Educação em crise: universidade gaúcha fecha cursos de pós-graduação

Protesto na Unisinos após anúncio do fechamento dos cursos de pós-graduação: professores demitidos e pesquisas interrompidas (Foto: Vanessa Ruffatto)

Tradicional instituição privada, Unisinos acaba com 12 PPGs e leva incerteza a professores e estudantes; instituições particulares sofrem com evasão desde a pandemia

Por Micael Olegário | ODS 4 • Publicada em 6 de setembro de 2023 - 10:43 • Atualizada em 21 de novembro de 2023 - 19:29

Protesto na Unisinos após anúncio do fechamento dos cursos de pós-graduação: professores demitidos e pesquisas interrompidas (Foto: Vanessa Ruffatto)

“Temos a impressão de estarmos esquecidos, como se quisessem apagar nossa existência”, conta Vanessa Ruffatto, doutoranda de Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). No início do ano ela quase perdeu uma bolsa de doutorado sanduíche da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) por conta da situação do seu programa de pós-graduação, um dos doze encerrados pela universidade gaúcha. “Nas semanas finais do prazo de candidatura foi lançada uma retificação dizendo que os descontinuados não poderiam seguir. Consegui correr atrás, em uma pressão tremenda, e concluir minha candidatura a duras custas, mas não tive mais tempo hábil de ir para a Universidade que desejava de início no exterior”.

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O drama de Vanessa é compartilhado por outros estudantes e também pelos professores da Unisinos, sediada em São Leopoldo, região metropolitana de Porto Alegre, desde que a instituição anunciar a decisão de encerrar 12 dos seus 26 programas de pós-graduação no ano passado. A universidade, que demitiu 40 professores, alegou dificuldades financeiras decorrentes da crise econômica, da perda de financiamento público e da pandemia de Covid-19.

Os professores dos PPGs passaram a ser considerados dispensáveis, alguns já foram demitidos, outros tiveram horas reduzidas ou correm riscos. De forma velada, estão incentivando os professores a sair de seus PPGs, a procurar outro lugar para fazer pesquisa ou seguir suas vidas

Tiago Segabinazzi
Doutorando em Comunicação

No total, 712 acadêmicos foram afetados diretamente pela medida, que terminou com os processos seletivos para ingresso de novos discentes. Atualmente, as atividades dos 12 PPGs seguem até a entrega das últimas teses e dissertações pelos estudantes, o que deve ocorrer até o final de 2024. “Vemos muitos estudantes desmotivados com a situação, inseguros quanto ao que pode acontecer”, afirma uma das professoras da Unisinos que prefere não se identificar.

De acordo com a docente, após o encerramento dos cursos, as condições de trabalho também foram precarizadas e os professores têm cada vez menos horas de aula e perspectivas quanto às pesquisas em andamento. “Há PPGs em que os estudantes sinalizam a falta de oferta de disciplinas que antes eram dadas, o que prejudica sua formação”, acrescenta. Os programas encerrados foram Arquitetura, Biologia, Ciências Contábeis, Ciências Sociais, Comunicação, Economia, Enfermagem, Engenharia Mecânica, Geologia, História, Linguística Aplicada e Psicologia.

Bolsista da Capes e doutorando do programa de pós-graduação em Comunicação (PPGCOM), da Unisinos, Tiago Segabinazzi lamenta a situação principalmente dos professores, que estão sendo obrigados a buscar alternativas diante do encerramento dos programas. “Os professores dos PPGs passaram a ser considerados dispensáveis, alguns já foram demitidos, outros tiveram horas reduzidas ou correm riscos. De forma velada, estão incentivando os professores a sair de seus PPGs, a procurar outro lugar para fazer pesquisa ou seguir suas vidas”.

Protesto de estudantes após anúncio de encerramento de 12 programas de pós-graduação: Unisinos culpa crise econômica e perda de financiamento público (Foto: Vanessa Ruffatto)
Protesto de estudantes após anúncio de encerramento de 12 programas de pós-graduação: Unisinos culpa crise econômica e perda de financiamento público (Foto: Vanessa Ruffatto)

Crise em universidade privadas e comunitárias

Outra tradicional instituição gaúcha de ensino comunitária, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) também enfrenta dificuldades e chegou a fazer demissões de professores, além de encerrar o programa de Mestrado e Doutorado em Serviço Social. O pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da PUCRS, Carlos Eduardo Lobo Silva, apontou os cortes em áreas como ciência e tecnologia como parte da explicação da crise na pós-graduação comunitária. “O que vemos hoje é um cenário muito ruim, muito difícil. Temos que ter responsabilidade de fazer uma gestão sustentável”, afirmou Carlos Eduardo durante a audiência. Ainda de acordo com o pró-reitor, entre 2014 a 2021 houve uma redução de 50% no número de alunos nos cursos de graduação da PUCRS. Nas universidades comunitárias, a redução de alunos no curso de Serviço Social caiu de 1575 estudantes para 314 no mesmo intervalo de sete anos.

Situação parecida vive o mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, dona do mais antigo curso de jornalismo do país. No final do ano passado, a instituição demitiu diversos professores e deixou estudantes em um cenário de incerteza. “Estamos indignados e no escuro. As pesquisas são muito específicas, não é fácil encontrar uma faculdade que nos aceite”, relatou na época a representante dos alunos do mestrado, Alessandra Cristina Guimarães, em entrevista a Rodrigo Ratier do Portal Uol.

Perdemos professoras renomadas internacionalmente e, com isso, suas pesquisas. Alguns colegas saíram porque haviam perdido suas orientadoras, inclusive pessoas que estavam quase defendendo sua dissertação ou tese

Vanessa Ruffatto
Doutoranda em Psicologia

De acordo com o vice-presidente do Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinepe-RS), Bruno Eizerik, o quadro financeiro das instituições privadas já vivia situação delicada antes mesmo da pandemia. “Se nós vivemos uma crise econômica no país, o setor educacional de ensino superior também é afetado. Além disso, tivemos a partir do governo Dilma, passando pelos governos Temer e Bolsonaro, uma desaceleração na concessão de financiamentos estudantis”, aponta Eizerik, que também é presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep).

O dirigente da Fenep e do Sinepe-RS lembra que a maioria dos estudantes de instituições privadas de ensino superior tem de trabalhar para se sustentar e pagar as matrículas, dependendo de bolsas estudantis. Bruno Eizerik afirma que, com a pandemia e a necessidade de estudar em casa, os cursos à distância também cresceram, trazendo outro elemento de impacto na redução das matrículas de universidades privadas e comunitárias tradicionais, como a Unisinos, a PUCRS, a Cásper Líbero e outras ao redor do país.

Professores dispensados e pesquisas ameaçadas

Tiago Segabinazzi lembra que o PPGCOM, um dos afetados pela “descontinuidade” dos programas, possui nota máxima (7) nas avaliações da Capes, sendo uma das referências nacionais e internacionais na área. “Só há três PPGs de Comunicação em todo o Brasil com essa nota e, ainda assim, o da Unisinos está sendo fechado. Há outros cursos com notas 6 e 5 na mesma situação”.

O doutorando também questiona a forma como a decisão foi tomada e a escolha dos programas encerrados. “Essa decisão de fechamento nunca foi explicada aos alunos e aos professores, a não ser pela justificativa financeira – uma justificativa que não se sustenta, afinal, muitos PPGs deficitários foram mantidos, enquanto outros foram fechados”, complementa o jornalista Segabinazzi, que mora em Lajeado, no interior do Rio Grande do Sul.

não está sendo nada fácil para os professores, tudo é bem triste, pois se trata de fonte de trabalho e de uma história de vida que se altera de um dia para outro

Carlos Alfredo Gadea Castro
Professor dos programas de pós-graduação em Ciências Sociais e Educação da Unisinos

Fundada em 1969, a Unisinos é mantida pela Associação Antônio Vieira (Asav), entidade sem fins lucrativos ligada à Companhia de Jesus. Além da universidade gaúcha, a Asav mantém 20 unidades em diferentes estados do país, divididas em instituições de ensino e assistência social. Ao longo dos seus mais de 50 anos, a Unisinos já formou 96 mil alunos em cursos de graduação e pós-graduação.

O Parque Tecnológico de São Leopoldo, batizado de Tecnosinos, possui 20 anos de existência e já ajudou a criar mais de 100 empresas, além de gerar cerca de 8 mil empregos diretos, segundo informações da própria Unisinos. Nada disso, nem as avaliações elevadas dos PPGs, impediu a decisão da instituição de encerrar as atividades dos 12 programas. “Da parte dos alunos e dos professores é notável que há um clima de tristeza e luto que não se apazigua”, desabafa Vanessa Ruffatto.

Vou terminar a dissertação, mas está um clima de despedida, de quem sair por último desliga a luz

Gabriel Pujol
Mestrando em Comunicação

Por conta da saída de alguns professores, pesquisas tiveram que se adaptar e outras não puderam ser realizadas. “Perdemos professoras renomadas internacionalmente e, com isso, suas pesquisas. Alguns colegas saíram porque haviam perdido suas orientadoras, inclusive pessoas que estavam quase defendendo sua dissertação ou tese”, relata Vanessa Ruffatto, que é mestre em Psicologia Clínica e também bolsista da Capes.

“Temos uma constante sensação de medo entre os alunos, até quando vamos ter nosso orientador? Será possível que se executem as pesquisas que pretendemos? Conseguiremos defender nossas teses? Seremos nós a ‘fechar a cortina’ e encerrar o PPG?”, questiona a doutoranda. No início do ano, quando Vanessa concorreu à bolsa de doutorado sanduíche, a Unisinos inicialmente informou que ela não poderia participar, mas, depois de protestos, a instituição voltou atrás, alegando um erro de comunicação.

Protesto na Unisinos contra extinção de 12 programas de pós-graduação: clima de incerteza entre estudantes e professores (Foto: Vanessa Ruffatto)
Protesto na Unisinos contra extinção de 12 programas de pós-graduação: clima de incerteza entre estudantes e professores (Foto: Vanessa Ruffatto)

Clima de despedida

Mestrando no PPGCOM da Unisinos, Gabriel Pujol também sente o clima de insegurança que afeta estudantes e professores. “As bolsas permanecem até o fim, mas o clima está estranho. Vemos que a Unisinos não vai se mexer”. Com a ausência de novas turmas, deixaram de existir componentes obrigatórios e os professores trabalham por horas a mais. “Vou terminar a dissertação, mas está um clima de despedida, de quem sair por último desliga a luz”, comenta Gabriel, que não vê mais chance da decisão ser revertida.

Professor dos programas de pós-graduação em Ciências Sociais e Educação da Unisinos, Carlos Alfredo Gadea Castro, destaca que a tarefa atual é terminar os programas sem alterar a qualidade acadêmica. “Pessoalmente, sou dos professores que já estava ‘compartilhado’ com outro PPG; no meu caso, sou originário do PPG Ciências Sociais, que foi encerrado, mas compartilhado com o de Educação, que continua”, explica o professor, que atua há 18 anos na universidade.

Temos que fazer uma reinvenção do ensino superior. Vivemos uma situação de acomodação, talvez tenhamos mais instituições fechando ou diminuindo seu número

Bruno Eizerik
Presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares

Segundo Castro, a Unisinos tem se mostrado receptiva, realizando reuniões para fazer ajustes de carga horária e encaminhando o encerramento dos programas. Mesmo assim, o docente acrescenta que, “não está sendo nada fácil para os professores, tudo é bem triste, pois se trata de fonte de trabalho e de uma história de vida que se altera de um dia para outro”. O professor também destaca que os estudantes sentiram bastante a decisão, justamente pelo fator surpresa em que foi divulgada.

De acordo com Tiago Segabinazzi, a ideia da instituição de transferir alguns professores para programas não foi efetiva para todos. “Uma aluna do PPG de Biologia veio do interior de São Paulo para ser orientada exatamente por uma professora da Unisinos. A professora foi demitida e a estudante teve que fazer a disciplina de Estatística, que ela ministrava, no curso de computação. O aproveitamento foi de menos de 50% da matéria”, relata ele.

Outra das questões que seguem em aberto diante do encerramento dos programas é o que será feito com os equipamentos e a estrutura da instituição. “Alunos do PPG de Geologia, um dos fechados, disseram que o curso recebe verbas de empresas como a Petrobrás e que, na semana passada, recebeu um equipamento de R$1,8 milhão. Não se sabe o que acontecerá com esse equipamento”, aponta Segabinazzi, que também levanta o questionamento sobre os outros patrimônios acumulados pela Unisinos através das pesquisas dos 12 PPGs encerrados. “O destino dos materiais de pesquisa são um mistério: o que acontecerá com os artefatos que a história trabalha? Com os laboratórios da Biologia, que tem uma base de pesquisas na Antártida?”

Diálogo com a Capes

Representantes da Capes estiveram na Unisinos para uma diligência com o objetivo de averiguar o fechamento dos 12 PPGs. De acordo com Tiago como Vanessa Ruffato, a forma como a Unisinos tomou a decisão surpreendeu até os avaliadores do Ministério da Educação. “Foi assustador quando nos disseram que nunca antes um caso assim tinha sido visto no Brasil, de uma universidade fechar em massa PPGs de excelência, inclusive sendo uma instituição que se diz comunitária”, afirma a doutoranda, acrescentando que, em nenhum momento a instituição deu algum indício de tentativa de reverter a situação.

Tiago Segabinazzi acrescenta que as reuniões mostraram que existiam caminhos que a Unisinos poderia ter seguido antes de tomar a decisão. “Na reunião com a Capes, disseram que havia possibilidade de cancelar o fechamento do curso que quisesse. Mas não sabíamos disso, não nos informaram isso. A Capes disse que recebeu um pedido de ‘fusão’ de alguns PPGs e o fechamento de algum, então eles orientaram como fazer. No contato seguinte (da Unisinos) chegou um ofício pedindo para fechar 12 de uma vez”, conta o doutorando.

Os dois pós-graduandos pretendem terminar o doutorado e acreditam que através das pesquisas podem ajudar a transformar o contexto socioeconômico brasileiro, ainda assim, a decisão veio como um banho de água fria em seus planos. “Um país que abre mão de pensar criticamente está em perigo de ser dominado por tiranias contemporâneas de diversas formas: em empregos precários, nas diversas formas de preconceito a minorias, na devastação do meio ambiente, na desigualdade social”, afirma Segabinazzi. “Os saberes produzidos aqui, inclusive os saberes tradicionais e ancestrais, estão sendo perdidos e isso pode ser até mesmo definitivo”, lamenta.

Vanessa Ruffato, que além de pesquisar, deseja ser professora de Psicologia, vê com temor o cenário que se desenha para sua futura profissão. “Levo muito a sério a formação de profissionais e me vejo atuando nisto apesar das intempéries. Porém, todos os dias são bastante desafiadores”. A falta de investimento, fechamentos de programas e os relatos de adoecimento mental de professores e pesquisadores são alguns dos desafios que ela terá de enfrentar. “Tenho esperanças, mas também muita agonia”, afirma.

De acordo com o professor Castro, atualmente não existem mais chances de reversão da decisão. “A Unisinos tomou uma decisão que considerou irreversível, somando fatores de sustentabilidade financeira e de organização interna da universidade. Acredito que esse diálogo já não se produz mais”. Procurada, a Unisinos não respondeu aos questionamentos sobre a situação dos programas de pós-graduação feitos para a reportagem. Em nota divulgada na época, a Unisinos afirmou que: “o contexto do ensino superior brasileiro mudou radicalmente ao longo dos últimos anos. Houve significativa redução do número de matrículas, resultado da crise econômica do país, da redução expressiva de financiamento público para o ensino superior e da pandemia”.

Sobre o caminho para a crise na educação superior brasileira, Bruno Eizerik destaca a necessidade das instituições flexibilizarem seus currículos com oferta de componentes on-line e híbridos. “Temos que fazer uma reinvenção do ensino superior. Vivemos uma situação de acomodação, talvez tenhamos mais instituições fechando ou diminuindo seu número”. Ainda segundo o presidente da Fenep, o governo federal deveria propor uma nova modalidade de financiamento estudantil a “fundo perdido”, com a compensação através da prestação de serviços à comunidade pelos estudantes. “Acima de tudo, precisamos da recuperação econômica do país, porque ela vai significar mais renda e pessoas podendo ingressar no ensino superior”, acrescenta Eizerik.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Escreve sobre temas ligados a questões ambientais e sociais, educação e acessibilidade.

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