado, continuam a existir muitas mulheres que, por falta de independência financeira, vivem totalmente expostas a todo o tipo de violência”, disse a escritora sobre a série de 13 episódios que terminou em janeiro de 2020.
Maíra Streit
Maíra Streit foi editora da revista Fórum, produtora do SBT, chefe da Assessoria de Comunicação da Secretaria da Criança do Distrito Federal e repórter freelancer na Agência Pública, no jornal Correio Braziliense e na revista Caros Amigos. Ao longo da carreira, recebeu diversas premiações na área, como o Prêmio Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, o Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo e o Prêmio Gandhi de Comunicação. Também foi finalista do Prêmio Abdias Nascimento de Igualdade Racial e, por duas vezes, do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Atualmente vive em Portugal, onde colabora com o site QI News e ocupa o cargo de técnica de projetos da Casa do Brasil de Lisboa.