Mãe? Só até a hora do parto

O projeto de lei do parto anônimo foi arquivado no Brasil (Foto Annie Engel / Cultura Creative/AFP)

Proposta que permite à mulher dar o filho à adoção logo após o nascimento pode voltar ao Congresso

Por Dandara Tinoco | ODS 3 • Publicada em 2 de novembro de 2016 - 09:08 • Atualizada em 2 de novembro de 2016 - 12:36

O projeto de lei do parto anônimo foi arquivado no Brasil (Foto Annie Engel / Cultura Creative/AFP)
O projeto de lei do parto anônimo foi arquivado no Brasil (Foto Annie Engel / Cultura Creative/AFP)
O projeto de lei do parto anônimo foi arquivado no Brasil (Foto Annie Engel / Cultura Creative/AFP)

O horror coletivo provocado a cada novo caso pode dar a impressão de que os episódios são raros. Mas basta ver a quantidade de notícias encontradas sobre o assunto para atestar como são frequentes as ocorrências de abandono de recém-nascidos no Brasil. Os relatos dramáticos multiplicam-se. Apenas este ano, um bebê foi deixado no banheiro de um campo de futebol abandonado em São Paulo; outro em um sítio no sertão paraibano; um terceiro em um matagal no interior do Rio Grande do Sul. Em outubro, a história de um menino encontrado em uma caixa de sapatos e resgatado por policiais do Rio ganhou repercussão. Para alguns juristas brasileiros, a institucionalização de um dispositivo legal poderia mitigar esse quadro: chamado de parto anônimo, ele permitiria que mães que deixassem seus filhos em hospitais não tivessem suas identidades reveladas.

O Brasil, um dos países com mais alto índice de abandono infantil, deveria incorporar em seu sistema jurídico a lei do parto anônimo. Se ela já vigorasse por aqui, certamente, não veríamos mais estampados em jornais as manchetes com tamanho conteúdo trágico

“A lei do parto anônimo consiste em dar assistência médica à gestante e, quando a criança nasce, ela é ‘depositada’ anonimamente em um hospital, preservando a identidade da mãe e isentando-a de qualquer responsabilidade civil ou criminal. Depois a criança é entregue, também anonimamente, para adoção. Ela não chega a ser registrada em nome da genitora e, portanto, não há que se falar em destituição do poder familiar, como normalmente é feito nos processos de adoção”, explica Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Ele cita números do Conselho Nacional de Justiça mostrando que aproximadamente 46.000 mil crianças estão em acolhimento institucional no Brasil. Delas, apenas 7 mil aptas para adoção. “O Brasil, um dos países com mais alto índice de abandono infantil, deveria incorporar em seu sistema jurídico a lei do parto anônimo. Se ela já vigorasse por aqui, certamente, não veríamos mais estampados em jornais as manchetes com tamanho conteúdo trágico.”

O projeto da lei a que Pereira se refere foi protocolado pelo próprio IBDFAM, em 2008. O PL 3.220/08 assegurava que a mulher, durante a gravidez ou até o dia em que deixasse o hospital após o parto, pudesse decidir não assumir a maternidade da criança que gerou. A mãe forneceria informações sobre as origens da criança e sobre as circunstâncias do nascimento, que permaneceriam em sigilo na unidade de saúde em que ocorreu o parto. Esses dados só poderiam ser revelados no futuro a pedido do filho e mediante ordem judicial, o que seria oportuno, por exemplo, em situações envolvendo doenças genéticas. A proposta foi arquivada, assim como outras duas que tratavam do tema. De acordo com o presidente do IBDFAM, o instituto pretender retomar a agenda no Congresso.

Em 2014, sob críticas, o governo chinês inaugurou dezenas de postos com incubadoras e sistemas de alarme em que os genitores podem abandonar em segurança filhos indesejados. O mecanismo é comparado com as chamadas “rodas dos expostos” ou “rodas dos enjeitados” — portinholas giratórias instaladas em instituições de caridade em que mães deixavam seus filhos, criadas no século XVI

Bacharel em Direito, Núbia Regina de Oliveira Martins Barbosa, apresentou monografia sobre o tema este ano na Universidade Veiga de Almeida. Em seu trabalho, ela cita falhas que teriam resultado no arquivamento dos projetos de lei que tratavam do assunto. Entre os problemas, ela aponta a possibilidade prevista nas propostas de que o recém-nascido permanecesse por até oito semanas na unidade de saúde, o que aumentaria o risco de infecções hospitalares. Outro problema seria atribuir aos médicos e hospitais a responsabilidade pelo encaminhamento à adoção das crianças nascidas de parto anônimo.

Na França, existem associações de filhos nascidos pelo parto anônimo que sentem que seus direitos fundamentais foram violados

Para Núbia, no entanto, um elemento central vem sendo deixado de fora nas discussões.”Os motivos que levam as mães a cometerem o abandono não são colocados em evidência. Em muitos casos, eles estão relacionados a um histórico social e econômico. Essas gestações indesejadas levam ao abandono dos recém-nascidos muitas vezes por pressões externas à mãe como: falta de recursos e apoio familiar, o não reconhecimento do pai, gravidez na adolescência, pobreza extrema, estupro e até mesmo incesto”.

Os defensores da institucionalização citam exemplos de outros países. Dispositivos para coibir o abandono clandestino de crianças já foram adotados por Áustria, França, Itália, Luxemburgo e Bélgica, além de por dezenas de estados norte-americanos. Em 2014, sob críticas, o governo chinês inaugurou dezenas de postos com incubadoras e sistemas de alarme em que os genitores podem abandonar em segurança filhos indesejados. O mecanismo é comparado com as chamadas “rodas dos expostos” ou “rodas dos enjeitados” — portinholas giratórias instaladas em instituições de caridade em que mães deixavam seus filhos, criadas no século XVI.

Contrária à institucionalização do parto anônimo, Claudia Fonseca, antropóloga a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), avalia que, na verdade, tais experiências internacionais depõem contra o dispositivo: “Na França, existe uma associação de mulheres que se arrependeram de sua decisão do parto anônimo e hoje querem muito saber do destino de seus filhos. Não querem seus filhos de volta, pois reconhece-se que a adoção e o pertencimento à nova família adotiva é irrevogável, mas querem receber informação e eventualmente, quando o filho alcançar a maioridade, ter a possibilidade de algum contato. Também no país existem associações de filhos nascidos pelo parto anônimo que sentem que seus direitos fundamentais foram violados — afirma, acrescentando que o parto anônimo “criaria bebês sem filiação nenhuma, o que tornaria sua identificação e controle muito mais difícil”.

Olívia Pinto, professora de Direito da Universidade de Fortaleza e autora do livro “O parto anônimo à luz do constitucionalismo brasileiro”, defende que o sigilo acerca da identidade da mãe possa ser adotado no Brasil mesmo sem a implementação de uma lei. “Levando em consideração que o parto anônimo resguarda a liberdade da gestante não ser mãe, respeitando o livre planejamento familiar, bem como o direito à convivência familiar e afetiva pelo nascente e o direito ao sigilo e à intimidade dos pais biológicos, defendo veementemente ser prescindível uma lei para a implementação do instituto no Brasil”, argumenta.

A advogada vê nessa medida uma forma de proteger o futuro das crianças. “O parto anônimo, que na realidade deveria chamar-se “parto em sigilo”, nasce da necessidade de afastar o abandono selvagem de recém-nascidos por genitoras que não querem ser “mães”, cabendo ao Estado proteger essas crianças e assegurar-lhes direito à vida digna, daí fazendo parte a sua inclusão em família que lhe acolha afetivamente. A forma de implementação vislumbrada é por intermédio de políticas públicas efetivas de planejamento familiar”, diz.

A advogada ressalta ainda que, em um país que restringe o direito ao aborto, é necessário falar sobre a liberdade da mulher grávida não desejar ser mãe. “Essas mulheres precisam do apoio e amparo do Estado, ao contrário dos olhares repressores ao fato de não quererem, ou tantas vezes não poderem ser mães. Afinal, ser mãe não é uma condição e um fato natural. Tal ideia há muito foi superada, apesar da nossa sociedade resistir e ainda utilizar-se de argumentos machistas e fundados na natureza para justificar que, supostamente, ‘as mulheres nasceram para ser mães’ ou ‘toda mulher quer ser mãe'”, opina.

Olivia destaca que o parto anônimo é um paliativo para problemas maiores relacionados à educação e saúde públicas. “Obviamente o ideal seria que, em não querendo ou não podendo, não se engravidasse. Contudo, diante de dados ainda assustadores de analfabetismo e miséria, cabe ao Estado propagar políticas públicas de planejamento familiar de impacto, utilizando-se, também, do ‘parto em sigilo’ e, com isso, reverter números de infanticídios, abandonos selvagens de recém-nascidos e mortes de mulheres por abortos clandestinos. Essa preocupação é atual no Brasil, o que faz com que o tema ‘parto anônimo’ permaneça em pauta”, conclui.

Dandara Tinoco

É jornalista pela PUC-Rio e mestre em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ. Baiana, vive há mais de uma década no Rio, onde foi repórter em "O Globo" por oito anos. Gosta de escrever e ler histórias sobre direitos humanos, política e economia. Em 2015, ganhou o Prêmio Gilberto Velho Mídia e Drogas por reportagens relacionadas às políticas de drogas. Em 2014, recebeu o Camélia da Liberdade pela série "Fé maculada", em que tratava da intolerância contra religiões de matriz africana.

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