A ascensão e o orgulho de Majur: ‘Quando eu era criança, comecei a não me enxergar no espelho’

“Pertençam a si mesmas, acreditem na sua existência, sejam verdadeiramente quem vocês são para você e para o mundo. Isso faz toda a diferença”. (Foto: Arquivo pessoal)

No Dia do Orgulho LGBTI+, a artista baiana de 23 anos reforça a importância da luta contra a LGBTfobia e relembra o processo para se compreender como uma pessoa não-binária: ‘Tenho orgulho de ter me libertado’

Por Yuri Alves Fernandes | ODS 5 • Publicada em 28 de junho de 2020 - 00:40 • Atualizada em 16 de março de 2024 - 17:13

“Pertençam a si mesmas, acreditem na sua existência, sejam verdadeiramente quem vocês são para você e para o mundo. Isso faz toda a diferença”. (Foto: Arquivo pessoal)

O corpo de Majur é transgressor. Rompe não apenas com o binarismo de gênero, mas também com uma série de questões pré-definidas socialmente para a cantora e compositora de 23 anos e 1,93m de altura. Nascida na periferia de Salvador, a infância difícil poderia ter sido um grande obstáculo: passou fome assim como 13,5 milhões de brasileiros que ainda vivem em extrema pobreza. Mas a música transformaria seu destino. Ser uma pessoa trans não-binária – identidade que não é masculina, nem feminina – é apenas uma das nuances de sua personalidade, ainda em processo de autocompreensão, que você conhece mais nessa entrevista dada pela artista ao Projeto #Colabora.

Essa sensação de insegurança vem de qualquer lugar, porque nós, pessoas trans, temos tempo de vida na sociedade

Majur é a voz que narra o Manifesto do Orgulho do Telecine, vídeo em defesa do amor e da liberdade que celebra o Dia do Orgulho LGBTI+, comemorado nesse domingo, 28. Durante o papo, a jovem relembra que aos 4 anos começou a não se enxergar no espelho e, após várias crises existenciais, só aos 18 passou a entender a complexidade da sua natureza humana. Dos bares de terras soteropolitanas para grandes palcos  brasileiros ao lado de Caetano Veloso, Emicida e Pabllo Vittar, ela se prepara para lançar seu primeiro álbum em julho. Agenciada por Paula Lavigne, a baiana vem para florir de representatividade e talento a música brasileira com uma mistura de soul, R&B, MPB e bases de matriz africana.

Aqui, Majur abre o coração e toca em assuntos como racismo; representatividade nos meios de comunicação; enfraquecimento da cultura no atual governo e a importância da arte em tempos de isolamento social;  sua conexão com a ancestralidade e Yemanjá; e, claro, sobre LGBTfobia: “Essa sensação de insegurança vem de qualquer lugar, porque nós, pessoas trans, temos tempo de vida na sociedade”. Confira!

No Manifesto do Orgulho, vídeo produzido pelo Telecine para celebrar o Dia do Orgulho LGBTI+, você é a voz que narra o filme (assista abaixo). Pessoalmente, olhando para o que você já alcançou e pensando na representatividade desse domingo, 28: a Majur tem orgulho de quê?

Majur: Eu tenho orgulho de ter me libertado, porque quando eu me libertei e comecei a falar sobre a minha verdade, sobre o que eu realmente sou – como eu disse no Manifesto do Telecine: ‘me expressar verdadeiramente’ -, isso começou a crescer e tomar os corações das pessoas. Foi assim que cheguei em Caetano Veloso e Paula Lavigne, e em tantas outras pessoas que já cruzaram o meu caminho e me levaram a lugares grandes, como o Emicida, a Pabllo Vittar e a maravilhosa Alcione. Muita coisa aconteceu pra frente, mas tudo isso veio da libertação da minha vontade de ser eu mesma. Eu me orgulho muito disso!

Em outras entrevistas, você disse que a Liniker tem um papel fundamental na transformação da sua vida, tanto musical como na questão da identidade de gênero. Como foi isso?

Eu tenho orgulho de ter me libertado, porque quando eu me libertei e comecei a falar sobre a minha verdade, isso começou a crescer e tomar os corações das pessoas

Majur: O meu encontro com a Liniker foi um momento de reconhecimento, porque quando nos encontramos houve uma conexão enorme, nós cantamos juntas a música “Tua” e naquele momento eu não tinha noção do que estava acontecendo. Mas, um dia depois, a minha vida mudou pelo o que aconteceu em cima daquele palco e as pessoas filmaram. Então, a Liniker tem um papel muito importante na minha vida, como referência mesmo, porque ela foi a primeira pessoa que na época se dizia trans não-binária e eu via nela um pouco de quem eu era. Quando a encontrei foi como um batismo, eu estava pronta. Cantei com a pessoa que eu assistia, ouvia muito e no outro dia eu estava sendo comentada pela minha voz.

Como foi o processo para se reconhecer como uma pessoa não-binária? Teve um momento pontual em que você passou a se questionar ou foi algo que já observava desde sempre?

Majur: Quando eu era criança, a partir dos quatro anos, eu comecei a não me enxergar no espelho. Mas somente aos 13 anos, eu percebi que tinha uma outra questão que era a do coração: eu tinha mais conexão com meninos do que com meninas. Então, naquele momento me defini gay, porque eu não entendia. Naquela época existia só LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis). Eu sabia que T era de travestis e transexuais, mas não existia ainda uma abertura sobre todas as questões de gênero. Somente aos 16, 17 anos que eu comecei a me questionar um pouco mais sobre a minha imagem. Tive crises existenciais em que me questionei por muito tempo, até que aos 18, 19 anos eu comecei a entender por que surgiram as nomenclaturas de gênero: trans não-binário, transgênero, intersexuais e outras categorias. Eu me encontrei em não-binário, quando não se identifica com nenhum dos dois gêneros, nem mulher e nem homem. Seria um terceiro sexo? Não sei, mas eu me identifico com essa pessoa trans hoje em dia.

‘Quando eu era criança, comecei a não me enxergar no espelho’
“Não me interesso em entender um rótulo porque eu me sinto muito bem e feliz em ser Majur”. Foto: @projetoolhapramim
Você representa a diversidade e a complexidade do ser humano – chegou a dizer em uma entrevista que ainda está em processo de entendimento sobre isso. E também não gosta muito de rótulos fechados. Você tem uma preocupação em empoderar ou ser referência para pessoas com vivências parecidas com as suas?

Eu me encontrei em não-binário, quando não se identifica com nenhum dos dois gêneros, nem mulher e nem homem. Seria um terceiro sexo? Não sei, mas eu me identifico com essa pessoa trans, hoje em dia

Majur: Nós temos definido no sistema o binarismo do homem e da mulher e eu me entendo como pessoa não-binária, mas às vezes eu me pergunto sobre a existência de um novo sexo. Não sei se isso é possível e se a gente pode pensar assim daqui a um tempo, mas eu também não me interesso em entender um rótulo porque eu me sinto muito bem e feliz em ser Majur. Eu acho que pertencer a si mesmo é a melhor coisa e a melhor sensação do mundo, e é isso que eu falo tanto para as pessoas: Pertençam a si mesmas, acreditem na sua existência, sejam verdadeiramente quem vocês são para você e para o mundo. Isso faz toda a diferença e a gente consegue ser realmente feliz nesse mundo que a gente já enfrenta tantos problemas.

Como uma pessoa não-LGBTI+ pode se tornar aliada na causa sem roubar o protagonismo para si?

Majur: Nós precisamos de visibilidade, então quanto mais a gente estiver no sistema, nas redes, nas empresas de diferentes categorias e setores, isso sim vai fazer a mudança na sociedade. Os números precisam começar a ser contados com a nossa inclusão. Nós temos que estar dentro desses números e em papéis de protagonismo, o que é uma coisa difícil de acontecer apesar da gente se esforçar bastante.

Em suas músicas é muito comum, seja nas letras ou nos instrumentos, a exaltação da África ancestral. A conexão com a ancestralidade é algo que sempre esteve presente na sua carreira? Ou teve um momento que você aprofundou mais nessa questão?

Majur: Sou de religião de matriz-africana e tudo começou em 2018 com uma história muito linda, no dia de Yemanjá, que é feriado regional. Eu joguei uma rosa no mar, ali falei com ela e os meus desejos foram realizados. Encontrei a religião a partir desse dia 02 de fevereiro de 2018. Um ano depois eu estava no carnaval de Salvador e dentro do axé. Tenho uma conectividade muito grande com a África ancestral porque fala dos meus ancestrais, das energias da natureza e das energias que eu cultuo.

Os recentes protestos contra a morte de George Floyd tomaram conta do mundo e você chegou a se manifestar nas suas redes sociais dizendo que precisamos nos unir. Em meio às manifestações, uma mulher trans e negra foi agredida por um grupo de homens. Você acha que ainda estamos longe de ser uma sociedade que respeite as diferenças? Com base nas suas vivências, você consegue enxergar um progresso nas questões envolvendo o racismo e a LGBTfobia?

Majur: Imagino que seja um longo caminho, mas essa ruptura pode acontecer a qualquer momento porque depende das pessoas, depende da gente. Então, não tem como eu dizer para você que eu vejo isso de uma forma pessimista, de dizer que isso pode demorar, porque eu tenho esperança de que seja breve. E que essas manifestações não deixem de ser manifestações de momento, mas, sim, diárias. Que as pessoas passem a se unir para retirar essas doenças do mundo, como o racismo e a LGBTfobia. Estamos avançando para que as pessoas comecem a enxergar esse lugar, comecem a nos ouvir, comecem a entender como a estrutura do sistema funciona e o que ela faz com as pessoas. Mas eu acredito, sim, no progresso, com certeza estamos chegando lá.

Segundo dados da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 82% das pessoas trans assassinadas no ano passado eram negras ou pardas. A Mc Xuxu, cantora negra e trans, falou ao #Colabora que vive um medo constante por ser o principal alvo. Você se sente ou já se sentiu com esse sentimento de insegurança? Já passou alguma situação de preconceito que te marcou mais?

Antes, eu saia nas ruas e escutava as pessoas rindo de mim, gritando ‘viado’ e criando formas de fazer eu me sentir mal. Mas, com toda certeza, eu sempre andei e ando de cabeça erguida

Majur: Essa sensação de insegurança vem de qualquer lugar, porque nós, pessoas trans, temos tempo de vida na sociedade. Uma pessoa trans, hoje, não vive mais que 38 anos (de acordo com a Antra, a expectativa de vida é 35 anos) e toda a nossa luta é para que a gente consiga ultrapassar essa idade. As ruas são perigosas, as pessoas são perigosas e existe muita gente maldosa. É impossível a gente andar sem medo de algo acontecer quando a gente vê na TV, o tempo todo, pessoas trans morrendo, especificamente mulheres trans.

Eu já passei por situações de preconceito, aqui em Salvador. Antes, eu saia nas ruas e escutava as pessoas rindo de mim, gritando “viado” e criando formas de fazer eu me sentir mal. Mas, com toda certeza, eu sempre andei e ando de cabeça erguida e se realmente o preconceito vier eu não vou me abater, eu vou combater, falar, agir e repreender a pessoa na hora.

Majur, Emicida e Pabllo Vittar na gravação do clipe AmarElo (Foto: Divulgação)
Se você pudesse florir – como você canta na sua música Colorir – alguma problemática do país, transformando-a em algo bom para a nação, qual seria?

Majur: Com certeza seria a representatividade nos meios de comunicação. Quando a gente vê pessoas brancas de um certo padrão corporal e estético, a gente não consegue se ver naquele lugar. Muitas pessoas pretas precisam entrar na televisão, ter mais acesso e estamos cada vez mais avançando nisso. Por isso, é necessário que a gente cobre nas manifestações, porque se isso muda, as pessoas começam a se enxergar diferente em casa. Se você não se vê lá, é impossível você ser.

Você faz parte do universo da música desde criancinha – começou no coral da Orquestra Sinfônica da Juventude de Salvador, sua cidade natal, aos 5 anos. Mas em que contexto nasce, de fato, a Majur, a artista da noite das ruas de Salvador, com a personalidade que podemos ver hoje, que encontrou na música sua maior forma de expressão?

Majur: Eu estudava Design na época e o que me ajudou a ser quem eu sou foi uma matéria chamada Semiótica, que é o estudo de todos os detalhes que você vê e como você descreve, o que você sente sobre, o que você está vendo ou percebendo também. E eu comecei a escrever sobre mim, dessa forma eu me encontrei e quis ir para rua, porque eu percebi que eu era cantora e eu não deveria ser outra coisa, em um primeiro momento. Eu saí do curso de Design e fui para as ruas atrás de bares para cantar na noite. Assim começou a minha vida, quando o primeiro bar aceitou e me colocou para cantar numa quarta-feira.

Estamos vivendo um momento delicado para a cultura do Brasil tanto na questão política – já é o quinto secretário de Cultura do governo federal em 17 meses – e por causa da pandemia de coronavírus. O que você tem feito nesse período de isolamento e qual a importância da arte em dias tão incertos e sombrios como esses?

Sem cultura a gente não tem como viver. Precisamos escutar uma boa música e ter momentos de diversão ou de reflexão, sobretudo nesse momento com tantos problemas.

Majur: Eu tenho feito lives e participado de bate-papos com pessoas e instituições, como por exemplo a Marcha Entra Na Sala, que foi um festival de pessoas LGBTQI+, especificamente pessoas trans e travestis, e foi incrível. Também estou fazendo intervenção política no Instagram da Sabrina Sato. Continuo trabalhando e levando arte para as pessoas que estão dentro de casa, impedidas de trabalhar e exercer suas atividades, porque sem cultura a gente não tem como viver. Precisamos escutar uma boa música e ter momentos de diversão ou de reflexão, sobretudo nesse momento com tantos problemas.

O que podemos esperar para essa segunda metade do ano?

Majur:  Vem lançamento do meu disco, que vai ser uma surpresa muito grande. Vou começar a lançar a primeira música agora em julho, e logo depois as outras. Os meus fãs já estão esperando há um ano o lançamento do disco e agora vem da melhor forma e com o melhor de mim. Estou muito feliz e esperançosa!

Quais são os seus sonhos? Sonhos pessoais e também sonhos para uma nação que de fato se comprometa com políticas progressistas?

Eu queria que as pessoas dessem valor e fossem verdadeiras com a frase ‘Ninguém solta a mão de ninguém’. Se isso acontece, a gente muda o mundo!

Majur: Primeiro eu quero viver, porque nessa pandemia a gente fica com bastante medo de se expor e alguma coisa acontecer, mas eu tenho esperança de que vamos passar por isso. Eu tenho o desejo de sair cantando e levando esse disco para todas as cidades do Brasil, além de começar também a fazer shows no exterior. Então, eu estou com muita esperança e planos para, quando acabar essa pandemia, a gente já poder colocar o plano em ação. Nós, brasileiros, precisamos de pessoas que se comprometam de fato com políticas progressistas, porque a gente precisa dar as mãos. Eu queria que as pessoas dessem valor e fossem verdadeiras com a frase “Ninguém solta a mão de ninguém”. Se isso acontece, a gente muda o mundo!

Além do Manifesto do Orgulho, o Telecine também convidou ilustradores para recriarem cenas simbólicas de filmes representativos do cinema a partir das cores do arco-íris (veja abaixo). 

Yuri Alves Fernandes

Jornalista e roteirista do #Colabora especializado em pautas sobre Diversidade. Autor da série “LGBT+60: Corpos que Resistem”, vencedora do Prêmio Longevidade Bradesco e do Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+. Fez parte da equipe ganhadora do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, com a série “Sem direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”. É coordenador de jornalismo do Canal Reload e diretor do podcast "DáUmReload", da Amazon Music. Já passou pelas redações do EGO, Bom Dia Brasil e do Fantástico. Por meio da comunicação humanizada, busca ecoar vozes de minorias sociais, sobretudo, da comunidade LGBT+.

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