‘Poder público não fez nada para as favelas na pandemia’

Voluntário faz o trabalho de imunização nas vielas da favela Santa Marta. Ausência do poder público na região marcou a pandemia. Foto Fabio Teixeira/NurPhoto via AFP

Para Itamar Silva, presidente do grupo ECO do Santa Marta, o que era ruim nas comunidades pobres do Rio de Janeiro ficou ainda pior

Por PH de Noronha | ODS 10ODS 3 • Publicada em 20 de julho de 2021 - 08:07 • Atualizada em 26 de julho de 2021 - 18:05

Voluntário faz o trabalho de imunização nas vielas da favela Santa Marta. Ausência do poder público na região marcou a pandemia. Foto Fabio Teixeira/NurPhoto via AFP

“Por favor, ligue para meu telefone fixo, porque aqui o celular cai toda hora”. O pedido de Itamar Silva, logo ao começar a entrevista, mostra apenas uma das várias dificuldades enfrentadas pelos moradores das favelas cariocas, áreas historicamente esquecidas pelos governantes, onde problemas como falta de saneamento básico, moradias precárias e ausência do poder público acumulam-se há décadas, sem políticas efetivas de transformação por parte de município, estado e União.

Durante todo o tempo da pandemia, nenhum governo – municipal, estadual ou federal – fez qualquer ação específica de Saúde dirigida para as favelas. Nem orientação tinha, não teve sequer um ‘Use máscara’. Não vieram de prefeito, governador ou Ministério da Saúde. Todas as ações de prevenção e cuidado tiveram seu protagonismo a partir das próprias favelas

Itamar mora na comunidade do Santa Marta, em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, desde que nasceu, na segunda metade dos anos 50. Formado em Comunicação Social, foi concursado do Banco do Brasil e é ex-diretor da Fundação Bento Rubião e do Ibase. Hoje preside o grupo ECO, organização comunitária criada pelos moradores do morro em 1976, que ele ajudou a fundar. Já presidiu também a Associação de Moradores do Santa Marta nos anos 80. Tem um longo histórico de participação nas lutas pela melhoria das condições de vida na comunidade e pela organização dos moradores.

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Pequena favela encravada na encosta íngreme do Morro Dona Marta, a comunidade do Santa Marta tem cerca de 7 mil habitantes. É uma favela pequena, mas de forte simbolismo para a Zona Sul e o Rio. Vizinho do Palácio da Cidade (escritório de trabalho do prefeito Eduardo Paes) e do Colégio Santo Inácio (um dos principais formadores dos estudantes da classe média carioca), o Santa Marta ficou mundialmente famosa em 1996, quando Michael Jackson gravou parte de seu clip They don’t care about us no meio das casas e pessoas do morro.

Itamar Silva: "O que era ruim, ficou pior". Foto Tatynne Lauria
Itamar Silva: “O que era ruim, ficou pior”. Foto Tatynne Lauria

Foi também na comunidade, em 2008, que começou a funcionar a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), projeto do então secretário estadual de Segurança, José Mariano Beltrame. Por alguns anos, as UPPs foram um modelo de iniciativa pública de atuação do Estado para reduzir a criminalidade nas favelas e abrir caminho para a entrada dos serviços públicos. Com a UPP, o Santa Marta conseguiu ficar seis anos sem ouvir um tiro de bala. Mas o projeto das UPPs foi abandonado pelo governo estadual durante o processo de decadência financeira do Estado do Rio, no governo de Luiz Pezão. Os serviços públicos nunca entraram para valer nos morros e a antiga sede da UPP Santa Marta, no alto da favela, hoje não passa de um posto avançado da Polícia Militar, sem qualquer projeto de pacificação.

Nesta entrevista, Itamar conta como a pandemia “escancarou” a situação econômica de quem mora em favelas, com aumento do desemprego, da falta de renda e da fome. As previsões de que uma mortandade aconteceria quando o coronavírus chegasse aos morros não se confirmaram, mas houve mortes e o próprio Itamar perdeu um irmão para a doença. Porém, destaca, a pandemia deu fôlego às organizações comunitárias tradicionais e fez surgir novos grupos coletivos participativos, principalmente formados por jovens.

Como ficou a vida nas favelas com a chegada da pandemia?

Do ponto de vista econômico, o que era ruim, ficou pior. A gente já tinha uma população marcada por uma desigualdade muito grande, com a questão do desemprego presente, e na pandemia isso tornou-se ainda mais forte. O nível de desemprego aumentou, mas não foi só o desemprego formal. Nesses territórios tem muita informalidade e tudo foi impactado de repente. Porque é uma cadeia. As biroscas do morro, por exemplo, são um comércio muito importante. Mas na medida em que as pessoas têm menos dinheiro no bolso, o consumo nas biroscas e armazéns do morro fica menor. Aqui no Santa Marta, tínhamos um turismo muito forte, com lojinhas que vendiam para turistas, temos pelo menos 15 pessoas que viviam disso e que ficaram sem poder trabalhar. A festa, mesmo que alguns bailes tenham voltado, diminuiu muito, reduzindo ainda mais a possibilidade de o comércio local ganhar dinheiro. E tivemos muita gente que perdeu o emprego nesse período, eram trabalhadores de restaurantes, do comércio e de outros negócios que foram impactados pela pandemia. Cada vez mais tem gente reclamando que está sem dinheiro.

E em termos de saúde, como foi o impacto da covid-19?

Me chamou a atenção o desconhecimento em geral, da imprensa, da sociedade e até dos especialistas, sobre as favelas, de sua capacidade de adaptabilidade. As favelas são concentradas, pessoas moram muito perto, casas pequenas, ventilação ruim… Mas isso existe há quantos anos? As condições físicas das favelas estão dadas há bastante tempo. Mas, de repente, essas questões vieram à tona. Logo no início surgiu na imprensa a grande preocupação: “Quando o coronavírus chegar nas favelas, vai ser um morticínio, haverá corpos saindo em filas dos morros, por causa das más condições de moradia”. A pandemia serviu para divulgar as condições das favelas – que, repito, não são novas. As condições das casas, como as pessoas vivem, quantas pessoas moram numa casa e em que condições, a impossibilidade de se fazer afastamento social. Muitas das casas daqui não têm condições de circulação de ar natural, que é um dos elementos importantes da prevenção. Elas têm apenas uma janela e uma porta, o ar não circula, essa é a condição histórica de construção nesses territórios. Por outro lado, vem a pergunta: “Mas, então, por que não morreu tanta gente?”. Não tenho essa resposta. A expectativa era de ter uma coisa massacrante, absurda. Não tenho números ou dados, mas, olhando aqui para o Santa Marta, não percebo muita diferença da sociedade em geral. Essa é uma pergunta que tem que ser respondida pelos infectologistas e epidemiologistas. Temos poucos dados para falar do número de contaminados, mas se pegarmos os óbitos, vemos que foi muito menor do que as expectativas. Houve mortes, claro, e foram expressivas. Mas não muito diferente do que aconteceu fora das favelas. Eu gostaria mesmo de ter essa resposta: por que, com as condições difíceis das favelas, não houve uma mortandade? A hipótese que eu tenho é de que essa população lida naturalmente com a questão da dificuldade: está contaminada de uma forma geral, mas desenvolveu também alguma resistência a essas adversidades. Se pensarmos nas questões sanitárias históricas das favelas, e que ao longo do tempo essa população teve que lidar com essas condições, de contato com infecções, contaminações e doenças várias, isso pode ter desenvolvido alguma possibilidade de autodefesa. Pode ser uma bobagem o que eu estou falando, não tenho dados científicos sobre isso, mas é a percepção que tenho. Lembro de uma coisa que sempre ouvi falar: criança de favela está acostumada a brincar nas vielas e não lavar a mão para comer. Ela não fica doente à toa, porque já tem anticorpos. Mas, se vier uma criança de classe média criada em apartamento e viver aqui como as crianças da favela, ela vai ficar doente rapidinho, porque não criou os mesmos anticorpos que a criança favelada. Essa analogia me faz pensar se a população das favelas não criou alguma defesa própria que deu um freio nas mortes da Covid-19. Essa dúvida me acompanha.

Grafite incentiva o uso de máscaras na Favela Santa Marta. Foto Grupo ECO Santa Marta
Grafite incentiva o uso de máscaras na Favela Santa Marta. Foto Grupo ECO Santa Marta

Como foi a atuação do poder público nas favelas, durante a pandemia?

Verdade seja dita: durante a pandemia, o poder público não fez nenhuma ação de saúde específica dirigida para as favelas. Nem orientação tinha, nem um “Use máscara” houve. Todas as ações de prevenção e cuidado tiveram seu protagonismo a partir das favelas. E um dado interessante: não foram apenas as organizações mais estruturadas e mais antigas, também surgiram novos coletivos e ações de jovens das favelas. Isso foi uma marca, principalmente em 2020. E mostrou a potencialidade de organização desses territórios, além de ter sido um caminho para divulgar as condições e ausências históricas do Estado nas favelas. A organização própria apareceu rapidamente. A resposta veio das favelas, de coletivos que se organizavam, criando pontes com a favela e fora dela, arrecadando recursos para cestas básicas. Algumas mais organizadas, como Maré, Alemão e Manguinhos, até pela aproximação com a Fiocruz, criaram o Painel Covid das Favelas e começaram a monitorar e a denunciar o afastamento do poder público desses territórios. A única coisa que o Estado fez foi o Auxílio Emergencial, mas com muitos obstáculos de acesso a ele. Tem gente que precisa de fato e não consegue, seja por falta de informação, seja por dificuldade de acesso ao mecanismo. E agora o governo do Estado oferece o Supera Rio, que também não chega a esse segmento aqui na favela. Por exemplo, aqui no Santa Marta temos carregadores que ficam no pé do morro, que carregam compras de moradores e material que chega para abastecer as biroscas. E ontem mesmo um deles me contou que tem carregadores com dificuldade para comer. O dinheiro não está circulando e, se não fosse a cesta básica oferecida pela Associação de Moradores, eles não estariam comendo. Perguntei pelo Auxílio Emergencial, e ele contou que nessa nova fase foi cortado, e não sabe por quê. Ou seja, nem todos têm acesso a esses auxílios vindos do Estado. Eu e outras lideranças de favelas conseguimos junto à Alerj uma verba de R$ 20 milhões para a Fiocruz abrir um edital. A Fiocruz usou esse dinheiro com um edital para iniciativas em favelas, louvável, mas foi insuficiente para o tamanho do buraco, para resolver os problemas generalizados de quem vivia em dificuldade dentro de todas as favelas do Rio.

A pandemia acabou sendo um estímulo para a organização comunitária nas favelas?

Nada acontece de repente. Claro que a covid-19 deu maior visibilidade e uma certa insuflada nas ações a partir das favelas. Mas isso ocorreu principalmente onde já havia uma semente, onde já havia um histórico organizativo. Nesses lugares, essas ações foram catapultadas. Não é à toa que olhamos para Maré, Manguinhos ou Alemão ganhando uma visibilidade muito grande. Nessas regiões, principalmente nos últimos 15 anos, vêm ocorrendo ações muito fortes de dentro, com ONGs e coletivos, que vêm tendo uma atuação bastante interessante e inovadora. Acompanhei muitos coletivos jovens de favelas onde se cruza a questão da covid-19 e da ausência do Estado com a denúncia do racismo. A afirmação e a defesa da população negra vêm com muita força, porque é um cruzamento de lutas que já está acontecendo. Por exemplo, no Jacarezinho temos o LabJaca, que é formado de jovens negros e negras, universitários, que, já estavam fazendo alguma coisa, com menos visibilidade, e a covid-19 jogou eles numa plataforma muito mais ampla. Criaram o Jaca contra Corona, depois criaram o projeto de prover dados a partir da favela, trazendo a questão do debate racial e dizendo: “Isso aqui é racismo, é preconceito”. Isso é uma marca de algumas iniciativas, misturar a solidariedade mais urgente, de entregar cestas, com a denúncia da ausência do poder público e, ao mesmo tempo, entrar no debate político. Isso aconteceu em várias favelas. A pergunta que se faz em seguida é: “Isso significa que o movimento de favelas está organizado, com uma nova articulação política que vai para frente?” Não sei dizer. Acho que há possibilidades, mas teremos que ver mais à frente como se dará a evolução dessas iniciativas.

A resposta veio das favelas, de coletivos que se organizavam, criando pontes com a favela e fora dela, arrecadando recursos para cestas básicas. Algumas mais organizadas, como Maré, Alemão e Manguinhos, até pela aproximação com a Fiocruz, criaram o Painel Covid das Favelas e começaram a monitorar e a denunciar o afastamento do poder público desses territórios.

E como foi a mobilização no Santa Marta?

Num primeiro momento, bem no início da pandemia, quando começou toda essa movimentação de cestas básicas, nós do Grupo ECO olhamos o cenário e pensamos: “Já tem muita gente fazendo isso, vamos ficar de fora”. Mas lá para abril fizemos nova reflexão e vimos que precisávamos fazer alguma coisa. Juntamos os amigos do grupo e decidimos que, se fosse cesta básica, teria que ser uma cesta de qualidade, que a gente pudesse realmente chamar de básica. Porque o que começou a chegar no morro no início era ridículo, comida que mal dava para uma semana. Além do que, as pessoas não vivem só de feijão, farinha, arroz e macarrão. E o gás? Aqui no Santa Marta, o gás tá chegando a 100 reais. Quem banca isso? Aí definimos um padrão de cesta. Fizemos um planejamento de seis meses, para entregar uma cesta básica de qualidade para 55 famílias, juntamente com um vale gás de 100 reais. Também decidimos entregar as cestas na porta da casa das famílias, para evitar aglomeração. Porque, no início, era impressionante: chegavam as cestas básicas na quadra da escola de samba e as pessoas corriam lá e se aglomeravam, sem máscara. Para evitar isso, durante nove meses (até dezembro de 2020) entregamos cestas e vale gás a 55 famílias, na porta de casa das famílias. Nossa cesta custava 170 reais, e pagamos os carregadores para entregarem a cesta na casa das pessoas, gerando renda para eles também. E tivemos o cuidado de não expor aquelas pessoas nas redes sociais. No fim do ano, paramos com a distribuição, porque era muito dinheiro para manter aquilo e a classe média começou a diminuir as contribuições, além de ter começado a circular o auxílio emergencial. A distribuição de cestas continuou com a Associação de Moradores. Mas, a partir de março, passamos a uma nova ação: resolvemos assumir a questão das máscaras. Compramos 6 mil máscaras e fizemos a distribuição e uma campanha de estímulo para as pessoas usarem. Porque aqui no Santa Marta você não via ninguém com máscara: muitos moradores desciam com a máscara no braço e só botavam quando chegavam na rua. E quando retornavam à comunidade, já na subida da escadaria retiravam a máscara. Com nossa campanha, forte também nas redes sociais, não mudamos totalmente a realidade, mas muita mais gente passou a usar a máscara. Escolhemos três lugares no morro e pintamos grafites estimulando o uso da máscara. Semana passada, recebemos do Rio pela Vida mais 5 mil máscaras PFF2/N95. No primeiro sábado, já distribuímos 3,5 mil máscaras. O alto-falante da Associação está chamando a atenção para o uso da máscara o tempo todo. E deixamos máscaras na barbearia, na padaria, na Associação de Moradores, para as pessoas pegarem.

Como conseguiram financiar as cestas básicas?

Começamos com amigos que já apoiavam o grupo ECO, depositando dinheiro na conta da entidade, e compramos as cestas diretamente. No começo, eram apenas 50 amigos e apoiadores (amigos dos amigos), com o tempo chegamos a mais de 120 pessoas. Os valores variavam, alguns davam apenas 50 reais mensais, dentro de suas possibilidades, mas muita gente doava 200, 500 reais, até mil reais por mês, foi muito legal.

E a questão da violência policial e criminal nas favelas? Como ficou durante a pandemia?

Aqui no Santa Marta, gosto de dizer que é um paraíso… é uma Paris… rsrs… De vez em quando Paris também pega fogo com a polícia, e a porrada come. Porém, nesse processo todo da pandemia, mesmo com o fim (ou redesenho) da UPP, não tivemos nenhuma marca negativa no Santa Marta. Mas a entrada do governador Wilson Witzel foi muito impactante para as favelas. Desde o início ele deixa muito claro que sua política era de confronto e extermínio. Era uma autorização para uma polícia que já tem uma prática incorporada em sua história de não respeitar qualquer direito nas favelas. Isso, com o Witzel, foi elevado a não sei quantas potências. E na pandemia essa briga se intensificou quando o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu as operações em favelas. Não para interromper o combate ao crime, mas porque, naquele momento da pandemia, você tinha mais gente circulando pelas favelas, com distribuição de cestas básicas, as pessoas buscando alternativas de sobrevivência em condições difíceis. Elas estavam muito mais vulneráveis a qualquer entrada violenta da polícia. Entretanto, mesmo com essa proibição, tivemos algumas das maiores chacinas dos últimos tempos. A última, e a pior, foi a do Jacarezinho, mas teve outras. E claramente há um confronto da polícia contra qualquer tentativa de controle externo de suas ações nas favelas. Eu tenho muita preocupação com a continuidade desse processo. Acompanhamos uma certa busca de autonomia absoluta por parte da polícia, alimentada por um discurso do governo federal, que tem como consequência esse enfretamento direto e a morte como gratuidade, como um elemento banal. Em meio a isso, ainda temos a questão da milícia, que cada vez está mais próxima, com milícia, polícia e Estado se misturando. Percebemos um aumento dessa movimentação, que está redesenhando as forças em jogo no Rio de Janeiro. É um momento difícil, mesmo com a entrada do STF nessa história. Jacarezinho foi uma resposta ao Supremo, foi exatamente isso, um desafio direto da PM ao STF. Foi uma das coisas mais perversas dos últimos anos. É a sequência da política de confronto do Rio de Janeiro, agora com a Polícia confrontando a Justiça, que para mim tem a ver com essa autonomia que as polícias têm buscado.

Pandemia nas favelas do Rio: amigos se mobilizaram para oferecer cestas básicas, realmente básicas, para os moradores da favela. Foto Grupo ECO Santa Marta
Amigos se mobilizaram para oferecer cestas básicas, realmente básicas, para os moradores da favela. Foto Grupo ECO Santa Marta

A urbanização das favelas ainda é uma demanda ou perdeu força política?

Urbanização ainda é uma necessidade, mas na eleição do Eduardo Paes para a prefeitura do Rio ela deixou de ser uma bandeira. O Paes nunca teve a favela como foco, nem em seu primeiro mandato, nem agora. E quando você olha para a composição do governo dele e para as propostas e programas, nada indica que a favela seja prioridade para sua gestão. Ao contrário, quando ele pegou o Rio de Janeiro bombando, em seus dois mandatos, tivemos as remoções, seja por causa das Olimpíadas, seja pelas grandes obras. Ao mesmo tempo, não vejo uma oposição no movimento das favelas, a gente não consegue fazer uma oposição direta ao Paes. Politicamente, ele é muito escorregadio e lida com algumas coisas superficiais de encantamento fácil. O grande lance para mim do governo Paes foi o Parque de Madureira. Foi uma iniciativa olhando para a população da Zona Norte, baixa classe média e favelados, e juntou tudo ali a partir de um marco simbólico e concreto. Nenhum discurso da favela falando da falta de atenção dele com os pobres se sustenta diante dessa obra. Por outro lado, o que poderia ter sido um grande marco do Paes foi em seu primeiro mandato, e tinha todo potencial para avançar, era o Morar Carioca. Como programa de governo, é impecável. Se pegar o escopo do Morar Carioca, pensando em urbanização de favelas, eu assino embaixo, mesmo com alguns problemas que tinha. Porque era completo, pensava a partir da favela e de seu entorno, em suas conexões na cidade – diferentemente do Favela Bairro, que tinha uma abordagem de favela muito pontual. Só que o Morar Carioca já foi detonado no primeiro governo do Paes. Foi congelado, não decolou, e a gente não conseguiu levantar novamente como bandeira. Hoje, não vejo nenhuma política no governo Paes que tenha a ver com a centralidade das favelas. Ele vai flanar nessa coisa de juventude e favelas, coisas muito pontuais, ele traz um secretário de cultura que tem um trânsito grande nas áreas populares, e vai atenuando um pouco a pressão. Mas em algum momento teremos que recolocar essa necessidade e atualizar o debate sobre urbanização de favelas. O que é urbanização de favelas hoje? O que queremos garantir e normatizar? Como fazer isso e com que participação efetiva dessas estruturas de organização comunitária? Apesar disso tudo, a urbanização ainda é uma bandeira, sim. Inclusive porque as favelas continuam inchando, se expandindo, e o Rio continua criando novas favelas, por dinâmicas bastante discutíveis. E se não tem nenhuma perspectiva de discutirmos esse crescimento desordenado, a perspectiva é alguma coisa próxima do caos.

E você acha que a eleição do ano que vem pode mudar essa perspectiva?

Apesar de todas as evidências do que está acontecendo, o governo federal ainda tem muita força. Outro dia o Paulo Guedes (ministro da Fazenda) falou que “pode ser que o auxílio emergencial seja prorrogado por mais três meses”. Ele sabe o quanto isso aprisiona a população em torno do apoio ao governo. Uma pequena melhora que tivermos na economia, e se tivermos programas de empregabilidade, mesmo que sejam eleitoreiros, isso tem uma incidência grande no voto popular. O jogo eleitoral de 2022 já está sendo jogado agora.

PH de Noronha

É jornalista, trabalhou nas editorias de Economia e Internacional do Jornal do Brasil e O Globo e foi editor de Macroeconomia e Política no Brasil Econômico. Atuou na comunicação corporativa de empresas como Cetip e TIM Brasil e nos governos federal (Anac e BNDES) e estadual (Secretaria de Segurança).

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