A força feminina no Ilê Aiyê

Prestes a completar 50 anos, primeiro bloco afro do Brasil tem como base o matriarcado de Mãe Hilda Jitolu, intelectual visionária que combateu o racismo com afeto, beleza e educação

Por Júlia Moa | ODS 5 • Publicada em 12 de janeiro de 2024 - 10:21 • Atualizada em 6 de outubro de 2024 - 15:43

Dalila Santos de Oliveira (ao centro), Deusa do Ébano 2023 do Ilê Aiyê. Em 1975, no primeiro concurso, apenas 10 mulheres concorreram. Agora são mais de 200 candidatas. Foto André Frutuôso

“O Ilê tem a sorte de nascer dentro de um terreiro de candomblé. Então, o que eu tenho que fazer é zelar”, dizia suavemente a soteropolitana Mãe Hilda Jitolu, ialorixá do terreiro da nação Jeje Savalú, Acé Jitolu, no bairro do Curuzu em Salvador (BA). O primeiro e maior bloco afro do Brasil surgiu em novembro de 1974, em meio à ditadura militar, a partir da inquietação de dois jovens – Antônio Carlos dos Santos, o Vovô, e Apolônio de Jesus, o Popó – cansados da estrutura racista do país. A mensagem era direta: poder para o povo preto e o fim da discriminação racial.

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Sabiamente, Vovô levou as boas novas para sua mãe, Dona Hilda, que não apenas incentivou a ideia do filho, como valorizou o potencial criativo latente e abraçou o Ilê Aiyê (expressão do idioma iorubá que significa ‘nossa casa’ ou ‘nossa terra’) como uma missão grandiosa em sua vida. Em 2023, Mãe Hilda (1923-2023) completaria 100 anos e foi homenageada no carnaval subversivo do bloco, que está prestes a completar 50 anos de trajetória. Mesmo com os homens compondo boa parte da diretoria, quem conduz ali são as mulheres. Neste sábado (13/01), o bloco promove a 43ª Noite da Beleza Negra do Ilê Aiyê, com a eleição da próxima Deusa do Ébano, marcando o início das comemorações do cinquentenário.

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“Dentro do Ilê existe uma relação de matriarcado pela forte presença de Mãe Hilda. Ela ofereceu toda a estrutura para o Ilê existir, além de manter a energia vibrante e estar à frente do ritual religioso, pedindo paz e proteção antes de dar início aos trabalhos do bloco no sábado de carnaval”, recorda sua neta, a jornalista e mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Valéria Lima, responsável pela biografia de Mãe Hilda que está prestes a ser publicada.

Mãe Hilda, matriarca do Ilê Aiyê, sobe a Serra da Barruga com o apoio do poeta, escritor e artista plástico Abdias do Nascimento. Foto Ipeafro
Mãe Hilda, matriarca do Ilê Aiyê, sobe a Serra da Barriga com o apoio do poeta, escritor e artista plástico Abdias do Nascimento. Foto Ipeafro

Intelectual, feminista e visionária, Mãe Hilda era autoridade fundamental tanto nos conselhos quanto na sólida base espiritual e de formação educacional na caminhada do bloco, um marco cultural baiano. A matriarca não deixava seus filhos (biológicos e de santo) na mão. Diante das ameaças policiais de impedir a passagem do bloco na avenida a partir de 1975, Mãe Hilda saía na frente do desfile para assegurar que se alguém quisesse mexer com a turma, primeiro, ousaria passar por cima dela. E nunca ninguém a desautorizou. Ela ainda abriu a porta do barracão (terreiro) para acolher os participantes do bloco nas reuniões e festas.

Em 1988, transformou parte do espaço em sala de aula (tendo suas 2 filhas mais novas como as primeiras professoras), fundando a escola que leva o seu nome e beneficiou gratuitamente milhares de crianças da comunidade. Nesta época, o governo da Bahia não se responsabilizava pela educação das crianças de até 7 anos, fazendo com que muitas, sobretudo nos territórios periféricos, ficassem pelas ruas brincando. Numa outra realidade, a garotada de classe privilegiada com a mesma idade já estava alfabetizada, e com maiores chances de ocupar as cadeiras das universidades públicas brasileiras. Mãe Hilda provavelmente não apreciava tal desvantagem e, como boa filha de Oxum, deusa dos rios, acelerou o ritmo das águas para que a juventude negra tomasse impulso e pudesse, igualmente, assinar os seus diplomas universitários.

O Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê é pioneiro na valorização da cultura afro-brasileira e na promoção do debate sobre as questões étnico-raciais. Antes da obrigatoriedade (não cumprida) da Lei 10.639/03, Mãe Hilda inovava ao implementar o modelo educacional antirracista também em outros projetos sociais: Escola de Percussão, Canto e Dança Band’erê, Escola Profissionalizante do Ilê Aiyê e no Dandarerê (para a terceira idade). Dotada de uma prática revolucionária, sem ter frequentado a escola, ela fez questão de assegurar o desenvolvimento de muita gente que hoje une forças ao corpo coletivo em prol de uma sociedade inclusiva e livre.

No âmbito político, dialogava com personalidades como a Ministra de Estado (2010-2014) Luiza Bairros e a educadora e líder religiosa Makota Valdina. Junto de Abdias do Nascimento, da socióloga Lélia González, o líder indígena Ailton Krenak e dos participantes do Movimento Unificado Negro (MNU), no início de 1980, Mãe Hilda participou do rito fúnebre para Zumbi dos Palmares, na Serra da Barriga, em Alagoas.

A matriarca impulsionou o olhar para todas as áreas da existência humana – corpo, mente e espírito. Dessa forma, não poderia ficar de fora a aceitação da beleza e estética da mulher negra, possibilitando a construção de uma autoestima saudável para muitas que, como resultado, conseguiram abrir o seu próprio negócio e até romper com relações abusivas. Em 1979, aconteceu a primeira edição da Noite da Beleza Negra, concurso voltado para a escolha da Deusa do Ébano, e Mãe Hilda estava presente, orientando as participantes e sendo uma das juradas da celebração. “Desde criança, escutava a minha mãe dizer: ‘vocês são negros e são bonitos, precisam se orgulhar disso’. Eu digo que fui a pessoa escolhida para trabalhar a estética e a exaltação das nossas múltiplas belezas. Essa transformação que eu consigo fazer através dos figurinos e tecidos é um feito que nos torna muito mais belas. Somos coroadas com nossos turbantes”, afirma a artista plástica Dete Lima, diretora e estilista do Ilê Aiyê.

Lélia Gonzalez, em um artigo para o Jornal Mulherio, escreveu: “O que conta para ser uma ‘Negra Ilê’ é a dignidade, a elegância, a articulação harmoniosa do trançado do cabelo com o traje, o dengo, a leveza, o jeito de olhar ou de sorrir, a graça do gesto na quebrada do ombro sensual, o modo doce e altaneiro de ser etc. E se a gente atentar bem para o sentido de tudo isso, a gente saca uma coisa: a Noite da Beleza Negra é um ato de descolonização cultural”.

Até 2009, aos 86 anos, Mãe Hilda exerceu seu nobre compromisso neste plano e foi agraciada com diversas homenagens e prêmios. Atualmente, o terreiro foi assumido pela filha e sucessora Hildelice Benta dos Santos, a Doné (termo do candomblé jeje para uma sacerdotisa) Hildelice.

Vale destacar que no ano de 2005, Mãe Hilda fez parte lista de 52 brasileiras indicadas ao Prêmio Nobel da Paz, e hoje, o seu legado de resistência se mantém ativo no Instituto da Mulher Negra Hilda Jitolu.

Se você chegou até aqui e está impressionado por nunca ter visto (ainda) o nome dela reconhecido nacionalmente, saiba que os frutos dessa grande e bonita árvore se espalham, levando os aprendizados de Mãe Hilda para vários locais ao redor do mundo.

Conheçam algumas das mulheres dessa grande família Ilê Aiyê:

Filha de Mãe Hilda e irmã do Vovô, Dete faz parte do Ilê desde o início. Foto Divulgação
Filha de Mãe Hilda e irmã do Vovô, Dete faz parte do Ilê desde o início. Foto Divulgação

Dete Lima – artista plástica, diretora e estilista do Ilê Aiyê.

 Dete faz parte do Ilê desde o início. Filha de Mãe Hilda e irmã do Vovô, ela traz da infância o gosto por inventar roupas e enfeitar os cabelos das meninas, pois via sua mãe arrumar as vestimentas dos orixás no terreiro. Fez cursos de corte e costura e, quando surgiu o bloco, local que considera a sua universidade, sentiu que tinha a “régua e o compasso” para atuar na criação do figurino dos músicos, percussionistas, dançarinas, associados e no traje suntuoso da Deusa do Ébano vencedora na Noite da Beleza Negra.

“Eu fui a pessoa escolhida pelos orixás para estar mexendo com a autoestima da mulher negra, enaltecendo a sua beleza através da estética. Os voduns (divindades) me ajudam na composição das peças e eu sou muito grata ao universo por estar há quase meio século nesta atividade”, garante Dete, que todos os anos empresta o seu talento para o bloco, inclusive atuou como professora ensinando meninas e meninos a costurarem nos projetos sociais do Ilê.

Ela menciona o fato da sua própria autoestima se renovar todos os dias e a cada concurso da Beleza Negra, já que o Ilê atravessa a alma e o coração das mulheres e homens, preenchendo de felicidade e orgulho por ser quem se é. “O Ilê é a minha respiração, como diz a música: ‘Ah, se não fosse o Ilê Aiyê’. É a minha elevação junto de todas essas mulheres potentes que existem ali dentro”, enfatiza a artista que se juntou à turma aos 19 anos e, agora, com 70, segue transmitindo conhecimento para as mais novas que estão chegando como um legado que seus netos e bisnetos poderão acessar quando quiserem conhecer a moda atemporal impulsionada pelo Ilê Aiyê. 

Valéria Lima com a mãe Dete Lima. Valéria cresceu ouvindo as orientações de Hilda e acompanhou o trabalho artístico da mãe. Foto Divulgação
Valéria Lima com a mãe Dete Lima. Valéria cresceu ouvindo as orientações de Hilda e acompanhou o trabalho artístico da mãe. Foto Divulgação

Valéria Lima – Diretora-executiva do Instituto da Mulher Negra Mãe Hilda Jitolu, jornalista e mestre em Estudos Étnicos e Africanos.

 Valéria compreende a importância de contar a própria história e de preservar a herança de sua avó, Mãe Hilda. Cresceu ouvindo as orientações dela e acompanhou o trabalho artístico da mãe, Dete Lima, desde pequena. Na infância e adolescência, dançou ao som das batidas ancestrais rítmicas junto dos integrantes do Ilê e, aos 19 anos, estava trançando os cabelos de mulheres nos mais variados penteados afros e ensinando a prática nos cursos profissionalizantes oferecidos pelo Ilê.

Na faculdade de Jornalismo, seu primeiro texto acadêmico foi sobre a avó. Na sequência, no mestrado em Estudos Étnicos e Africanos, sua dissertação focou na caminhada da líder espiritual baiana; a obra será publicada em breve. “Eu sou a terceira geração da família, e a minha contribuição é dar continuidade ao que ela deixou”, frisa Valéria ao recordar do ano em que sua avó faleceu. Ela pediu para a neta falar em seu nome num evento no terreiro com várias figuras ilustres do Movimento Negro. Ao final, Mãe Hilda a abraçou e decretou: “Foi para isso que eu te criei, você está pronta”. A atitude foi um divisor de águas para a jornalista.

Em 2023, toma corpo o Instituto Mulher Negra Hilda Jitolu, organização feminista negra, que tem como pilar a busca pelo acesso a direitos para meninas e mulheres cis e transexuais negras. “É uma forma de manter vivo não apenas o legado de Mãe Hilda, mas os projetos sociais iniciados por ela. A nossa sede é o terreiro. Utilizamos o espaço sagrado para educar, formar, qualificar profissionalmente e para dar formação política. Temos 2 pilares enquanto organização: geração de renda e preservação de memória. Aqui dentro queremos contar a história de mulheres negras para as próximas gerações e, é claro, principalmente neste ano do centenário, começamos pela história dela. Queremos também qualificar profissionalmente para garantir o acesso à renda por parte de mulheres negras que são totalmente desassistidas, muitas vezes pelo poder público”.

“Nós abrimos o caminho para as outras mulheres negras”. A primeira rainha do Ilê dança com Dalila Santos de Oliveira, a Deusa Ébano de 2023. Foto Divulgação

Maria Lurdes Santos Cruz – Dona de casa e primeira rainha do Ilê.

 Em 1975, o ano da primeira saída do Ilê Aiyê, Mirinha, como é mais conhecida, recebeu o convite para participar de um concurso do bloco que iria eleger a rainha negra. Na ocasião, somente 10 mulheres concorriam à coroa (no presente, a disputa já teve mais de 200 inscritas) e a jovem, com 15 anos, levou o título de primeira Deusa do Ébano da história do Ilê. “Nós abrimos o caminho para as outras negras. Antigamente, fazer trança, usar vestes africanas e passar batom era considerado algo feio por nós mesmas. Não nos enxergávamos como mulheres bonitas, era algo vergonhoso. Agora tudo está diferente, nos vestimos da maneira que bem entendemos e seguimos em frente”, avalia Mirinha, nascida e criada no Curuzu, nunca deixou de frequentar as atividades fomentadas pelo  Ilê.

“Continuo sendo rainha, porque a primeira vez rainha é para sempre majestade”. 

Val Benvindo: mulher preta, candomblecista e combatente. Foto Divulgação
Val Benvindo: mulher preta, candomblecista e combatente. Foto Divulgação

Val Benvindo – jornalista e produtora executiva.

 Val, por meio das experiências práticas compartilhadas por sua avó, Mãe Hilda, aprendeu a ser uma mulher preta, candomblecista e combatente. Ela compreendeu não apenas o seu lugar no mundo, mas também percebeu que as barreiras impostas pela sociedade machista e racista poderiam ser superadas. Essa vivência inspirou Val a acreditar que as mulheres negras merecem muito mais do que os limites e estereótipos impostos, e permitiu que a sua estrela brilhasse.

Olhar para as rainhas do Ilê fez com que ela, ainda pequena, acreditasse em um futuro onde sua semelhança refletisse a majestosa aura das mulheres negras que a influenciaram, desde as musas até as percussionistas, diretoras e professoras da Escola Mãe Hilda. “No Ilê, nos entendemos como mulheres pretas que merecem ser amadas; isso aparece nas canções do bloco. Todo mundo faz questão de vibrar e celebrar a existência de mulheres importantes na história. Já homenageamos Benedita da Silva, Ruth de Souza, Zezé Motta, Chica Xavier e muitas outras mulheres que são referência para nós”, contempla Val.

Durante a Noite da Beleza Negra, na qual ela integra o time de apresentadores, depois de mais de 10 anos como produtora do bloco, a comunicadora entendeu que poderia ser o que quiser. Ali o enfoque não é exclusivamente a beleza, mas o empoderamento feminino em distintas áreas da vida; mulheres negras que, caso queiram, podem ser doutoras, empresárias, ocupar espaços profissionais de qualidade com voz ativa e altivez. Em 2016, ela dirigiu, produziu e roteirizou o curta “Outra Face”, que conta a história do evento.

“Eu não estou inventando a roda, eu estou fazendo ela girar. A herança que eu tento deixar para quem está chegando é a mesma que eu recebi, de empoderar pessoas através do meu trabalho, mostrando que não somos poucos (56% dos brasileiros são negros) e que é necessário equiparar esse número nos cargos de liderança. Eu quero ver o povo preto atuante e vivo”.

Edilene Alves: “Desde quando estava na barriga de minha mãe, eu já frequentava o Ilê". Foto Vanderlei Yui
Edilene Alves: “Desde quando estava na barriga de minha mãe, eu já frequentava o Ilê”. Foto Vanderlei Yui

Edilene Alves – Coreógrafa, bailarina e produtora artística.

 Para Edilene, a mesma força feminina que conduz os passos do Ilê Aiyê, lançada especialmente por Mãe Hilda Jitolu, foi quem a colocou dentro do bloco. Sua mãe, Yá Edna de Oxum, é a responsável pela ala das baianas – representando as ialorixás – que puxa a multidão durante o trajeto do bloco no carnaval. “Desde quando estava na barriga de minha mãe, eu já frequentava o Ilê. Meu sonho sempre foi ser Deusa do Ébano, e a família inteira me apoiava a participar do concurso, porém tive que esperar até ter idade para me candidatar. Deu tudo certo e eu fui coroada em 2009”, relembra a artista que hoje trabalha como coreógrafa do bloco. O contato com as muitas mãos femininas que ali atuam e fazem tudo acontecer causa em Edilene uma sensação de reencontro espiritual com pessoas afins, visto que o Ilê Aiyê é uma extensão dos ensinamentos que sua mãe transmitiu como força e resiliência.

 “A minha construção política, artística e de autoestima vem de dentro do terreiro de candomblé. E toda essa conduta espiritual é a mesma experienciada no bloco. Então, eu já vivo isso desde pequena, e apenas reafirmo quando estou no Ilê Aiyê dançando, celebrando e exaltando a beleza das mulheres negras. Tenho como referência a Dete Lima, que é a responsável por toda a estética do bloco e quem cuida das Deusas eleitas. Admiro também todas as mulheres de axé que fazem parte da diretoria e produção do bloco”.

Júlia Moa

Júlia Moa é jornalista multimídia; vencedora do prêmio Respeito e Diversidade do MPF.

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