ODS 1
‘Pratiquei muita violência obstétrica porque assim era ensinado’
Para a Anna Beatriz Herief, obstetra especializada em parto humanizado, é preciso reduzir o número de cesáreas e priorizar o protagonismo das mulheres
Neste ano, a ginecologista e obstetra Anna Beatriz Herief entrou na plataforma online Instagram para dialogar com pais e mães leigos sobre o que mais ama fazer: trazer bebês ao mundo de forma humanizada. A médica se formou em 2010 pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e conta que teve sorte de encontrar dois professores, ainda na residência, que abriram seus olhos quanto a práticas médicas desnecessárias. Hoje, ela atende na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio e expõe com franqueza, nas redes sociais, os erros cometidos no passado:
“Eu venho de uma residência extremamente tradicional. Quanta episiotomia eu abri? Quantas mães eu silenciei? Quantas mulheres gritaram, eu falei que era exagero e que precisavam fechar a boca para fazer força embaixo? Quantas mulheres eu já operei sem necessidade?”, desabafa.
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Sua rede é alimentada, principalmente, por perguntas e textos didáticos sobre o protagonismo da parturiente no momento mais esperado da gestação. Ora atenciosa, ora ácida, mas sempre bem-humorada em suas respostas, Herief relembra o porquê de “humanizado” ser necessário na denominação dada à hora em que seres humanos saem do útero: “O médico não se forma para cuidar. O médico é formado para intervir: achar o problema, diagnosticar, solicitar exames e acabar com o problema”.
Em todo o mundo, a obstetra explica que a graduação é semelhante. Menos humana, mais intervencionista. Ela acrescenta que se formou desta forma como todos os médicos e praticou Violência Obstétrica porque assim era ensinado e exemplificado no dia a dia da residência. Sua ação online é um serviço de conscientização às parturientes.
As centenas de agradecimentos perpassam seu consultório e chegam em mensagens. Anna Beatriz se considera feminista e reconhece os efeitos de sua rede social. Desde 2014, os movimentos feministas reverberam no país. Com a massificação da informação e a constante opressão aos direitos das mulheres, surge a Quarta Onda. Essa etapa do feminismo se desenvolve não para criar conceitos e métodos sobre o movimento, e sim, para reafirmar a democratização da equidade de gênero.
[g1_quote author_name=”Jeniffer Barbosa” author_description=”Cirurgiã dentista e mãe” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Eu não podia falar, não podia conversar, não sentia minhas pernas. As enfermeiras começaram a fazer o curativo e eu só fui ver minha filha às duas da manhã
[/g1_quote]Graças à popularização da internet, tornou-se possível atingir um maior número de pessoas com informações sobre feminismo. No âmbito da saúde da mulher, o direcionamento do movimento não poderia ser diferente. A equidade de gênero é sobre a observação contínua do trato à vida de mulheres e meninas. Minuciar os exercícios de poder é uma tarefa constante, principalmente, quando se pensa em gestação.
O parto, ainda que no campo da medicina, não é uma equação. Intervir, segundo a médica, não pode ser uma regra. Cada nascimento é único, e é o protagonismo da mulher que o caracteriza. Beatriz Herif explica que parir é um processo inato ao corpo humano: “O parto não é um procedimento médico. O parto é um procedimento natural, fisiológico. O médico ou qualquer outra assistente – enfermeira, obstetra ou parteira – está presente para auxiliar o processo. Eu sempre falo para minhas pacientes: eu sou apenas a segurança do seu parto, segurança da mãe e do bebê. Caso haja algum contratempo, estarei presente para diagnosticar e intervir”.
A OMS recomenda que a taxa ideal de cesárea seja de apenas 15% do total de partos. O Brasil segue longe desta lógica. A cirurgiã dentista Jeniffer Barbosa, em sua segunda gestação, foi paciente de Anna Beatriz. Mas, com sua primeira filha não teve a mesma sorte por falta de informação. Moradora de Campo Grande, Zona Oeste do Rio, Jeniffer conta que sua primeira obstetra definiu sua cesárea como emergencial e, ainda assim, a pediu para esperar algumas horas no consultório para operar. Além disso, outro médico zombou de seu corpo enquanto estava anestesiado e ainda subiu em sua barriga para forçar o bebê a sair. “Eu não podia falar, não podia conversar, não sentia minhas pernas. As enfermeiras começaram a fazer o curativo e eu só fui ver minha filha às duas da manhã”.
No ranking mundial de cesáreas, o Brasil está atrás apenas da República Dominicana com 55%, segundo a OMS. As intervenções médicas sem consentimento da mulher grávida e que visam acelerar o trabalho de parto configuram a chamada Violência Obstétrica. A médica entrevistada mantém seu percentual de cesáreas abaixo do esperado, orgulhosamente. Neste ano, das 61 mulheres atendidas, apenas 5 precisaram ser operadas.
Confira abaixo a entrevista com a ginecologista e obstetra Anna Beatriz Herif.
#Colabora – O que caracteriza a Violência Obstétrica?
É qualquer intervenção obstétrica desde o início do pré-natal ou consulta pré-concepcional, procedimento médico, agressão verbal ou física à mulher sem consentimento. Todo e qualquer exame solicitado ou cirurgia que vá ser feita no corpo da mulher deve ser explicado. Ela decide se faz ou não.
#Colabora – Até que ponto o protagonismo da mulher e a decisão médica convergem?
Tudo é posto à mesa. Todos os riscos e benefícios de exames, cirurgias ou procedimentos desde o pré-natal. O dever do médico é informar já na consulta de pré-natal toda e qualquer intervenção que possa vir a ser necessária no momento do parto. Ainda que a mulher grávida se recuse a passar por alguma etapa que julgo necessária, ela estará a par de todos os riscos de sua escolha.
[g1_quote author_name=”Anna Beatriz Herief. ” author_description=”Obstetra” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Geralmente, no interior, as mulheres são ainda menos informadas. A cultura é muito mais machista e centrada no médico do que na capital. Além de não ter um padrão de atendimento, a mulher grávida que procura um hospital público vai depender da equipe de plantão que é trocada a cada 12 horas
[/g1_quote]#Colabora – O sistema público de saúde possui um padrão de atendimento à mulher grávida?
Não tem um padrão. O atendimento muda muito em relação às cidades. No interior do país, por exemplo, é diferente do Rio de Janeiro, capital. Geralmente, no interior, as mulheres são ainda menos informadas. A cultura do interior é muito mais machista e medicocentrista do que na capital. Além de não ter um padrão de atendimento, a mulher grávida que procura um hospital público vai depender da equipe de plantão que é trocada a cada 12 horas.
#Colabora – Você acredita que a velocidade desejada na hora de realizar partos tem a ver com os interesses econômicos do sistema público de saúde?
Acredito que há pessoas mal-intencionadas em qualquer profissão. Muitos médicos bem-intencionados que atendem pelo plano querem atender parto normal, porém, quando começa a passar certas horas do trabalho de parto, eles querem pôr a mão e acelerar o processo porque aprenderam assim. Ler, ir à congressos, e se atualizar com evidências recentes é o ideal.
#Colabora – A falta de cuidado com as parturientes costuma ser falta de preparo técnico ou ético?
Dentro da residência me mostraram uma visão diferente. Tive dois professores, Marcos Nakamura e Bernadete Bousada, conhecidos no Rio e que me fizeram ver o caminho. Mas, posteriormente, tentei mostrar o que aprendi para muitos residentes e não obtive sucesso. A maneira de ver a vida, o medo, a insegurança os impede de mudar. Alguns médicos são mais seguros e estudiosos, outros médicos não estudam e não se atualizam. Então, se o professor de 70 anos fala para o aluno que é dessa forma, assim ele o faz. As coisas novas da área assustam apenas pela insegurança do profissional.
#Colabora – Você costuma comentar nas suas redes sociais que tem ciência de que a escolha de um parto humanizado, no Brasil, ainda é elitista.
Em todo Brasil, mas, mais marcadamente no Rio de Janeiro e São Paulo, para se ter um parto humanizado com certeza você paga. As equipes são caras. A exclusividade da equipe sempre será cara e apenas uma pequena parcela da população pode pagar. Pelo plano, estatisticamente, a paciente não consegue e, pelo SUS, em torno de 60% dos partos são vaginais, porém cheios de intervenções.
#Colabora – Quais são consequências físicas e psicológicas mais comuns nas mulheres vítimas de Violência Obstétrica?
No meu consultório, recebo muita paciente que já teve um filho em uma cesariana desnecessária, geralmente, eletiva. Ou, pior, tiveram por partos vaginais cheios de violência. Elas chegam a chorar porque sempre é uma experiência péssima para a mulher. Quando elas começam a perceber que foram enganadas no parto anterior, seja na cesariana, seja a que sofreu Violência Obstétrica via vaginal, choram na consulta. Vejo ainda mais esses traumas por mensagens recebidas no meu Instagram.
#Colabora – Como a medicina convenceu que práticas como a episiotomia (corte do períneo) facilitariam um trabalho que o corpo nasce pronto para realizar?
A partir de um determinado momento histórico, começou-se a fazer a episiotomia com a justificativa de que abreviava o parto, o que não é verdade. Muitas vezes justificam para a paciente que o bebê estava demorando a vir ou não estava bem. Cada bebê tem seu tempo e muitos médicos recorrem a cirurgia por medo. A episiotomia não tem evidência de benefícios e não previne lacerações graves. Inclusive, ela é uma laceração grave.
#Colabora – Em que circunstâncias a cesárea é necessária?
No intraparto. Quando durante o trabalho de parto detectamos algum fator que nos faz ver que não é seguro seguir em frente. Entre os fatores, temos dez principais: prolapso de cordão; Apresentação córmica; Placenta prévia parcial ou total; Desproporção cefalopélvica (DCP); Frequência cardíaca fetal não-tranquilizadora; Descolamento prematuro da placenta com feto vivo; Ruptura de vasa prévia e inserção velamentosa do cordão; Herpes genital com lesão ativa no início do trabalho de parto; Parada de progressão não resolvida com as medidas habituais; Antecedente de cesariana corporal; Ruptura uterina ou miometrectomia.
#Colabora – Como denunciar a Violência Obstétrica?
Existe uma forma de denunciar. Mas, adianta? Geralmente não. Existe o processo judicial que a maioria que sofre não pode pagar. O primeiro passo é na ouvidoria do hospital pelo SUS relatando o que aconteceu, qual o médico e qual o plantão. O segundo, é procurar a justiça gratuita. Porém, essas etapas servem para incomodar e lutar pelas outras mulheres porque o processo é lento. Se de dez partos por dia, três têm reclamação, o gestor do hospital terá que reavaliar.
Jornalista, feminista, do subúrbio do Rio e integrante do #AgoraÉQueSãoElas. O encanto pelo audiovisual lhe rendeu um prêmio de jornalismo aos 19. É jovem millenial, mas nem tanto.