‘A universidade é historicamente vista como elite, mas temos de quebrar isso’

Luanda Moraes: “Meu projeto de vida sempre foi a inclusão, o desenvolvimento social de pessoas. Foto de Paulo Vítor/Divulgação

Primeira reitora negra de uma instituição pública de ensino superior no Rio, a engenheira química Luanda Moraes defende as cotas, lembra seu encontro com o racismo, pede mais inclusão e aposta na ligação com a comunidade

Por Claudia Silva Jacobs | ODS 10ODS 4 • Publicada em 20 de novembro de 2020 - 07:47 • Atualizada em 23 de janeiro de 2023 - 13:25

Luanda Moraes: “Meu projeto de vida sempre foi a inclusão, o desenvolvimento social de pessoas. Foto de Paulo Vítor/Divulgação

Um dos sonhos de Luanda de Moraes é ver funcionando o primeiro carro elétrico com tecnologia brasileira, desenvolvido nas universidades e centros pesquisa. Engenheira Química, doutora em Ciência e Tecnologia em Polímeros, ela acredita que o incentivo às pesquisas seja uma robusta alternativa para eliminar o uso de combustíveis fósseis. “Quero muito desenvolver uma célula a combustível para transformar esgoto, rico em materiais orgânicos, em energia. Mas é preciso investir em pesquisas”, explica a carioca de Rocha Miranda.

O sonho de Luanda é apenas parte do projeto que ela traçou como missão de vida. Aos 43 anos, filha da rede pública, vai se tornar em fevereiro a primeira mulher negra a assumir a gestão de uma instituição estadual de ensino superior do Rio. A próxima reitora da Uezo, a Universidade Estadual da Zona Oeste, em Campo Grande, carrega a bandeira da inclusão em diferentes aspectos – da igualdade dos direitos dos servidores em relação a outras unidades públicas de ensino, à urgência de transformar o espaço do campus em uma plataforma eficiente do desenvolvimento da região, a de menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da cidade.

“Precisamos fazer inclusão, desenvolvimento social e uma universidade para o povo. A universidade é historicamente vista como elite, mas temos de quebrar isso”, defende a atual vice-reitora, que ainda divide o tempo orientando alunos de graduação e pós-graduação em pesquisas sobre energia renovável, sua grande paixão. As ações afirmativas, entre elas o programa de cotas nas universidades públicas, são consideradas essenciais no processo de diminuição das desigualdades, que Luanda considera ainda muito lento, muito distante do aceitável. “Está longe de se chegar à igualdade”, constata.

A Uezo está fazendo 15 anos, mas ainda não é uma universidade consolidada. Criada como braço da Faetec, passou a ter CNPJ próprio em 2009. Mesmo assim, não possui sede própria e os funcionários não são incluídos em vários benefícios, oferecidos aos profissionais que atuam em outras universidades do estado, como adicional de insalubridade e plano de carreira. A consolidação da Uezo, que tem cerca de 1.800 alunos, como referência na região é uma de suas bandeiras. “Fui eleita para a próxima gestão, de 2021 a 2025, juntamente com o professor Dario Nepomuceno, também um homem negro, com a grande missão, de estabelecer a Uezo como a Universidade Estadual da Zona Oeste, onde seus servidores sejam respeitados e a população se sinta representada”.

Abaixo, mais um pouco da boa conversa de Luanda de Moraes com o #Colabora.

#Colabora – A senhora é atualmente vice-reitora, pensava nessa vertente de gestora pública?

Assumir a vice-reitoria não era meu projeto de vida, que sempre foi a inclusão, o desenvolvimento social de pessoas, mas acaba que você vai sendo levada para isso. O processo de eleição é através de voto, para um período de 4 anos. Era presidente da Aduezo, a associação de docentes, fui solicitada e acabei entrando na capa como vice-reitora, e futuramente no comando da reitoria.

Procuro fazer um ambiente mais acolhedor. Isso é fundamental em uma universidade na qual 52% de alunos se identificam como pretos e pardos, em uma região como a Zona Oeste

#Colabora – A senhora fala de inclusão do corpo docente, como explicar essas diferenças?

O nosso projeto é voltado para o desenvolvimento da universidade. Todo esse período, desde a criação, foi marcado por certa negligência  governamental em relação à Uezo, em relação a alguns fatores fundamentais. Não temos dedicação exclusiva para os docentes, por exemplo, não temos plano de carreira ou progressão funcional como nossas coirmãs. Quando nos emancipamos em 2009, a expectativa era que o CNPJ chegaria acompanhado com a consolidação de todas as autonomias – administrativa, pedagógica -, mas isso ocorre apenas em algumas ações.

#Colabora – A senhora acredita que o fato de ser uma gestora negra aproxima mais os alunos do comando?

Parece que se sentem mais representados, se sentem mais próximos. Posso tirar por mim. Por onde passei, não conheci o meu reitor. Pelo fato de estarmos mais próximos deles, o fato de termos essa cor, acredito que eles pensam “eu posso chegar nela, posso chegar mais próximo dela”. A proximidade na Uezo é facilitada por nós. Procuro fazer um ambiente mais acolhedor. Isso é fundamental em uma universidade na qual 52% de alunos se identificam como pretos e pardos, em uma região como a Zona Oeste.

#Colabora – Como é sua relação hoje com os alunos?

O contato precisa ser humanizado. Os alunos precisam ter como expor suas demandas. Temos relação muito boa com o DCE. Na nossa atividade da Semana da Consciência Negra, por exemplo, os alunos participaram ativamente. Dentro da equipe temos três representantes dos estudantes, que fazem parte de toda a construção das nossas atividades. Tenho plena consciência do que isso significa como um todo. Quando os alunos negros vêm me agradecer pela representatividade, isso reforça a minha missão de seguir em frente.

#Colabora – A senhora sente avanços no campo da inclusão racial, um espaço maior para as pessoas de baixa renda?

Sinto sim, mas é ainda lento. Ano passado, na Semana da Consciência Negra, que eu coordeno, fiz uma mesa só de reitores negros, de juízes negros, promotores negros, outra só de professores/pesquisadores negros, foi muito positivo, olha que avanço, mas o Brasil é lento nessa quebra do racismo estrutural.

#Colabora – A senhora é uma pessoa negra que vem de uma realidade diferente da maioria dos alunos ainda hoje. Seu pai e seus irmãos cursaram universidade. A realidade atual ainda é de uma primeira geração chegando ao ensino superior entre seus alunos?

Essa estatística é difícil afirmar, mas considerando a localização, posso arriscar que ainda tem um grande número de primeira geração de universitários. Não tenho números, mas posso te dizer, através do retorno nas colações de grau, o auditório é pretinho, bem moreninho. Eles vêm até a gente e dizem: muito obrigada. Como é uma região de baixo IDH, com média salarial em torno de um salário mínimo, há um número menor de pessoas com nível superior.

O racismo é estrutural. Eu lembro que todo fim de aula a diretora ia na sala escolher o aluno mais limpinho. Eu tinha uma colega loura de olhos azuis. Ela sempre ganhava e eu não entendia, porque era sempre ela

#Colabora – Podemos vislumbrar uma universidade sem a política de cotas?

Não, ainda é muito prematuro, estamos muito longe da igualdade. As ações afirmativas vêm dando super certo, mas ainda é muito jovem o projeto de inclusão dos excluídos. Não se pode achar que estou aqui só porque sou esforçada. Isso sempre fui, e sou, mas não quer dizer que a pessoa que não faz universidade, que não consegue estudar, é porque não faz esforço. Faltam oportunidades.

#Colabora – A senhora fala sobre a relação estreita entre a universidade e a região onde ela está. Na Uezo esse protagonismo é ainda maior?

Precisamos dar conta do desenvolvimento social em Campo Grande. Essa necessidade de se integrar com a região aqui é muito forte. Temos que fazer inclusão, desenvolvimento social e uma universidade para o povo. A universidade é historicamente vista como elite, mas precisamos quebrar isso. O programa das ações afirmativas é um passo.

#Colabora – Como foi foi estudar na Europa em uma época difícil de conseguir bolsa?

Fiz um doutorado sanduíche (quando o aluno consegue mesclar seus estudos com uma universidade do exterior) em Milão, na Itália. Fui em 2008, em um momento em que ainda não era muito comum conseguir um curso com fomento.

#Colabora – O racismo faz parte de sua vida?

Fácil para mim nunca foi. A gente aprendeu a lutar, sempre foi difícil, essa veia de luta faz parte, não pode ter medo de enfrentar. Quando criança, sempre em escola pública, no subúrbio, o racismo também existe, é estrutural. Eu lembro que todo fim de aula a diretora ia na sala escolher o aluno mais limpinho. Eu tinha uma colega loura de olhos azuis. Ela sempre ganhava e eu não entendia, porque era sempre ela. Minha mãe dizia que com nove meses eu já sinalizava quando queria fazer minhas necessidades fisiológicas. Sempre usei cabelo black. Meus pais sempre nos mostraram esse caminho. Tinha uma outra colega que ia de rabo de cavalo, coque, maria-chiquinha e sempre me perguntava: “você vai vir com esse cabelo todo dia?”

O Reino Unido anunciou que vai eliminar os veículos com energia fóssil até 2030. Existe a possibilidade de chegarmos a esse momento, trabalha-se com essa possibilidade?

Sonho com isso, mas precisamos de investimentos em pesquisas. Quero muito que a Uezo tenha a oportunidade de trabalhar mais profundamente com energias renováveis. A ciência anda desacredita no momento, mas precisamos caminhar.

Claudia Silva Jacobs

Carioca, formada em Jornalismo pela PUC- RJ. Trabalhou no Jornal dos Sports, na Última Hora e n'O Globo. Mudou-se para a Europa onde estudou Relacões Políticas e Internacionais no Ceris (Bruxelas) e Gerenciamento de Novas Mídias no Birkbeck College (Londres). Foi produtora do Serviço Brasileiro da BBC, em Londres, onde participou de diversas coberturas e ganhou o prêmio Ayrton Senna de reportagem de rádio com a série Trabalho Infantil no Brasil. Foi diretora de comunicação da Riotur por seis anos e agora é freelancer e editora do site CarnavaleSamba.Rio. Está em fase de conclusão do portal cidadaoautista.rio. E-mail: claudiasilvajacobs@gmail.com

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Um comentário em “‘A universidade é historicamente vista como elite, mas temos de quebrar isso’

  1. PEDRO MENDES DA LUZ DOS SANTOS disse:

    Olá, concordo plenamente com a lei cotas raciais nas universidades públicas, mas acho que é preciso haver ações que promovam movimentos nessa direção, nos anos iniciais do ensino médio.

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