A deportação que custou muito caro

Físicos europeus posam para a foto junto com Adlène Hicheur (de gorro no centro) durante o evento do último dia 13 de dezembro. Foto de amigos

Físicos europeus se despedem de Adlène Hicheur, que trocou a França pela Argélia

Por Florência Costa | ODS 4 • Publicada em 19 de dezembro de 2016 - 10:43 • Atualizada em 21 de dezembro de 2016 - 11:59

Físicos europeus posam para a foto junto com Adlène Hicheur (de gorro no centro) durante o evento do último dia 13 de dezembro. Foto de amigos
Físicos europeus posam para a foto junto com Adlène Hicheur (de gorro ao centro) durante o evento, em Vienne, no último dia 13 de dezembro. Foto de amigos
Físicos europeus posam para a foto junto com Adlène Hicheur (de gorro ao centro) durante o evento, em Vienne, no último dia 13 de dezembro. Foto de amigos

Em um auditório de uma Escola de Negócios da cidade de Vienne (França), trinta físicos acompanhavam, na quarta-feira 13, o argelino Adlène Hicheur relatar seu trabalho sobre as propriedades da partícula subatômica Bc meson. O que era para ser um evento científico se transformou em uma despedida. O cientista, que foi “deportado” do Brasil em julho, voltou para a Argélia no domingo após cinco meses de prisão domiciliar na França. Ele desembarcou em Sétif, no Nordeste da Argélia, onde nasceu há 40 anos e onde vivem seus familiares.

Levaram algumas horas para destruir minha vida. Mas demora uma eternidade para eu conseguir recuperar meus direitos.

A maior parte da audiência era de pesquisadores do LHC (Grande Colisor de Hádrons, o maior acelerador de partículas do mundo) do CERN (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear), localizado entre a Suíça e a França. Outros 15 cientistas acompanhavam o Worshop “Física do Bc e decaimentos semileptônicos do B na era do LHC” por vídeo, do Rio de Janeiro (em uma sala do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas), dos Estados Unidos e da China.

Durante a prisão domiciliar, Adlène Hicheur não conseguia sair de Vienne para participar de nenhum evento internacional de Física. Por isso, o worshop foi até ele em uma ação que mesclou ciência e solidariedade. “Organizamos este workshop para dar apoio a Adlène”, explicou o italiano Vincenzo Vagnoni, coordenador de Física do experimento LHCb e pesquisador do Instituto Nacional de Física Nuclear (Bolonha), como reportou o jornalista Declan Butler, da Nature, a revista científica mais prestigiada do mundo.

O britânico John Ellis, um dos maiores físicos teóricos do mundo, do King’s College London. Foto Wikipedia
O britânico John Ellis, um dos maiores físicos teóricos do mundo, do King’s College London. Foto Wikipedia

De tarde, naquela quarta-feira, os físicos fizeram um intervalo forçado: Hicheur foi à polícia para assinar um livro de presença. Durante cinco meses Hicheur percorreu 12 km de bicicleta diariamente, de sua casa até a delegacia de Vienne, três vezes por dia. Um castigo ao qual muitos outros muçulmanos estão submetidos como consequência do Estado de Emergência no país. Naquela quarta, todos os cientistas o acompanharam, para surpresa dos policiais. O pesquisador argelino foi condenado na França, em 2012, por associação com terrorismo com base em chats na internet. O julgamento foi polêmico, criticado por cientistas que apontaram evidências fracas para a condenação. Ele foi imediatamente libertado, sem dever mais nada à Justiça.

O novo governo do Brasil, que sabemos passar por muita turbulência política, o expulsou de forma totalmente ilegal. O Brasil o forçou a voltar à França embora ele desejasse ir para a Argélia.

Hicheur vivia no Brasil desde 2013: trabalhou como pesquisador no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e como professor do Instituto de Física da UFRJ. No dia 15 de julho deste ano foi obrigado pelo governo brasileiro a voltar para a França. A “deportação”, às vésperas das Olimpíadas, partiu de uma ordem do ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, sem que Hicheur tivesse cometido nenhum ato irregular e sem direito à defesa. Ele não teve o direito, sequer, de escolher seu destino, como acontece nas deportações: sua intenção era ir para a Argélia, mas foi ignorado.

Ronald Shellard, diretor do CBPF, foi um dos brasileiros que participou por vídeo do workshop de Vienne: “Espero que o Brasil, como um país democrático, reverta essa decisão e possibilite a sua volta para que Hicheur possa trabalhar aqui novamente”. Shellard disse que conversou com o ministro da Ciência, Gilberto Kassab. “O ministro manifestou interesse no caso”, contou.

Em outubro, ele pediu para perder a nacionalidade francesa, adquirida aos 23 anos de idade (seus pais o trouxeram para a França quando ele tinha 1 ano de idade). A aceitação foi comunicada a ele no dia 30 de novembro e a partir daí ele passou a arrumar suas coisas para deixar a França e voltar para a Argélia. Foi a única solução que ele encontrou para o problema da prisão domiciliar, que se baseou na “deportação” brasileira e se transformou em uma espiral kafkiana.

“A França usou a deportação para me prejudicar e para me manter em prisão domiciliar sem nenhuma razão”, protestou o cientista. Essa atitude do ministro da Justiça do Brasil teve consequências gravíssimas”, protestou. “Uma coisa é não ser bem-vindo, outra é destruir a vida de uma pessoa. Não houve nenhuma consideração pelo meu trabalho árduo no país”, lamentou. Na época da “deportação” o ministro admitiu à imprensa que o cientista não havia cometido nenhum crime.

Em meados de outubro o físico enviou à embaixada brasileira em Paris uma carta solicitando ao governo brasileiro que reconhecesse oficialmente que ele não cometera nenhum erro no país. “A embaixada me informou que a carta foi enviada para Brasília”, disse ele. A reportagem do #Colabora telefonou e enviou um email para a assessoria de imprensa do Ministério das Relações Exteriores, mas não obteve resposta.

“O novo governo do Brasil, que sabemos passar por muita turbulência política, o expulsou de forma totalmente ilegal. O Brasil o forçou a voltar à França embora ele desejasse ir para a Argélia”, criticou o britânico John Ellis, um dos maiores físicos teóricos do mundo, do King’s College London. “Espero que o governo ou a Justiça brasileira reconheça o erro cometido no caso de Adlène e o deixe entrar de novo no país. Mas sabemos que no Brasil temos um novo governo de direita que quer mostrar sua postura dura contra o terrorismo e toda essa besteira usual”, opinou Ellis.

A perda da nacionalidade francesa e a mudança para a Argélia lhe custará um preço alto porque lá será difícil para ele trabalhar em um grupo de Física de Altas Energias como poderia fazer na Europa ou na América Latina. Hicheur havia sido convidado para o Simpósio Latino-americano de Física de Altas Energias, na Guatemala, em novembro, mas como estava em prisão domiciliar na França não pode comparecer. Os organizadores não se conformaram e conseguiram que ele desse a sua palestra por vídeo-conferência, no dia 17 de novembro, antecedida por uma declaração pública de apoio de John Ellis.

Cientistas europeus acompanham Hicheur até a delegacia onde ele precisa assinar, três vezes por dia, um livro de presença. Foto de amigos
Cientistas europeus acompanham Hicheur até a delegacia onde ele precisa assinar, três vezes por dia, um livro de presença. Foto de amigos

Em uma entrevista por skype antes da exposição de Hicheur, John Ellis explicou seu empenho em favor do argelino: “A Ciência é internacional. A Política não deve interferir. Estou extremamente triste pelo fato de que a política impediu Adlène de participar da conferência”. A prisão domiciliar na França durante estes últimos cinco meses foi política, na opinião do físico britânico.

“Adlène foi particularmente atingido porque trabalha com física de partículas e algumas pessoas pensam que é como física nuclear, acham perigoso. Isso é uma besteira. Física de particulas procura entender a natureza fundamental do universo, não está interessada em aplicações militares. Este não é o caso do Adlène. Ele não é perigoso.  A França errou, o manteve preso e depois realizou um julgamento sem sentido. Adlène já pagou o preço que o governo francês queria que ele pagasse. E o puniram novamente colocando-o em prisão domiciliar por um crime não cometido”, disse Ellis.

Segundo o advogado de Hicheur no Brasil, Gustavo Berner, a “deportação” não respeitou os procedimentos administrativos ou judiciais previstos em lei. Em novembro foi protocolado processo administrativo no Ministério da Justiça para obter a documentação sobre o caso. Até agora, a defesa de Hicheur não obteve resposta. Será proposta ação judicial para anular os atos administrativos que impulsionaram a retirada forçada do professor do Brasil. O objetivo é garantir o seu direito de retornar, caso queira, para dar continuidade ao seu trabalho.

O advogado explicou que foram expedidas certidões de “nada consta” a respeito de Hicheur: não há em trâmite na Justiça brasileira qualquer ação de natureza cível ou criminal.  “Levaram algumas horas para destruir minha vida. Mas demora uma eternidade para eu conseguir recuperar meus direitos”, lamentou o físico argelino.

Florência Costa

Jornalista freelance especializada em cobertura internacional e política. Foi correspondente na Rússia do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia e foi correspondente do jornal O Globo. É autora do livro "Os indianos" (Editora Contexto) e colaboradora, no Brasil, do website The Wire, com sede na Índia (https://thewire.in/).

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