Precisamos falar sobre serviços públicos

Garantia de acesso a itens essenciais como educação, saúde e acesso à água potável é fundamental para pensar no mundo pós-coronavírus

Por ActionAid | ODS 10ODS 3 • Publicada em 23 de junho de 2020 - 09:24 • Atualizada em 11 de fevereiro de 2021 - 16:58

Operação sanitária emergencial em favela do Rio de Janeiro: qualidade dos serviços públicos é fundamental no pós-pandemia (Foto: Fabio Teixeira/NurPhoto/AFP)

Claudia Dias, Francisco Menezes e Lívia Salles*

O impacto do Coronavírus tem tornado mais evidentes os graves problemas estruturais do Brasil, entre os quais a extrema desigualdade de renda e de acesso a direitos essenciais, como saúde, água e alimentação segura. Num país em que 13, 9 milhões de pessoas já viviam em condição de extrema pobreza (Pnad 2019/IBGE), o vírus se propaga atingindo mais fortemente a saúde dessa população vulnerável, e as medidas necessárias para contê-lo afetam gravemente sua já precária condição econômica. 

É fundamental, pontuar, no entanto, que os impactos sanitários e sociais no Brasil e em outros países poderiam ser menores, não fossem o gradual enfraquecimento da qualidade e acesso a serviços e políticas públicas para quem mais precisa nos últimos anos. 

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Em nosso trabalho pelo mundo, temos visto de perto os graves efeitos que o investimento aquém do necessário em serviços públicos tem tido nos mais pobres, especialmente mulheres e crianças – a quem, por isso, focamos a atenção do nosso trabalho. Infelizmente, podemos constatar que trágicas lições, como a da recente crise do Ebola na África, puderam dar aos países não foram aprendidas. Agora, se há intenção em repensar o futuro a partir do que significou a pandemia do coronavírus, torna-se essencial debater toda a reconstrução necessária. 

Por que esse assunto é urgente? 

A pandemia trouxe à tona o quanto serviços públicos, gratuitos e universais, são fundamentais para minimizar o contraste com as condições privilegiadas de parcelas minoritárias da população, capazes de cumprir o isolamento social e atender as medidas de contenção do vírus. 

No Brasil, nesses três últimos meses, ficou evidente o quanto as escolas públicas e seus alunos não possuem estruturas mínimas para se adequarem ao contexto e o quanto as famílias dependem da merenda escolar para garantir segurança alimentar aos seus filhos, por exemplo. 

Quanto à saúde, se por um lado a situação reforçou a importância do SUS, por outro escancarou a falta de estrutura e a quantidade insuficiente de unidades hospitalares e profissionais em territórios afastados dos grandes centros urbanos. Num momento de extrema importância do isolamento social, os transportes públicos estão lotados. 

Em relação a saneamento básico, habitação e acesso à água, os moradores de periferias e regiões semiáridas relatam a dificuldade para manter as práticas de higiene indispensáveis na prevenção ao vírus. Ao observar medidas de assistência social, nota-se complexidade e lentidão para fazer chegar os auxílios emergenciais, como a renda básica, a quem tem direito.  

As consequências esperadas para os próximos anos serão brutais em todo o mundo. O economista Daniel Balaban, chefe do escritório brasileiro do Programa Mundial de Alimentos, divulgou estimativas de que 5,4 milhões de brasileiros passarão para a pobreza extrema até o fim da pandemia. A Oxfam prevê que entre 6% e 8% da população global – cerca de 500 milhões de pessoas – poderá entrar na pobreza. Dentre essas, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 80 milhões de pessoas poderão cair na pobreza extrema somente na América Latina. A maior parte desse contingente, inclusive, será de mulheres – as mais afetadas pelos impactos no mercado informal e de serviços, pela sobrecarga de trabalho relacionado aos cuidados e pela violência doméstica. 

Tudo isso ocorre num contexto em que sucessivos governos, não somente no Brasil, vêm optando por medidas de austeridade para responder à crise econômica nos últimos anos. Só que essas ações, relacionadas a privatizações e contenção de gastos sociais, além de não estarem cumprindo as expectativas, afetam principalmente as populações mais vulneráveis. 

O Reino Unido, por exemplo, fortemente impactado pela Covid-19, transferiu em 2018 contratos de serviços de saúde no valor de 9,2 bilhões de libras para a iniciativa privada, ao mesmo tempo em que reduzia o orçamento da NHS (Serviço Nacional de Saúde Pública). Nos EUA, entre os anos 1980 e 2000, houve redução de 40% dos leitos hospitalares. De 57 países identificados pela última vez pela Organização Mundial da Saúde (OMS) com escassez crítica de trabalhadores do setor, 24 foram orientados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) a reduzir ou congelar salários do setor público.

No Brasil, uma das principais medidas nesse sentido, a Emenda Constitucional 95/2016, conhecida como Teto de Gastos, limitou gastos sociais e ambientais por 20 anos, e vem causando perversos efeitos no financiamento de políticas públicas principalmente nas áreas de saúde, educação, habitação, segurança alimentar e assistência social exatamente as que precisariam estar fortalecidas durante a contenção da pandemia.  

É preciso falar sobre serviços públicos

Por isso, alinhada a cerca de 230 organizações da sociedade civil que acompanham o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU no Grupo de Trabalho para a Agenda 2030 (GT Agenda 2030), a ActionAid alerta para a importância desse debate. Afinal, somente na área da saúde, por exemplo, o Brasil deixou de investir cerca de R$ 30 bilhões nos últimos dois anos. 

Dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde apontam que, entre 2007 e 2019, houve uma redução de oferta de 49 mil leitos de UTI no Brasil, o que afeta diretamente as estratégias de enfrentamento à Covid-19. Na educação, foram perdidos R$ 7 bilhões e o orçamento da assistência social caiu 9,2%, entre outros impactos. Um custo alto para não ter uma das promessas do Teto de Gastos atendidas. Afinal, a redução da dívida pública bruta não se efetivou. Pelo contrário, cresceu 16%. 

Neste momento de pandemia, diversos setores da sociedade estão presentes e unidos com brilhantes ações de solidariedade. E isso é também fundamental. No entanto, existem obrigações claras por parte de todos os governos, acordadas em leis internacionais, voltadas ao respeito, proteção e cumprimento dos direitos universais a itens essenciais como educação, saúde e acesso à água potável. No momento, medidas emergenciais e sociais, ainda que insuficientes, estão sendo tomadas pelos governos no Brasil e mundo afora. Mas estaremos preparados para o futuro pós-coronavírus? 

O fornecimento de serviços públicos de qualidade é fator-chave para o cumprimento dessas obrigações, tanto agora quanto no longo prazo. Nesse momento, é fundamental ressaltar a relação benéfica entre geração de renda e fortalecimento da economia com o digno, gratuito e universal acesso da população a políticas sociais. É preciso dialogar para encontrar alternativas que busquem equilíbrio econômico sem continuar excluindo milhões de brasileiros do acesso a seus direitos.

*Da equipe de Políticas e Programas da ActionAid no Brasil 

ActionAid

A ActionAid é uma organização internacional de combate à pobreza presente em 43 países. No Brasil, atua desde 1999 realizando projetos pela garantia dos direitos à alimentação, igualdade de gênero, participação popular e educação.

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