Pelo direito a uma morte digna, sem interferências artificiais excessivas

'Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria", explica o psicanalista e escritor Rubem Alves

Por Joana Suarez | ODS 3 • Publicada em 18 de janeiro de 2021 - 08:54 • Atualizada em 28 de outubro de 2021 - 13:07

Paciente inconsciente e intubada no Hospital da Vila Penteado, em São Paulo (Foto: Gustavo Basso/NurPhoto/AFP)

Paciente inconsciente e intubada no Hospital da Vila Penteado, em São Paulo (Foto: Gustavo Basso/NurPhoto/AFP)

'Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria", explica o psicanalista e escritor Rubem Alves

Por Joana Suarez | ODS 3 • Publicada em 18 de janeiro de 2021 - 08:54 • Atualizada em 28 de outubro de 2021 - 13:07

A distanásia é uma realidade muito presente no Brasil, constata a paliativista Sarah Ananda Gomes, presidente da Sociedade Mineira de Tanatologia e Cuidados Paliativos (Sotamig), que acompanha rotinas hospitalares há uma década. Ela percebe que não se tem a dimensão do impacto negativo de se estender a vida biológica e não a biográfica. “A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria”, explica o psicanalista e escritor Rubem Alves, no artigo “Sobre a morte e o morrer”, na Folha de S.Paulo.

Leu essas? Todas as reportagens da série “Distanásia: a indústria do prolongamento da vida

O direito à vida é o de “exercer a nossa biografia”, argumenta a advogada Luciana Dadalto. O empresário mineiro Luiz Carlos Gomes da Costa, portador de esclerose lateral amiotrófica (ELA) que não aceitou prolongar a própria vida, queria preservar sua história biográfica dentro de todos os limites éticos e jurídicos. “Em que medida a moral de um povo (ou de um médico) pode se sobrepor aos direitos de uma outra pessoa?”, questiona a advogada. A morte foi delegada aos hospitais, quase ninguém morre em casa mais, e, com isso, ela se tornou um inimigo a ser vencido por todos naquele ambiente de luzes brancas e macas.

Não tinha equipe paliativista na primeira unidade em que Luiz foi. Não existia um entendimento que incluísse nas indicações médicas os valores do paciente. Já no segundo hospital para o qual foi transferido, a família encontrou amparo e respeito.

Durante quase duas semanas no novo ambiente, fizeram reuniões, familiares e profissionais da saúde, para definirem juntos a condução a cada dia. Luiz estava sedado, “tranquilo e sereno”. Os filhos e o pai dele, Hélio Costa, participaram das conversas (a mãe havia morrido quando ele era criança).

Decididos a não mais executar medidas invasivas e inúteis, Luiz passaria pela extubação para deixar a doença seguir seu curso natural. Todos compreendiam e estavam bem. Foram feitas medicações para propiciar conforto, evitar secreções e que ele respirasse bem sem o tubo.

No dia marcado, o pai de Luiz, a madrasta, uma das irmãs, a mulher e os dois filhos estavam lá no box final do corredor da UTI. Disseram tudo que queriam antes de ele ser extubado. “Luiz fazia a gente se sentir único, apesar de ter muitos amigos”, contou um dos mais próximos, que também o visitou nesse dia.

Após o procedimento, ele respirou tranquilamente, abriu os olhos algumas vezes e ficou estável por cerca de quatro horas. Tudo ocorreu no tempo dele. Hélio rezou o salmo 33 e disse no ouvido de Luiz que prestaria assistência para a sua família. Nos períodos mais difíceis da doença, chorava sempre que ligava para o celular do filho, porque Luiz não conseguia falar. O pai já perdia ali seu maior companheiro de trabalho.

Os paliativistas cuidaram para que a morte de Luiz fosse menos dolorosa e cercada de gente querida. “Foi tudo com carinho, com a presença de Deus; em nenhum momento ele foi agredido, foi da forma que ele merecia, que ele pediu”, reconhece Oldimeia Costa, evidenciando o ser de luz que era Luiz: “Agradeço a oportunidade de ter cuidado dele, ter vivido feliz tanto tempo com ele”.

Existe um receio de que a extubação paliativa seja eutanásia, mas uma das provas em contrário é que, na maioria das vezes, o paciente morre horas, dias e até semanas depois, tendo alta hospitalar. Não é imediatamente, como ocorreria em uma ação para matar.

Oldimeia nunca teve dúvidas do que deveria fazer e foi apoiada pela família: “Tenho meu coração muito tranquilo e em paz, porque não fiz nada que transgredisse a lei de Deus, a lei dos homens e a do amor que tínhamos um pelo outro”. Ela viu muitos exemplos de famílias de pacientes que faziam a traqueostomia, passavam anos em casa sofrendo e depois se arrependiam: “A pessoa fica numa condição de ver tudo que está acontecendo, mas não participa de nada. Luiz não conseguia segurar o neto, e ele não queria isso, sempre teve autonomia”.

Luiz empreenderia a mesma luta por ela, certifica-se Oldimeia, que lutou por ele, apoiando-se no exemplo de força e coragem que ele dava: “Vimos que é possível um fim com dignidade”. Ela torce para que os cuidados paliativos sejam regra, descrevendo como um “ato de humanidade com alguém em sua finitude e com sua família”.

Todavia, a morte que foi adequada para Luiz pode ser diferente para outros. Cada família tem um caminho a percorrer até a hora de parar, se for o caso, com um tratamento ineficaz e penoso. Mas elas precisam ter informações e um espaço de escuta e amparo. E não se pode confundir uso de tecnologia com cuidado.

Joana Suarez

Joana Suarez é pernambucana mineira, viveu metade da vida em cada estado. Atualmente, como jornalista freelancer, decidiu habitar os dois lugares para se sentir completa. É formada e sempre atuou dentro de redações. Como repórter recebeu quatro prêmios (regionais e internacionais) pelos trabalhos aprofundados na área de saúde. Desde 2018, vem se dedicando de maneira independente a cobrir também pautas de gênero, direitos humanos e meio ambiente. Publica em veículos brasileiros e estrangeiros reportagens feitas no Nordeste e no Sudeste do país. Agora é também podcaster. Produz e apresenta o Cirandeiras Podcast sobre mulheres e suas lutas em cada canto do Brasil.

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