Alunos do novo ensino médio enfrentam incertezas diante do ‘velho’ Enem

Mudanças na grade curricular retiraram aulas de disciplinas que serão cobradas na principal porta de entrada para o ensino superior do país

Por Micael Olegário | ODS 4 • Publicada em 31 de outubro de 2023 - 10:10 • Atualizada em 20 de novembro de 2023 - 19:47

Ato pela revogação do Novo Ensino Médio em São Paulo: estudantes temem que mudanças na grade curricular com retirada de aulas de disciplinas afetem desempenho no Enem (Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil – 15/03/2023)

Nos dois primeiros domingos de novembro, Hartur de Mattos, 18 anos, vai fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) com o sonho de cursar medicina. No entanto, durante todo o ano, ele praticamente não teve aulas de biologia, física, literatura, sociologia e filosofia – conteúdos que serão cobrados em muitas das 180 questões que compõem a prova do Enem 2023. Hartur estuda na Escola Estadual José Adolfo Meister, em Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul., uma das 300 selecionadas como escolas-piloto do Novo Ensino Médio (NEM) para implementar as mudanças a partir de 2020.

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A instituição é a única de ensino médio da pequena cidade de cerca de cinco mil habitantes – no Brasil, foram 3.500 escolas-piloto. “É preocupante para nós que vamos fazer vestibular, não poder contar com aulas de biologia, física, filosofia e sociologia, pois possuem grande influência na prova do Enem e não temos nada destes tópicos na escola, mas sim apenas itinerários de matemática”, destaca o estudante.  Por conta das dificuldades de estrutura e número de professores, a escola não tem condições de oferecer outros itinerários formativos (conjunto de disciplinas que os estudantes poderiam optar), o que retira completamente a possibilidade de escolha dos alunos, um dos supostos benefícios da reforma do ensino médio, aprovada em 2017 no Brasil.

Nesta reta final para o Enem, me sinto pressionado, tanto por pessoas da família, como pela própria escola. Mas sinto que não estudei o suficiente e, de fato, não estudei, nem a escola contribui para que eu estudasse os principais assuntos

Hartur de Mattos
Estudante

No Rio Grande do Sul, 72% dos municípios contam com apenas uma escola de Ensino Médio. Dados de 2022 do IBGE, mostram que em todo o país, o número de cidades nessa situação é de 2.661, o que equivale a 47% dos municípios brasileiros. Mas não é apenas nesses municípios que estudantes enfrentam dificuldades para se preparar para a prova. João Vítor Gabriel Borges, 18 anos, mora em São Borja, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul e estuda na Escola Estadual Getúlio Vargas, uma das 4 instituições do município selecionadas como escolas-piloto do NEM. “O jeito é estudar por fora, pesquisar e aprender a fazer redação sozinho. É o único jeito que a gente consegue se preparar para o Enem, pois há bastante espaço ocupado por matérias que não são necessárias”, reclama João Vítor.

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No caso da escola de João Vítor, matérias como sociologia, física e biologia foram substituídas por aulas de Responsabilidade Social do Empreendedorismo, Profissões, Gestão e Marketing e Projeto de Vida, conteúdos que, na opinião dele, possuem pouca relevância prática, principalmente com relação ao que é cobrado no Enem. “O projeto de vida é meio como o ensino religioso do ensino fundamental: ensina como podemos ser pessoas melhores, algo que não é necessário, porque na maioria das aulas são textos sobre empatia, amizade. Não que não seja um conteúdo inútil, mas, para nós que estamos no 3° ano, acaba sendo à toa”, comenta o estudante, que pretende fazer faculdade de gastronomia. Segundo João Vítor, o tempo utilizado para essas aulas poderia fazer a diferença na preparação para obter uma vaga no ensino superior. “Era mais importante oferecer matérias que caem no Enem, conteúdos que são mais abordados”, acrescenta.

O impacto da carga horária é evidente. Os estudantes do 3° ano do ensino médio da rede estadual de São Paulo, por exemplo, hoje basicamente não têm aulas das disciplinas. Só atividades toscas vinculadas aos itinerários formativos. O resultado já sabemos qual será

Fernando Cássio
Professor e pesquisador

Durante parte do ano letivo, Hartur estudava pela manhã e trabalhava no período da tarde como jovem aprendiz, restando apenas as noites para estudar para a prova que pode definir seu futuro. A intenção do estudante é tentar uma vaga na Universidade Federal de Santa Maria, mas ele pretende fazer outros vestibulares também. “Nesta reta final para o Enem, me sinto pressionado, tanto por pessoas da família, como pela própria escola. Mas sinto que não estudei o suficiente e, de fato, não estudei, nem a escola contribui para que eu estudasse os principais assuntos”.

Hartur destaca que a proposta do novo ensino médio era aprimorar a educação e dar mais oportunidades aos jovens de escolas públicas, porém, “no fim, quem mais precisa das oportunidades, que o Enem oferece, está mais distante ainda”. As mudanças no ensino médio passaram a valer para todas as escolas em 2022 e deveriam ser acompanhadas de mudanças no Enem, no entanto, um novo modelo para o exame só deve ser aplicado a partir de 2025.

O estudante Hartur de Mattos na sala de aula de sua escola em Caibaté (RS): sem aulas de biologia, física, filosofia e sociologia (Foto: Arquivo Pessoal)
O estudante Hartur de Mattos na sala de aula de sua escola em Caibaté (RS): sem aulas de biologia, física, filosofia e sociologia (Foto: Arquivo Pessoal)

Aulas adaptadas para incluir conteúdos do Enem

Para tentar auxiliar seus alunos a se prepararem para as provas do Enem (marcadas para 5 e 12 de novembro), a professora de biologia da Escola José Adolfo Meister, Angelita Lopes Dahmer, fez alterações nas aulas de Monitoramento Ambiental que ministrou para o terceiro ano. “Conversei com eles e combinamos de trabalhar os conceitos de genética que eles não tiveram em outro ano”. Segundo ela, a intenção dos professores da escola é sempre tentar oferecer conteúdos que os estudantes não têm acesso por conta da carga horária reduzida.

Sobre as transformações feitas na escola desde a implementação do modelo em 2020, ela aponta que os professores tiveram que se adaptar no percurso, muitas vezes diante da falta ou da insuficiência de orientações. “O principal desafio foi que, ao mesmo tempo que tínhamos que ministrar as aulas dos novos componentes, também tínhamos que fazer as formações (que nem sempre nos auxiliaram efetivamente em sala de aula) e dar conta de toda a demanda que a pandemia nos trouxe. Assim como os estudantes que questionavam os novos componentes e o que lhes faltaria para as avaliações como Enem e vestibulares”, relata Angelita.

Ainda de acordo com a professora, que trabalha há 16 anos na escola, conciliar os horários com os outros professores para discutir como trabalhar os novos conteúdos foi outro empecilho, isso porque muitos trabalham em outras escolas também. Sobre as perspectivas para os próximos anos, Angelita manifesta preocupação com o Ensino Médio Gaúcho, que vai substituir o NEM no Rio Grande do Sul a partir de 2024, mas que segue um modelo parecido de percursos formativos para os estudantes do 2° e 3° ano. “Na realidade os estudantes não escolhem individualmente, é por maioria que a proposta é implantada na escola, e ainda dependendo dos recursos humanos disponíveis, esse pode ser um dos motivos que desestimulou alguns estudantes, a propaganda é uma, a realidade é outra”, explica a professora.

A proposta de reformar a reforma é muito insuficiente para garantir que os estudantes da escola pública tenham direito a uma educação básica que lhe garanta uma formação integral baseada nos conhecimentos científicos para a vida, para o Enem e para o mercado de trabalho

Marcia Jacomini
Pedagoga e pesquisadora

No final das contas, os estudantes possuem pouco ou quase nenhuma escolha sobre o que estudar e acabam ficando em desvantagem no momento de disputar vagas em universidades e cursos de graduação. “O que nos preocupa é como serão as oportunidades dos estudantes quando concorrem com estudantes que tiveram acesso a outros percursos, que tenham discutido temas diferentes e que sejam mais contemplados nas avaliações, pois a princípio as avaliações externas não mudam”, alerta Angelita, para quem a redução de componentes tradicionais traz prejuízos para os alunos.

Autor de pesquisas sobre o Novo Ensino Médio, o professor Fernando Cássio, da Universidade Federal do ABC, aponta o contexto de redução nos investimentos em políticas públicas na época da reforma do ensino médio, como um dos responsáveis pela falta de resultados do modelo. “O impacto da carga horária é evidente. Os estudantes do 3° ano do ensino médio da rede estadual de São Paulo, por exemplo, hoje basicamente não têm aulas das disciplinas. Só atividades toscas vinculadas aos itinerários formativos. O resultado já sabemos qual será”, complementa o pesquisador.

Em palestra sobre o tema na Universidade de Brasília (UnB), Fernando Cássio apresentou dados sobre a implementação do NEM em diversos estados. Segundo ele, um elemento que se repete é a adoção de dois ou três itinerários formativos, independente da quantidade de opções disponíveis em cada estado e da escolha dos estudantes. No Rio Grande do Sul, por exemplo, são 24 itinerários formativos, porém, a maioria das escolas não possui estrutura e professores capacitados para oferecer a grande parte deles.

A professora Angelita Dahmer com seus alunos na Escola Estadual José Adolfo Meister: aulas adaptadas para incluir conteúdos do Enem nos itinerários formativos (Foto: Arquivo Pessoal)
A professora Angelita Dahmer com seus alunos na Escola Estadual José Adolfo Meister: aulas adaptadas para incluir conteúdos do Enem nos itinerários formativos (Foto: Arquivo Pessoal)

Qual o futuro do Novo Ensino Médio?

No início do ano, o governo federal chegou a anunciar que iria revogar o Novo Ensino Médio, depois voltou atrás e criou uma consulta pública para discutir mudanças no modelo. Na época, o presidente Lula afirmou que não adiantava revogar o NEM, “sem ter nada para colocar no lugar”. Em agosto, o governo divulgou os resultados da consulta.

Nesta terça-feira, 24 de outubro, o governo federal enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei com as alterações do ensino médio a serem incluídas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Entre as principais mudanças estão o aumento da carga horária da chamada Formação Geral Básica (FGB), ou seja, dos componentes curriculares obrigatórios antes da implementação do NEM; reduções dos itinerários formativos e definições mais precisas sobre eles, incluindo uma revisão na proposta pedagógica do Projeto de Vida; alterações no Enem para incluir os itinerários formativos no exame; reorganização nos modelos dos cursos de licenciatura para formação interdisciplinar de professores e gestores

Outros temas como permanência de alunos, políticas de educação inclusiva e investimentos em estrutura para as escolas, também fizeram parte dos debates. Em relação ao principal ponto deles – as disciplinas obrigatórias – a proposta do Ministério da Educação (MEC) é “recompor a carga horária destinada à Formação Geral Básica (FGB) para 2.400 horas, podendo haver exceção na oferta de cursos técnicos (de 800 e 1000 horas), fixando, nesse caso, um mínimo de 2.200 horas de FGB”, afirma o documento do MEC. Além disso, componentes como espanhol, arte, educação física, literatura, história, sociologia, filosofia, geografia, química, física, biologia e educação digital passariam a ser obrigatórios nos currículos escolares.

Doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a pedagoga e pesquisadora Márcia Jacomini também critica a propaganda feita em torno do modelo, que gerou entusiasmo em alguns estudantes pela possibilidade de escolher o que estudar. “Agora os estudantes percebem que não estão preparados para fazer o Enem. Aqueles que querem muito estão buscando outras formas de se preparar para além da escola. Não é raro ouvir estudantes informarem o professor que não irão à escola nos dias que só tem aulas de itinerários porque não estão aprendendo nada com eles, além de serem desinteressantes; eles preferem ficar em casa e estudar sozinhos”, relata a professora, descrevendo a situação que é vivenciada por jovens como Hartur e João Vítor.

De acordo com Márcia Jacomini, também coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Política Educacional e Gestão Escolar da Unifesp, as alterações feitas pelo governo no projeto enviado ao Congresso são positivas por aumentar a carga horária de base comum, no entanto, em termos de qualidade da educação pública, a iniciativa deixa a desejar. “A proposta de reformar a reforma é muito insuficiente para garantir que os estudantes da escola pública tenham direito a uma educação básica que lhe garanta uma formação integral baseada nos conhecimentos científicos para a vida, para o Enem e para o mercado de trabalho”, afirma Jacomini.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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