Sem recreio: a violação invisível do trabalho infantil

Meninos trabalham empurrando carrinhos de compras na feira em São José do Una: trabalho no lugar da escola na pandemia (Foto: Victória Alvares/Lição de Casa)

Naturalização no Brasil de meninos e meninas sendo utilizados nos mais variados serviços é o principal desafio para a erradicação

Por Lição de Casa | ODS 4 • Publicada em 24 de março de 2021 - 09:28 • Atualizada em 25 de março de 2021 - 10:52

Meninos trabalham empurrando carrinhos de compras na feira em São José do Una: trabalho no lugar da escola na pandemia (Foto: Victória Alvares/Lição de Casa)

Joana Suarez, Luísa Muzzi e equipe Lição de Casa

Narrativas que promovem o trabalho infantil aparecem mais fortes nos contextos de crise. São discursos que desrespeitam os compromissos assumidos pelo país não só com a Constituição Federal, que proíbe essa exploração, mas com tratados e convenções internacionais.

Uma das causas mais fortes do trabalho precoce é a cultura da aceitação, avalia Antônio de Oliveira Lima, coordenador da Rede Peteca (de combate ao problema) e procurador do trabalho no Ceará. “Temos a desinformação de quem diz que tira da criminalidade, por exemplo, e ainda um presidente que faz apologia ao trabalho infantil”.

Em live nas redes sociais, no ano passado, Jair Bolsonaro disse que trabalhou aos 9 anos de idade na fazenda e “não foi prejudicado em nada”. O presidente citou ainda que todo mundo reclama, mas ninguém fala nada quando “um menino está fumando crack”, fazendo alusão à imprudente ideia de que é “melhor estar trabalhando do que na criminalidade”.

De vítimas a criminosos

O crime, na verdade, é também um local de exploração. O tráfico de drogas recruta muitas crianças e consta na lista das piores formas de trabalho infantil. Mas os adolescentes pegos com traficantes não são vistos como vítimas, apenas como infratores. Não à toa, é o maior motivo de apreensão de menores no país, e, geralmente, esses meninos haviam abandonado a escola.

[g1_quote author_name=”Alessandra Kelly Vieira” author_description=”Pesquisadora da UFMG” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

O sistema socioeducativo promete, mas não garante a qualificação e a inserção deles no mercado legal. Muitas unidades recusam a matrícula ou ele fica conhecido como ‘o aluno da LA’ (liberdade assistida)

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Júlio*, de 12 anos, desistiu de estudar por causa da aprendizagem remota no ano letivo de 2020. Passou a ficar mais tempo nas ruas da favela em que mora, na cidade de Belo Horizonte. Desviado da rede de proteção, foi convocado para ser olheiro do tráfico.

“É algo que acaba sendo mais visto como crime, não como trabalho infantil, apesar de ser uma exploração grave, pois muitos perdem a vida”, ponderou Alessandra Kelly Vieira, que analisou como a justiça juvenil tem privilegiado as medidas punitivas em vez das protetivas (e preventivas), em recente doutorado em Psicologia Social na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Adolescentes infratores em unidade no Distrito Fedral: uso de menores no crime também é exploração de trabalho infantil (Foto: José Cruz/Agência Brasil/Arquivo)
Adolescentes infratores em unidade no Distrito Fedral: uso de menores no crime também é exploração de trabalho infantil (Foto: José Cruz/Agência Brasil/Arquivo)

Os adolescentes são criminalizados, apesar de os juízes “prenderem” alegando que estão protegendo, explicou Alessandra. Ela destaca que instituições privativas de liberdade, onde eles ficam internados, têm caráter sancionatório, e ocorrem homicídios, suicídios e agressões nesses lugares.

Quando são flagrados pela polícia é que eles se tornam visíveis, e só assim acessam uma suposta rede – que não foi a de prevenção. “O sistema socioeducativo promete, mas não garante a qualificação e a inserção deles no mercado legal”. O adolescente fica com o estigma de infrator, dificultando até a volta dele para a escola. “Muitas unidades recusam a matrícula ou ele fica conhecido como ‘o aluno da LA’ (liberdade assistida)”, explicou a pesquisadora.

[g1_quote author_name=”Luciana Coutinho” author_description=”Procuradora do Trabalho em Minas Gerais” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

O trabalho infantil não afasta da droga, da criminalidade e de outras mazelas; pelo contrário, ele aproxima

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Quando as pessoas ficam indiferentes a essa violação, de alguma forma estão sendo também coniventes. Uma banalização que se reflete no perigoso discurso do “trabalhei e não morri”, frase que a conselheira tutelar Rosimeire Pinto Trindade, de Belo Horizonte, escuta com frequência. Em um restaurante na periferia, esbarrou com Marina*, de 8 anos, ajudando a mãe com os clientes durante a pandemia. Para se defender, a genitora disse que se a filha não estivesse ali, estaria na rua, e que isso seria pior.

“A sensação é que a gente fica enxugando gelo”, desabafa Rosimeire. Ela destaca que as famílias são numerosas e precisam de renda. “Foram criadas assim (trabalhando desde cedo), já é uma constante na cultura deles”. A conselheira explicou que queria que a criança estudasse para ter um trabalho digno e protegido. “Mas com as escolas fechadas é tudo mais difícil”.

A mãe de Marina reproduz um imaginário equivocado segundo o qual, para o menino pobre, o trabalho é a melhor opção. Mas a criança que trabalha nas ruas está muito mais sujeita a ser explorada, instigada ao erro e a usar entorpecentes, do que aquela que está em um ambiente protegido. “O trabalho infantil não afasta da droga, da criminalidade e de outras mazelas; pelo contrário, ele aproxima”, considera Luciana Coutinho, procuradora do trabalho em Minas Gerais.

Entregadores de aplicativo nas ruas de São Paulo: procuradores do Trabalho localizaram adolescentes neste serviço (Foto: Ricardo Parizotti/Fotos Públicas – 20/03/2020)

Pobreza e racismo

Por banalizarem, muitos sequer cogitam denunciar essa violação. “É como se tivessem uma venda nos olhos”, diz a procuradora Luciana. Ela ressalta que essa pauta atinge, majoritariamente, crianças pobres, em geral negras ou pardas, moradoras da periferia, conforme o perfil mais comum dessas vítimas. Mas a interface do trabalho infantil com o racismo e a pobreza é pouco percebida.

Quatro garotos de 10 a 13 anos que a repórter Victória Alvares, do Lição de Casa, encontrou em São Bento do Una, em Pernambuco, faziam serviço de “frete” para adultos em uma feira. Viam o trabalho como parte da infância, cresceram por ali.

[g1_quote author_name=”Gustavo*, 17 anos” author_description=”Entregador de aplicativo” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Lembra o Titanic, o navio que tava afundando e aqueles músicos que não paravam? A gente é tipo eles. É claro que a pandemia é perigosa, mas a gente não pôde parar”

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Os meninos chegam por volta das 5h e se vão a partir do meio dia, quando o barulho e o calor já estão quase insuportáveis. Eles moram em uma região conhecida como “favelinha” e estavam matriculados na escola, mas nenhum acompanhava as aulas desde o fechamento das instituições.

Muitos diziam estar lá para conseguir ter um celular, um jogo no computador, um lanche mais gostoso. Ninguém se mostrou interessado em retomar os estudos enquanto não houvesse ensino presencial. Aprendizado por tela parecia entediante demais para eles – pessoalmente não conseguiam render mais de dois minutos de conversa sem distrações.

Na maior metrópole brasileira, São Paulo, auditores fiscais do trabalho identificaram 15 adolescentes, de 16 e 17 anos, atuando como entregadores de aplicativos durante a pandemia. Garotos de baixa renda, sem experiência profissional. “Lembra o Titanic, o navio que tava afundando e aqueles músicos que não paravam? A gente é tipo eles. É claro que a pandemia é perigosa, mas a gente não pôde parar”, afirma Gustavo*, 17 anos, entregador de aplicativo em depoimento ao movimento SP Invisível.

Para esse grupo, as longas jornadas são feitas por sobrevivência: nenhum dos jovens relatou estar na função para comprar objetos de desejo, segundo o auditor Rafael Augusto Vido da Silva. A possibilidade de voltar a estudar também não era considerada nos depoimentos. “Eles realmente acham que esse trabalho pode trazer algum futuro”, notou o auditor. Futuro que pode não ser sobre um projeto tão distante, já que são jovens que labutam pelo dinheiro de cada dia.

*Nomes fictícios para proteger as crianças

**Esta série de reportagens foi financiada pelo Edital de Jornalismo de Educação, uma iniciativa da Jeduca e do Itaú Social.  

Lição de Casa

Projeto de investigação jornalística (colaborativo e nacional) para acompanhar os impactos da covid-19 na educação brasileira. São 15 jornalistas em dez estados brasileiros. O site http://licaodecasa.org/ foi lançado em dia 15 de setembro de 2020, após seis meses de pandemia.

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