(João Pedro Boaretto, Laura Furtado, Natalia Pereira, Nathalia Guimarães e Pedro Cardoni) – Não é raro andar pelas ruas dos movimentados centros urbanos brasileiros e encontrar muitas crianças vendendo bala ou biscoito nos sinais de trânsito, nas idas e vindas no transporte público ou até na caminhada entre casa e trabalho. Embora o ato da compra seja muitas vezes mais focado em ajudar os menores, o pensamento inicial é questionar se eles não deveriam estar nas escolas ou em um ambiente propício para o seu desenvolvimento. Na prática, ao conversar com os responsáveis, a realidade é outra.
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Apesar de parecer inofensivo, o comércio ambulante é uma das atividades presentes na C, a Lista TIP, que define quais atividades oferecem mais riscos à saúde e ao desenvolvimento físico e mental na infância. A lista foi proposta pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e também inclui venda e tráfico de crianças, trabalho forçado ou compulsório, realização de atividades ilícitas, exploração sexual, entre outras atividades.
Os pequenos vendedores ambulantes são enquadrados na categoria de serviços coletivos e sociais do TIP, juntamente com crianças que trabalham em cemitérios. De acordo com a OIT, há possibilidade de comprometimentos para a saúde dessas crianças, como deformações de coluna, problemas no desenvolvimento afetivo e o aumento da tendência para dependência química, atividade sexual precoce e alcoolismo.
Conversamos com três mães que acompanhavam seus filhos na venda de balas para entender a realidade por trás dos números. No Brasil, 39,9% das crianças em situação de trabalho infantil estão realizando atividades da Lista TIP, revela a pesquisa Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2022, da Abrinq. Nessa reportagem, seus nomes foram trocados para evitar a exposição e a criminalização. Maria tem 30 anos e é mãe de 3 filhos. Clara tem 24 anos e é mãe de 4 filhos. Eduarda tem 48 anos e também é mãe de 4 filhos. Suas histórias são exemplos reais de como a falta de políticas públicas impacta a vida de famílias que não possuem uma rede de apoio consistente e não veem outra saída a não ser incluir seus filhos no trabalho.
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Veja o que já enviamosDentro do terminal rodoviário de uma cidade na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, encontramos Maria e seu filho mais novo, que vêm da capital para trabalhar na cidade vizinha. A criança de 1 ano e 5 meses estava no carrinho de bebê, enquanto sua mãe, sentada em um papelão no chão, anunciava a venda da bala de eucalipto e pedia qualquer ajuda que pudesse ser dada pelos transeuntes da movimentada estação. Além do bebê, ela também é mãe de crianças de 6 e 12 anos. Maria garante que todos os filhos frequentam a escola. No entanto, nos finais de semana, não tem com quem deixá-los e, por isso, precisam acompanhá-la nas vendas na rua. “Se tivesse alguém para deixar o bebê, eu deixaria, pode ter certeza. E tem muita gente que não entende, acha que estou fazendo isso para poder ganhar vantagem com ele”, desabafa.
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Com 26 anos de experiência profissional, a assistente social Claudia Lasry, do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), diz que não há um protocolo de atendimento para os casos de crianças que acompanham os pais no trabalho nos fins de semana. “O trabalho do assistente social é promover a proteção e trabalhar os riscos que os responsáveis colocam seus filhos quando os colocam em exposição nas ruas”, afirma. O papel do SUAS é realizar o enfrentamento das vulnerabilidades sociais existentes para evitar que se transformem em violações de direitos, principalmente na primeira infância. Ele atua de forma preventiva e também promove ações voltadas para pessoas em situações de risco ou violação.
Trabalho de mãe para filhos
Do outro lado da rua, enquanto andávamos por um shopping da mesma cidade, encontramos a Clara, uma jovem de 24 anos e mãe de 4 crianças. Naquele momento, ela estava com seu filho de dois meses no colo, ao lado de outros dois, de 8 e 5 anos. Clara vendia balas de gelatina em frente a uma loja de departamentos. Enquanto conversávamos, ela contou que saiu do Rio para passar o Dia das Mães na casa da avó das crianças e que estava ali para arrumar um trocadinho: “Não é mais uma necessidade de eu vir trabalhar, eu venho porque eu gosto. Eu gosto de trabalhar”.
Clara não trabalha rotineiramente e diz que costuma ficar em casa cuidando dos filhos. Ela atua no comércio ambulante desde criança. “Eu vendo desde pequenininha. Não era eu que vendia, não era exploração, era uma ajuda mesmo”, ela se explica. Assim, começou a ir para as ruas quando tinha entre 9 e 10 anos e, segundo ela, sua mãe não a deixava ir quando era muito pequena.
Assim como Clara, que desde menina vendeu balas como forma de ajudar a família, muitos naturalizarem esse tipo de prática, principalmente em famílias com condições econômicas precárias, já que as dificuldades podem levar as crianças a assumirem responsabilidades precocemente para ajudar a suprir necessidades básicas. Para a assistente social Claudia Lasry, cada família possui sua especificidade, sua realidade, as nuances do território e a cultura familiar. “Não existe uma fórmula para superar essas fragilidades, pois cada caso é um desafio”.
Clara conta que tem dó dos filhos e que eles só a acompanham quando não têm com quem deixá-los, já que não há creches no fim de semana. “Meu filho costuma falar ‘vamo vender’?’”, conta ela. Eu digo: “ Não, não pode!”. A ocasião em que a encontramos era, pelo seu relato, excepcional, um sábado. Os dois filhos mais velhos estão matriculados em instituições de ensino, mas um dos mais novos, o de 2 anos, ainda não conseguiu ser alocado. “Eu não consegui creche pra ele lá no Rio; tá muito difícil”, relata Clara.
A assistente social comenta que levar as crianças para o comércio ambulante pode ser uma estratégia dos pais para gerar comoção e facilitar a venda. “É muito mais fácil vender bala ou pedir dinheiro com uma criança. Sem a figura infantil, tudo fica mais difícil”, observa. Entretanto, Claudia diz que estão atentos sobre a matrícula das crianças na rede de ensino. Quando as equipes do SUAS identificam que não há vaga em creches para as crianças, os técnicos encaminham o caso para a CRE (Coordenadoria Regional de Educação) da área de moradia e, em alguns casos, para a Promotoria de Infância, explica Claudia Lasry.
Creches sem vagas
O Censo Escolar da Educação Básica de 2022, a mais importante pesquisa estatística educacional do país, apresentou um aumento no número de matrículas em creches no Brasil. Em relação ao ano de 2021, o aumento das matrículas nessa etapa da Educação Infantil foi de 18,1% e, entre as crianças de até 3 anos de idade, de 17,8%. Das 74,4 mil creches em funcionamento no país, 66,4% das matrículas são da rede pública e 33,6% da privada, sendo que mais da metade das instituições particulares têm convênio com o poder público. Apesar do aumento, a meta do Plano Nacional de Educação (PNE) para 2024 está longe de ser alcançada.
Atualmente, apenas 36% das crianças de até 3 anos de idade estão matriculadas em creches no país. O governo quer chegar a 50% desse público, o que representaria um aumento dos atuais 3,9 milhões para cerca de 5 milhões de matrículas. Apesar de não ser uma etapa de ensino obrigatória, as creches são de extrema importância para as famílias que precisam trabalhar e não tem onde deixar as crianças.
Clara e Maria são exemplos de mães que trabalham, mas não se beneficiaram do aumento estatístico nas matrículas. Seus filhos ainda aguardam na fila de espera de diferentes creches para conseguirem vagas. Em nota, quando procurada pela equipe, a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro esclareceu que “vem atuando para ampliar a capacidade de atendimento das creches na cidade, tanto que abriu 19.355 novas vagas, contra, somente, 853, no período entre 2017 e 2020”. O órgão também informou que “já abriu quatro chamamentos públicos para creches parceiras em todas as regiões da cidade. A iniciativa pretende, principalmente, reduzir a fila de espera por vagas em creches na cidade. Atualmente, a pasta conta com 510 creches próprias e 312 creches parceiras”.
Em outro ponto da Região Metropolitana, encontramos Eduarda, moradora de uma comunidade próxima à Central do Brasil, no Rio. Ela diz que prefere estar com os filhos por perto até enquanto trabalha. “No morro tem boca (de tráfico de drogas), é perigoso. Eu tenho uma filha de 12 anos e eu não quero que ela fique na rua, quero que ela fique na minha visão”, disse enquanto fazia, com as mãos, o sinal de vigiar.
Aos 48 anos, ela e sua filha mais nova, de 7 anos, vendiam balas de goma e panos de prato no chão da calçada. A mãe afirmou que suas crianças estudam durante a semana, mas, após as aulas e nos fins de semana, vão ao seu encontro para acompanhá-la nas vendas. Eduarda reforça a importância da educação e, principalmente, de projetos sociais na formação de seus filhos. Todos eles fazem parte da ONG Entre o Céu e a Favela, localizada no Morro da Providência, no Centro do Rio. Atualmente, a organização mantém dois projetos: o Favela Cria e o Qualificação Profissional.
O Favela Cria atende 200 crianças com idade de 7 a 14 anos. Ele fornece atividades que desenvolvem suas habilidades mentais e físicas, disponibilizando acesso à cultura, arte, lazer, educação e práticas esportivas. De acordo com o coordenador de operações da ONG, Fabiano Andrade, o foco do trabalho é a atuação por meio da representatividade e do protagonismo das crianças. O coordenador conta que o objetivo do segundo projeto é qualificar profissionalmente os jovens e adolescentes. “Hoje eles têm acesso a cursos de qualificação profissional, encaminhamento a processos seletivos, elaboração de currículo, dicas de como se comportar em entrevistas de emprego, além de atendimentos psicológicos,” relata.
Perto de 2 milhões no trabalho infantil
No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) proíbe qualquer forma de trabalho até os treze anos e garante o trabalho protegido para jovens a partir de 14, na forma de aprendiz. O direito à educação gratuita e ao lazer infantil também são princípios estabelecidos pela Declaração Universal dos Direitos das Crianças, proposta pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).
De acordo com pesquisa do IBGE, realizada em 2019, quase 1,8 milhão de crianças e adolescentes trabalhavam em todo o país. Em 2022, quase dois mil menores de idade foram encontrados em situação de trabalho infantil. Os constantes novos registros trazem o tema de volta ao debate público e tomam conta dos noticiários, relatando um problema que pode chegar a casos extremos, como exploração sexual ou tráfico de drogas, ou a uma realidade já vista diariamente nos grandes centros brasileiros, os pequenos vendedores de bala.
Todas as mães entrevistadas nesta reportagem são do Sudeste, mas é preciso lembrar que a situação de crianças exercendo trabalhos na lista TIP é pior em outras regiões do país, de acordo com a pesquisa da Abrinq, com base em dados do IBGE. No Norte, entre as crianças e adolescentes que trabalham, 48,2% estão em atividades da lista TIP; no Sul, a porcentagem é de 40,5%, no Centro-Oeste, de 39,2%, no Sudeste, de 38,9%, e no Nordeste, de 37,5%
Casos como o de Maria, Clara e Eduarda são alguns exemplos de um problema que afeta muitas crianças brasileiras e vai diretamente contra as resoluções propostas pelo ECA e UNICEF. Eles ilustram uma realidade que põe em risco a segurança e o futuro dos jovens e trazem à tona a necessidade de um poder público mais atuante. Até lá, o problema continua.
*Os nomes das mães foram modificados para preservar suas identidades.