“O Ilê tem a sorte de nascer dentro de um terreiro de candomblé. Então, o que eu tenho que fazer é zelar”, dizia suavemente a soteropolitana Mãe Hilda Jitolu, ialorixá do terreiro da nação Jeje Savalú, Acé Jitolu, no bairro do Curuzu em Salvador (BA). O primeiro e maior bloco afro do Brasil surgiu em novembro de 1974, em meio à ditadura militar, a partir da inquietação de dois jovens – Antônio Carlos dos Santos, o Vovô, e Apolônio de Jesus, o Popó – cansados da estrutura racista do país. A mensagem era direta: poder para o povo preto e o fim da discriminação racial.
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Sabiamente, Vovô levou as boas novas para sua mãe, Dona Hilda, que não apenas incentivou a ideia do filho, como valorizou o potencial criativo latente e abraçou o Ilê Aiyê (expressão do idioma iorubá que significa ‘nossa casa’ ou ‘nossa terra’) como uma missão grandiosa em sua vida. Em 2023, Mãe Hilda (1923-2023) completaria 100 anos e foi homenageada no carnaval subversivo do bloco, que está prestes a completar 50 anos de trajetória. Mesmo com os homens compondo boa parte da diretoria, quem conduz ali são as mulheres. Neste sábado (13/01), o bloco promove a 43ª Noite da Beleza Negra do Ilê Aiyê, com a eleição da próxima Deusa do Ébano, marcando o início das comemorações do cinquentenário.
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Veja o que já enviamos“Dentro do Ilê existe uma relação de matriarcado pela forte presença de Mãe Hilda. Ela ofereceu toda a estrutura para o Ilê existir, além de manter a energia vibrante e estar à frente do ritual religioso, pedindo paz e proteção antes de dar início aos trabalhos do bloco no sábado de carnaval”, recorda sua neta, a jornalista e mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Valéria Lima, responsável pela biografia de Mãe Hilda que está prestes a ser publicada.
Intelectual, feminista e visionária, Mãe Hilda era autoridade fundamental tanto nos conselhos quanto na sólida base espiritual e de formação educacional na caminhada do bloco, um marco cultural baiano. A matriarca não deixava seus filhos (biológicos e de santo) na mão. Diante das ameaças policiais de impedir a passagem do bloco na avenida a partir de 1975, Mãe Hilda saía na frente do desfile para assegurar que se alguém quisesse mexer com a turma, primeiro, ousaria passar por cima dela. E nunca ninguém a desautorizou. Ela ainda abriu a porta do barracão (terreiro) para acolher os participantes do bloco nas reuniões e festas.
Em 1988, transformou parte do espaço em sala de aula (tendo suas 2 filhas mais novas como as primeiras professoras), fundando a escola que leva o seu nome e beneficiou gratuitamente milhares de crianças da comunidade. Nesta época, o governo da Bahia não se responsabilizava pela educação das crianças de até 7 anos, fazendo com que muitas, sobretudo nos territórios periféricos, ficassem pelas ruas brincando. Numa outra realidade, a garotada de classe privilegiada com a mesma idade já estava alfabetizada, e com maiores chances de ocupar as cadeiras das universidades públicas brasileiras. Mãe Hilda provavelmente não apreciava tal desvantagem e, como boa filha de Oxum, deusa dos rios, acelerou o ritmo das águas para que a juventude negra tomasse impulso e pudesse, igualmente, assinar os seus diplomas universitários.
O Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê é pioneiro na valorização da cultura afro-brasileira e na promoção do debate sobre as questões étnico-raciais. Antes da obrigatoriedade (não cumprida) da Lei 10.639/03, Mãe Hilda inovava ao implementar o modelo educacional antirracista também em outros projetos sociais: Escola de Percussão, Canto e Dança Band’erê, Escola Profissionalizante do Ilê Aiyê e no Dandarerê (para a terceira idade). Dotada de uma prática revolucionária, sem ter frequentado a escola, ela fez questão de assegurar o desenvolvimento de muita gente que hoje une forças ao corpo coletivo em prol de uma sociedade inclusiva e livre.
No âmbito político, dialogava com personalidades como a Ministra de Estado (2010-2014) Luiza Bairros e a educadora e líder religiosa Makota Valdina. Junto de Abdias do Nascimento, da socióloga Lélia González, o líder indígena Ailton Krenak e dos participantes do Movimento Unificado Negro (MNU), no início de 1980, Mãe Hilda participou do rito fúnebre para Zumbi dos Palmares, na Serra da Barriga, em Alagoas.
A matriarca impulsionou o olhar para todas as áreas da existência humana – corpo, mente e espírito. Dessa forma, não poderia ficar de fora a aceitação da beleza e estética da mulher negra, possibilitando a construção de uma autoestima saudável para muitas que, como resultado, conseguiram abrir o seu próprio negócio e até romper com relações abusivas. Em 1979, aconteceu a primeira edição da Noite da Beleza Negra, concurso voltado para a escolha da Deusa do Ébano, e Mãe Hilda estava presente, orientando as participantes e sendo uma das juradas da celebração. “Desde criança, escutava a minha mãe dizer: ‘vocês são negros e são bonitos, precisam se orgulhar disso’. Eu digo que fui a pessoa escolhida para trabalhar a estética e a exaltação das nossas múltiplas belezas. Essa transformação que eu consigo fazer através dos figurinos e tecidos é um feito que nos torna muito mais belas. Somos coroadas com nossos turbantes”, afirma a artista plástica Dete Lima, diretora e estilista do Ilê Aiyê.
Lélia Gonzalez, em um artigo para o Jornal Mulherio, escreveu: “O que conta para ser uma ‘Negra Ilê’ é a dignidade, a elegância, a articulação harmoniosa do trançado do cabelo com o traje, o dengo, a leveza, o jeito de olhar ou de sorrir, a graça do gesto na quebrada do ombro sensual, o modo doce e altaneiro de ser etc. E se a gente atentar bem para o sentido de tudo isso, a gente saca uma coisa: a Noite da Beleza Negra é um ato de descolonização cultural”.
Até 2009, aos 86 anos, Mãe Hilda exerceu seu nobre compromisso neste plano e foi agraciada com diversas homenagens e prêmios. Atualmente, o terreiro foi assumido pela filha e sucessora Hildelice Benta dos Santos, a Doné (termo do candomblé jeje para uma sacerdotisa) Hildelice.
Vale destacar que no ano de 2005, Mãe Hilda fez parte lista de 52 brasileiras indicadas ao Prêmio Nobel da Paz, e hoje, o seu legado de resistência se mantém ativo no Instituto da Mulher Negra Hilda Jitolu.
Se você chegou até aqui e está impressionado por nunca ter visto (ainda) o nome dela reconhecido nacionalmente, saiba que os frutos dessa grande e bonita árvore se espalham, levando os aprendizados de Mãe Hilda para vários locais ao redor do mundo.
Conheçam algumas das mulheres dessa grande família Ilê Aiyê:
Dete Lima – artista plástica, diretora e estilista do Ilê Aiyê.
Dete faz parte do Ilê desde o início. Filha de Mãe Hilda e irmã do Vovô, ela traz da infância o gosto por inventar roupas e enfeitar os cabelos das meninas, pois via sua mãe arrumar as vestimentas dos orixás no terreiro. Fez cursos de corte e costura e, quando surgiu o bloco, local que considera a sua universidade, sentiu que tinha a “régua e o compasso” para atuar na criação do figurino dos músicos, percussionistas, dançarinas, associados e no traje suntuoso da Deusa do Ébano vencedora na Noite da Beleza Negra.
“Eu fui a pessoa escolhida pelos orixás para estar mexendo com a autoestima da mulher negra, enaltecendo a sua beleza através da estética. Os voduns (divindades) me ajudam na composição das peças e eu sou muito grata ao universo por estar há quase meio século nesta atividade”, garante Dete, que todos os anos empresta o seu talento para o bloco, inclusive atuou como professora ensinando meninas e meninos a costurarem nos projetos sociais do Ilê.
Ela menciona o fato da sua própria autoestima se renovar todos os dias e a cada concurso da Beleza Negra, já que o Ilê atravessa a alma e o coração das mulheres e homens, preenchendo de felicidade e orgulho por ser quem se é. “O Ilê é a minha respiração, como diz a música: ‘Ah, se não fosse o Ilê Aiyê’. É a minha elevação junto de todas essas mulheres potentes que existem ali dentro”, enfatiza a artista que se juntou à turma aos 19 anos e, agora, com 70, segue transmitindo conhecimento para as mais novas que estão chegando como um legado que seus netos e bisnetos poderão acessar quando quiserem conhecer a moda atemporal impulsionada pelo Ilê Aiyê.
Valéria Lima – Diretora-executiva do Instituto da Mulher Negra Mãe Hilda Jitolu, jornalista e mestre em Estudos Étnicos e Africanos.
Valéria compreende a importância de contar a própria história e de preservar a herança de sua avó, Mãe Hilda. Cresceu ouvindo as orientações dela e acompanhou o trabalho artístico da mãe, Dete Lima, desde pequena. Na infância e adolescência, dançou ao som das batidas ancestrais rítmicas junto dos integrantes do Ilê e, aos 19 anos, estava trançando os cabelos de mulheres nos mais variados penteados afros e ensinando a prática nos cursos profissionalizantes oferecidos pelo Ilê.
Na faculdade de Jornalismo, seu primeiro texto acadêmico foi sobre a avó. Na sequência, no mestrado em Estudos Étnicos e Africanos, sua dissertação focou na caminhada da líder espiritual baiana; a obra será publicada em breve. “Eu sou a terceira geração da família, e a minha contribuição é dar continuidade ao que ela deixou”, frisa Valéria ao recordar do ano em que sua avó faleceu. Ela pediu para a neta falar em seu nome num evento no terreiro com várias figuras ilustres do Movimento Negro. Ao final, Mãe Hilda a abraçou e decretou: “Foi para isso que eu te criei, você está pronta”. A atitude foi um divisor de águas para a jornalista.
Em 2023, toma corpo o Instituto Mulher Negra Hilda Jitolu, organização feminista negra, que tem como pilar a busca pelo acesso a direitos para meninas e mulheres cis e transexuais negras. “É uma forma de manter vivo não apenas o legado de Mãe Hilda, mas os projetos sociais iniciados por ela. A nossa sede é o terreiro. Utilizamos o espaço sagrado para educar, formar, qualificar profissionalmente e para dar formação política. Temos 2 pilares enquanto organização: geração de renda e preservação de memória. Aqui dentro queremos contar a história de mulheres negras para as próximas gerações e, é claro, principalmente neste ano do centenário, começamos pela história dela. Queremos também qualificar profissionalmente para garantir o acesso à renda por parte de mulheres negras que são totalmente desassistidas, muitas vezes pelo poder público”.
Maria Lurdes Santos Cruz – Dona de casa e primeira rainha do Ilê.
Em 1975, o ano da primeira saída do Ilê Aiyê, Mirinha, como é mais conhecida, recebeu o convite para participar de um concurso do bloco que iria eleger a rainha negra. Na ocasião, somente 10 mulheres concorriam à coroa (no presente, a disputa já teve mais de 200 inscritas) e a jovem, com 15 anos, levou o título de primeira Deusa do Ébano da história do Ilê. “Nós abrimos o caminho para as outras negras. Antigamente, fazer trança, usar vestes africanas e passar batom era considerado algo feio por nós mesmas. Não nos enxergávamos como mulheres bonitas, era algo vergonhoso. Agora tudo está diferente, nos vestimos da maneira que bem entendemos e seguimos em frente”, avalia Mirinha, nascida e criada no Curuzu, nunca deixou de frequentar as atividades fomentadas pelo Ilê.
“Continuo sendo rainha, porque a primeira vez rainha é para sempre majestade”.
Val Benvindo – jornalista e produtora executiva.
Val, por meio das experiências práticas compartilhadas por sua avó, Mãe Hilda, aprendeu a ser uma mulher preta, candomblecista e combatente. Ela compreendeu não apenas o seu lugar no mundo, mas também percebeu que as barreiras impostas pela sociedade machista e racista poderiam ser superadas. Essa vivência inspirou Val a acreditar que as mulheres negras merecem muito mais do que os limites e estereótipos impostos, e permitiu que a sua estrela brilhasse.
Olhar para as rainhas do Ilê fez com que ela, ainda pequena, acreditasse em um futuro onde sua semelhança refletisse a majestosa aura das mulheres negras que a influenciaram, desde as musas até as percussionistas, diretoras e professoras da Escola Mãe Hilda. “No Ilê, nos entendemos como mulheres pretas que merecem ser amadas; isso aparece nas canções do bloco. Todo mundo faz questão de vibrar e celebrar a existência de mulheres importantes na história. Já homenageamos Benedita da Silva, Ruth de Souza, Zezé Motta, Chica Xavier e muitas outras mulheres que são referência para nós”, contempla Val.
Durante a Noite da Beleza Negra, na qual ela integra o time de apresentadores, depois de mais de 10 anos como produtora do bloco, a comunicadora entendeu que poderia ser o que quiser. Ali o enfoque não é exclusivamente a beleza, mas o empoderamento feminino em distintas áreas da vida; mulheres negras que, caso queiram, podem ser doutoras, empresárias, ocupar espaços profissionais de qualidade com voz ativa e altivez. Em 2016, ela dirigiu, produziu e roteirizou o curta “Outra Face”, que conta a história do evento.
“Eu não estou inventando a roda, eu estou fazendo ela girar. A herança que eu tento deixar para quem está chegando é a mesma que eu recebi, de empoderar pessoas através do meu trabalho, mostrando que não somos poucos (56% dos brasileiros são negros) e que é necessário equiparar esse número nos cargos de liderança. Eu quero ver o povo preto atuante e vivo”.
Edilene Alves – Coreógrafa, bailarina e produtora artística.
Para Edilene, a mesma força feminina que conduz os passos do Ilê Aiyê, lançada especialmente por Mãe Hilda Jitolu, foi quem a colocou dentro do bloco. Sua mãe, Yá Edna de Oxum, é a responsável pela ala das baianas – representando as ialorixás – que puxa a multidão durante o trajeto do bloco no carnaval. “Desde quando estava na barriga de minha mãe, eu já frequentava o Ilê. Meu sonho sempre foi ser Deusa do Ébano, e a família inteira me apoiava a participar do concurso, porém tive que esperar até ter idade para me candidatar. Deu tudo certo e eu fui coroada em 2009”, relembra a artista que hoje trabalha como coreógrafa do bloco. O contato com as muitas mãos femininas que ali atuam e fazem tudo acontecer causa em Edilene uma sensação de reencontro espiritual com pessoas afins, visto que o Ilê Aiyê é uma extensão dos ensinamentos que sua mãe transmitiu como força e resiliência.
“A minha construção política, artística e de autoestima vem de dentro do terreiro de candomblé. E toda essa conduta espiritual é a mesma experienciada no bloco. Então, eu já vivo isso desde pequena, e apenas reafirmo quando estou no Ilê Aiyê dançando, celebrando e exaltando a beleza das mulheres negras. Tenho como referência a Dete Lima, que é a responsável por toda a estética do bloco e quem cuida das Deusas eleitas. Admiro também todas as mulheres de axé que fazem parte da diretoria e produção do bloco”.