Sensação de impotência marca rotina de professores na pandemia

Funcionário do governo do Distrito Federal desinfeta uma escola pública como medida preventiva contra a disseminação da covid-19. Foto Evaristo Sá/AFP

“Ao menos nos últimos meses a sociedade sentiu a falta que o professor e a escola fazem”, afirma o docente Adriano de Souza

Por Heloisa Aun | ODS 4 • Publicada em 15 de outubro de 2020 - 09:05 • Atualizada em 20 de outubro de 2020 - 15:38

Funcionário do governo do Distrito Federal desinfeta uma escola pública como medida preventiva contra a disseminação da covid-19. Foto Evaristo Sá/AFP

A educação sofreu impactos profundos em meio à pandemia do novo coronavírus. Escolas, bem como seus professores e alunos, passaram a ter de se adaptar ao uso de tecnologias para manter, na medida do possível, o ensino à distância. No caso da rede pública, a situação foi muito mais grave. Como lidar com as dificuldades de acesso à internet e a recursos financeiros, além de todo panorama de saúde pública neste momento? Estudos realizados desde março deste ano mostram que, de um modo geral, foram muitas as consequências deste período para o aprendizado.

O Instituto Península, por exemplo, entrevistou 2.400 professores da educação básica, tanto da rede pública quanto privada. Segundo a pesquisa, estudantes e professores estão se sentindo mais ansiosos e sobrecarregados por conta do trabalho dentro de suas casas. Os números mostram que os docentes vêm demonstrando ansiedade (67%), cansaço (38%) e tédio (36%), demandando apoio para lidar com a questão emocional. Ainda de acordo com o estudo, 83,4% não se sentiam preparados para ministrar essas aulas online.

Já o site Nova Escola fez um levantamento online, com a participação de 9 mil professores, que revelou um baixo índice de participação de alunos e famílias nas atividades à distância, atraso no calendário letivo, falta de apoio da rede e comprometimento na saúde mental dos docentes. A etapa com menor participação durante todos esses meses foi a da educação infantil.

Os resultados acima revelam o abismo existente e retratam as dificuldades enfrentadas por estudantes e professores de colégios públicos, como a falta de computadores e espaço disponível de trabalho, além do acesso limitado à internet. Atrelado a isso, o ensino à distância trouxe um esgotamento emocional e físico aos professores, pois eles ficam disponíveis 24 horas por dia para auxiliar as crianças e adolescentes. Como apenas a minoria tinha familiaridade com aulas online, muitos se viram sem suporte para adaptar os conteúdos e ter uma boa didática em EAD.

Segundo o professor Adriano de Souza, de 48 anos, que atua em escolas particulares em Presidente Prudente, no interior de São Paulo, mesmo na rede privada houve uma limitação de acesso aos estudos pelo aplicativo para alunos com celulares com pouca memória ou um sistema mais antigo. “Os que não tinham como se conectar tinham a opção de fazer as atividades e entregá-las presencialmente”, explica.

Para ele, a desvalorização da profissão se dá frente ao salário e à própria sociedade. “A nossa função está desacreditada por parte da população, e isso já vem desde a década de 1970, quando foram congelados os salários e não houve investimento em políticas públicas educacionais que realmente fossem eficazes”, pontua. Muitas vezes, os docentes estudam e trabalham em três ou quatro colégios, com carga horária excessiva, por isso, há quem tenha outra profissão em paralelo. “Ao menos nos últimos meses a sociedade sentiu a falta que o professor e a escola fazem”, conclui.

Nas semanas que marcam o retorno de algumas escolas pelo país – e o Dia do Professor (15 de outubro) –, ainda há, com razão, muitas pessoas que têm receio de voltar à rotina presencial e temem o futuro da educação. O Projeto #Colabora conversou com alguns professores da rede pública do país para entender mais sobre as dificuldades que  enfrentaram, e ainda enfrentam, para ministrar suas aulas durante a pandemia. Confira os depoimentos:

Joana D’arc, professora há 11 anos, ao lado da filha (Arquivo Pessoal)
Joana D’arc, professora há 11 anos, ao lado da filha (Arquivo Pessoal)

‘O mais difícil foi lidar com a morte de alunos e professores’

Joana D’arc Ferreira, 51, professora de matemática há 11 anos em Carapicuíba (SP)

“Quando começou a pandemia, ficamos perdidos, assim como todas as outras pessoas. Eu pensei: ‘como vou lidar com isso enquanto professora?’. A primeira ideia que tivemos foi preparar atividades para os alunos, com urgência. Nos reunimos na sala de informática, que não funciona 100%, mas fizemos os materiais somente para um mês, porque imaginávamos que voltaríamos em breve. Postamos os arquivos no Facebook e enviamos e-mails. Essa foi nossa primeira preocupação para que eles não perdessem o ritmo. A princípio deu certo, mas chegou abril e tivemos a real noção que não retornaríamos em maio.

Foi então que pensamos nas ferramentas que poderíamos usar para adaptar os conteúdos de acordo com cada disciplina, como WhatsApp, Facebook, Classroom e Google Meet. Apesar de ser totalmente leiga em tecnologia, fui a primeira a começar a trabalhar com videoaulas, pois o ensino de matemática demanda um acompanhamento assim. Nós professores passamos por problemas infinitos sem qualquer suporte, só um apoiando o outro. Por exemplo, temos colegas que não têm computador em casa. Eu, no caso, divido o notebook com minha filha.

Fiz de tudo para passar o conteúdo, mas a maior parte dos alunos não acompanha as aulas remotas. Quando o governo diz que há adesão, é mentira. Eles não entregam as atividades e a gente muda a estratégia de trabalho, porém, não há avanços. Se na sala de aula já é difícil prender a atenção, na videoaula é ainda pior. Estamos tendo um trabalho árduo, mas sem qualquer retorno. Fazemos a nossa parte, com o afinco que tínhamos em sala de aula. Quando retornarmos, 2021 será um ano muito difícil para a educação. Os estudantes até querem voltar, mas estão com medo. Para muitos, a escola é o ambiente em que podem desabafar e onde têm amigos.

Tínhamos que trabalhar também o emocional deles, por isso, nosso primeiro contato não era conteúdo, mas sim perguntar como eles estavam. As respostas eram muitas: ‘professora, meu primo adoeceu’ ou ‘meu vizinho morreu’. Eu mesma tive perda de quatro alunos, dois em uma escola e mais dois na outra. Foi um sofrimento muito grande, que ainda vivo, porque eu acompanhava todos eles com muito carinho. A história das perdas é o mais marcante, pois em relação ao conhecimento podemos trabalhar e correr atrás, mas meus alunos e colegas que se foram não voltam mais.

Muitas pessoas dizem que quem exerce profissão de professor são aqueles que não conseguiram se sobressair em outras profissões, o que não é verdade. Eu nasci para ser professora e eu só vim descobrir isso muito tempo depois por conta das minhas filhas, após trabalhar na área da saúde. A escola é um lugar de diversidade, onde a gente vê tudo ao mesmo tempo: a criança abandonada, a que sofre violência, a mãe que sai de madrugada e volta às 22h para trabalhar e sustentar os filhos, entre muitas outras histórias. Nós, professores, temos de saber lidar com esses problemas e com todas as questões que aparecem. Quantas vezes eu já não tirei roupas das minhas filhas para dar a uma criança? A gente cuida deles como se fossem nossos filhos.

Estou sentindo muita falta dos meus alunos, mas o que mais dói é a falta de reconhecimento, que precisa vir acompanhada pelo lado financeiro. Nos valorizar enquanto profissionais, uma vez que somos importantes para a sociedade. Sabe o que é o professor trabalhar e ganhar R$ 10 por aula, em uma classe com 35 estudantes, cada qual com seu problema? A gente sofre, mas não abrimos mão de viver essa história. Eu amo ser professora.”

‘O pior de tudo é a sensação de impotência’

Carolina da Silva (*), 28, professora há 5 anos na rede pública do Rio de Janeiro (RJ)

“As escolas da rede municipal do Rio têm pouca autonomia em relação ao currículo, aos materiais didáticos, aos projetos extracurriculares e às questões pedagógicas e burocráticas. Em relação à pandemia não foi diferente: as ações da escola têm sido direcionadas pela Secretaria Municipal de Educação. Assim que foi decretada a quarentena, inicialmente pensávamos ser algo provisório. Duas semanas depois começaram as orientações para a realização de atividades que não tivessem relação com o conteúdo programático para estabelecer o vínculo do aluno com a escola.

As orientações sobre as atividades nunca eram diretas e geravam (ainda geram) uma série de incertezas por parte dos professores, pais e alunos. Um dos questionamentos levantados por nós era sobre o acesso à internet dos estudantes, já que atendemos a comunidades carentes e temos conhecimento de uma grande quantidade de jovens que não têm rede de WiFi ou acesso ao pacote de dados. Isso sem contar com a situação econômica que tem se agravado neste período e provavelmente aumentado a quantidade de alunos excluídos digitalmente.

No entanto, não recebemos nenhum suporte por parte da rede, tão pouco clareza nas informações e orientações. Fomos surpreendidos neste período de isolamento por notícias e notas emitidas pela prefeitura que eram diferentes das orientações e informações que recebíamos internamente. A atividade da Secretaria de Educação é, constantemente, de ataque e assédio à categoria, ameaçando professores com corte no ponto.

A participação dos alunos nas atividades era mínima no início e, hoje, está nula. De uma média de 270 estudantes de 6º a 9º ano para os quais dou aula, eu tinha retorno de cerca de 3 a 5 no início da pandemia. Agora nem esses poucos têm acessado as minhas aulas e as de outros professores. Fui atrás de alunos que tenho contato via redes sociais e as justificativas são inúmeras. Alguns tiveram que trabalhar para ajudar em casa, outros não querem gastar o pouco pacote de dados que têm com tantas atividades escolares, enquanto muitos estão desanimados e dizem que não conseguem aprender sozinhos. Nada é feito em relação a esse problema. A prefeitura tem esses dados e sabe que o acesso tem sido inferior a 5% nas escolas, mas prefere focar nos casos “de sucesso” e invisibilizar tantos alunos e alunas.

Mas o pior de tudo é a sensação de impotência: sentar todos os dias para trabalhar sentindo que aquilo que faço não tem nenhum impacto efetivo sobre os alunos. Não sei quais deles estão se alimentando bem, como estão psicologicamente, se estão tendo acesso a condições básicas de higiene ou se possuem alguma expectativa de voltar à escola. A evasão escolar é uma preocupação constante para nós professores da rede pública. Sabemos que no próximo ano letivo absorveremos uma grande quantidade de estudantes da rede privada e perderemos uma grande quantidade dos nossos alunos mais pobres para o mercado de trabalho.” (*) Nome fictício. A professora pediu para não ser identificada.

Cassira de Almeida acredita na educação como forma de transformação social (Arquivo Pessoal)
Cassira de Almeida acredita na educação como forma de transformação social (Arquivo Pessoal)

Nosso lado psicólogo foi desafiado demais’

Cassira de Almeida, 37, professora de Educação Física há 12 anos, atualmente nas redes municipal e estadual de educação em Goiânia (GO)

“Durante a pandemia, as redes municipal e estadual tiveram atitudes diferentes. A municipal disponibilizou um portal, o Conexão Escola, com diversas aulas que os alunos poderiam acessar, enquanto na estadual as aulas remotas começaram com atividades postadas no blog da escola. Desde o início os professores e os gestores tentaram entrar em contato direto e quase diariamente com pais e estudantes, mas esbarramos em uma realidade que foi escancarada neste período: a falta de inclusão digital por parte da população mais carente.

Com o passar dos meses, a escola e nós professores tentamos amenizar essa desigualdade de acesso às atividades por meio do trabalho em diferentes plataformas, como WhatsApp, Google Classroom e aulas diárias no Google Meet, por exemplo. Porém, não conseguimos alcançar a maioria dos alunos. Outro fato importante a ser relatado é a dificuldade dos professores em lidar com essas tecnologias. Não tivemos preparação e muito menos apoio por parte das Secretarias de Educação, muito pelo contrário, apenas cobranças e mais cobranças.

À medida que os meses foram passando e as aulas não voltaram, a sensação de impotência foi aumentando. Qual a função do professor? Ensinar e fazer com que seus alunos aprendam e isso não ocorreu durante a pandemia, o seja, ensino significativo não foi alcançado. Essa é uma cobrança injusta? Sim, pois não está ao nosso alcance fazer com que isso aconteça, porém, o sentimento é de impotência. Eu acredito no ensino público, acredito na educação como arma contra as desigualdades existentes e isso não está ocorrendo. Essa realidade machuca!

Nesse período de aulas remotas várias histórias de vida foram reveladas. Além da dificuldade no acesso às tecnologias, nossos alunos e professores passaram por situações difíceis. Tivemos casos de violência doméstica, morte por Covid-19 e outras doenças. Então, nosso lado psicólogo foi desafiado demais.

Eu acredito na educação como arma de transformação não só social, mas também humana. Para isso ocorrer no Brasil são necessárias mudanças e investimentos, e estou falando não só na valorização do profissional, mas também no acesso a um espaço digno de aprendizagem, a materiais e tecnologias, à cultura e ao esporte, que são tão necessários e estão sendo retirados das escolas públicas para dar lugar a uma política educacional voltada somente ao mercado de trabalho. Nossos alunos são crianças e adolescentes com sonhos e que têm o direito a um ensino de qualidade.”

Heloisa Aun

Jornalista formada pela Cásper Líbero e estudante de Letras na USP, atua desde o início da carreira com a temática dos direitos humanos e meio ambiente. Nos últimos anos, idealizou campanhas de combate ao assédio sexual e à violência doméstica contra mulheres. Também é voluntária na área de comunicação e de educação em projetos sociais.

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