‘O Brasil todo é terra indígena, é pindorama. Temos que ser vacinados’

A técnica de enfermagem Vanuza Kaimbé recebe a Coronavac, em São Paulo. Foto de divulgação

Primeira indígena a receber o imunizante no país, Vanuza Kaimbé critica governo Bolsonaro pelo 'marketing que mata', por apostar na desinformação sobre os povos originários

Por Amazônia Real | ODS 10ODS 3 • Publicada em 21 de janeiro de 2021 - 08:24 • Atualizada em 26 de janeiro de 2021 - 08:50

A técnica de enfermagem Vanuza Kaimbé recebe a Coronavac, em São Paulo. Foto de divulgação

*Maria Fernanda Ribeiro

A imagem de Vanuza Costa Santos, 50 anos, da etnia Kaimbé, rodou o Brasil e o mundo – ela foi a primeira indígena no país a ser vacinada contra o coronavírus, no domingo 17 de janeiro, em São Paulo. Técnica de enfermagem e assistente social, Vanuza mora em uma aldeia multiétnica de Guarulhos, a 20 quilômetros da capital, composta majoritariamente por povos vindos do Nordeste. Apesar de estarem no grupo prioritário de vacinação, pelo menos 380 mil indígenas brasileiros foram excluídos do plano nacional de imunização por não viverem em territórios demarcados. “Sou uma pessoa signatária das leis, leio a Constituição e não existe nenhum dispositivo que diga que o indígena deixa de ser indígena quando sai da aldeia. O Brasil todo é terra indígena, o Brasil é pindorama. Temos que ser vacinados”, cobra Vanuza em entrevista à Amazônia Real.

No mesmo domingo, o Coletivo Indígenas do Amazonas lançou mobilização nacional para pressionar as autoridades de saúde a ampliarem a cobertura vacinal prioritária. Após a técnica de enfermagem ter recebido a dose da vacina, os governadores dos demais estados se apressaram em também imunizar os primeiros indígenas de seus territórios. No Amazonas, Vanda Ortega, da etnia Witoto, foi a primeira pessoa vacinadaRonoré Gavião, de 105 anos, foi a primeira indígena imunizada no Pará. Vanuza comentou as críticas do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, de que Doria estaria fazendo propaganda com vacina. “Um faz o marketing que salva e o outro faz o marketing que mata”. Confira os principais trechos da entrevista dela.

Como recebeu a notícia de que seria a primeira indígena a ser vacinada?

Sabia que tomaria a vacina, mas acredito que fui chamada devido à repercussão da minha militância. Na sexta-feira (15 de janeiro), me ligou uma assessora da Secretaria de Saúde e mais uma pessoa do Butantan e perguntaram se eu topava. Respondi que seria uma honra. Não contei para ninguém para não gerar expectativa e no domingo fui a primeira pessoa a chegar. Não tive nenhuma reação, nenhum efeito colateral. O único efeito é o da gratidão e o da euforia, de saber que há uma esperança para a continuidade da minha vida. Não quero morrer e a única forma de a gente se livrar dessa doença é a vacina.

Qual foi a luta em que se engajou?

Desde o primeiro dia em que fiquei sabendo dessa pandemia, que era uma doença respiratória, sabia que chegaria no Brasil, porque vivemos em um mundo globalizado. E a proximidade da nossa moradia do Aeroporto de Guarulhos me deixava ainda mais preocupada, porque tinha que o vírus chegaria por lá. Faço parte do Conselho Municipal de Saúde e mostrava nas reuniões a minha preocupação. Dizia que a gente deveria pensar em prevenção, em estratégias. Mas diziam que não, que era para me preocupar com a dengue, com a chikungunya, com a H1N1, que o Brasil era um país tropical, não iria chegar aqui, e eu dizendo que eles estavam enganados. Tenho tudo documentado. Quando as pessoas ficaram doentes, quando morreram indígenas, quando primos meus morreram, entrei em desespero e comecei a bater na porta das secretarias de saúde, da Funai (Fundação Nacional do Índio), da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), cobrando providências. Engajei parceiros na luta porque sozinha ninguém faz nada. Divulguei áudios, que chegaram até as emissoras de televisão e assim começou a ter mídia. Por causa dessa insistência, nossa aldeia foi a primeira em que todos os membros foram testados.

Falava sozinha e era tida como doida e exagerada. Vi tanta gente indo contra meu pensamento que me perguntei se estava mesmo exagerando. Mas queria ter sido doida, exagerada e pecado por excesso e evitado todas essas mortes

Qual o sentimento após receber a vacina?

Estou em estado de graça, mas tenho certa apreensão porque a vacina não vai chegar para todo mundo nesse momento. A gente só tem 6 milhões de doses. Não vai dar nem pra vacinar todos os profissionais de saúde, os idosos e os indígenas. Os governos não fizeram a lição de casa, então há problemas com insumos, para comprar vacinas, seringas, com a logística correta. Recomendo que quem tiver a oportunidade de tomar a primeira dose, tome, porque é melhor uma do que nada. É a única medicação eficaz para garantir as nossas vidas. Não tem remédio paliativo.

Como foi falar sobre a sua preocupação com a chegada da doença e ser desacreditada?

Em uma reunião no dia 18 de fevereiro, no Conselho Municipal de Saúde, falava sozinha e era tida como uma doida e exagerada. Vi tanta gente indo contra meu pensamento que me perguntei se estava mesmo exagerando. Mas queria ter sido doida, exagerada e pecado por excesso e evitado todas essas mortes. Fazia o trabalho de prevenção na aldeia, de distanciamento, já falava em fechar a comunidade para não deixar ninguém de fora entrar. Aí veio a equipe de saúde dizer que era para a gente se preocupar com a dengue. Então, todo o trabalho que fiz com a minha comunidade, a Secretaria de Saúde foi lá e desfez. Só quando viram que a água estava chegando no pescoço, que começou a correria.

E como foi seu trabalho na aldeia?

Meus parentes também não me ouviam, não. No Carnaval, já não saí de casa porque sabia que tudo isso ia se espalhar e que seria como se o mundo acabasse. Sabia que morreria muita gente e já falava de ficar em casa, mas diziam que estava chamando a doença. No dia 14 de abril morreu o primeiro Kaimbé, a primeira pessoa do meu povo, próxima da gente. Aí viram que precisávamos mesmo nos cuidar. Então fechamos a aldeia e os que tinham que trabalhar fora deixaram os empregos. Eu e mais uma prima fomos para a TV contando que vivíamos do artesanato, do trabalho informal e pedimos apoio. Com nossa mobilização, nunca nos faltou nada na aldeia, nem comida, nem produto de higiene. Os brasileiros foram solidários e com isso resistimos até hoje sem nenhum óbito. Dos sete contaminados, todos se recuperaram. Nos contaminamos todos de uma vez, da segunda quinzena de maio até 15 de junho. Depois não fizemos mais testes porque ficamos com medo, mas ninguém mais teve sintomas

Conte sobre você.

Nasci na Terra Indígena Massacará, em Euclides da Cunha, sertão baiano. Quando tinha cinco anos precisei ir ao hospital e me indicaram uma operação de tireoide imediatamente, sem muitos exames, e fugi do hospital. Fui pra casa e fiquei com aquilo na cabeça, que iria estudar porque um dia seria uma pessoa de branco, porque nem sabia o que era enfermeiro, o que era médico, e minha mãe dizia que eu não ia conseguir. Vim para São Paulo estudar, trabalhar e aí já sabia que queria ser enfermeira. Não tive condições e fui trabalhar como doméstica e depois auxiliar de crédito. Mas sempre que passava em frente a um hospital me lembrava do meu sonho. Com 30 anos, me tornei técnica de enfermagem e fui trabalhar na saúde indígena, onde fiquei por dez anos. Só ser técnica não era o suficiente, fazia falta o curso superior. Também queria ser exemplo para o meu filho. Criei coragem para fazer o vestibular na PUC e passei. Meu filho também fez o vestibular e no ano que vem se forma. No momento, estou procurando emprego remunerado de assistente social.

Qual a sua opinião sobre a informação do governo federal de que os indígenas que moram nas cidades não serão vacinados no grupo prioritário?

Sou uma pessoa signatária das leis, leio a Constituição e não existe nenhum dispositivo que diga que o indígena deixa de ser indígena quando sai da aldeia. O Brasil todo é terra indígena, o Brasil é pindorama. Não existe essa separação. O indígena é indígena em qualquer lugar, na aldeia, na cidade ou na universidade. Hoje grande parte dos indígenas mora na cidade. As terras indígenas foram invadidas e as que não foram nós preservamos. Estamos nas cidades porque não tivemos outra opção. Viemos em busca de saúde, moradia e trabalho porque as aldeias não eram mais suficientes para morar. Então temos que dizer para esse governo e para todos que índio é índio nas cidades ou nas aldeias e temos que ser vacinados.

Você já sabe quando vai receber a segunda dose da vacina?

Ainda não tem data, mas a previsão é para 30 dias. Quando chegar esse prazo, se não me ligarem, eu mesma entro em contato.

Qual a sua avaliação sobre essa disputa ideológica entre o governo do estado de São Paulo e o governo federal?

Não estou surpresa com o presidente, porque ele sempre foi um parasita. Viveu 30 anos como deputado e além de não ter nenhum projeto de lei, sempre votou contra tudo que era a favor do povo. Mas pensava que agora ele teria uma oportunidade para cuidar da saúde, porque estava com a faca e o queijo na mão. Não sou eleitora do Doria, mas ele está fazendo o possível para conseguir resolver. No entanto, se a gente tivesse as três esferas funcionando, nossa realidade seria outra, seria melhor. Mas o governo federal desrespeita a ciência, mas a ciência deu de goleada no governo. A verdade é que o governo passa, mas a ciência e os profissionais ficam. Viva a ciência!

O ministro da Saúde deu uma declaração de que o governo do João Dória teria feito marketing já vacinando pessoas no domingo. Você se sentiu uma peça de marketing?

Não, mas para defender a minha saúde e para defender o bem eu me sujeito a ser peça de marketing. Não me sujeitaria se fosse para o marketing da desinformação, da ignorância e da morte. O presidente está no palanque fazendo o marketing da ignorância e da desinformação. Um faz o marketing que salva e o outro o marketing que mata. Vacina é um ato de amor. Vacina não mata. O que mata é a ignorância, a falta de remédio. Se a vacina chegar pra você, seja grato.

Amazônia Real

A agência de jornalismo independente Amazônia Real é organização sem fins lucrativos, sediada em Manaus, no Amazonas, que tem a missão de fazer jornalismo ético e investigativo, pautada nas questões da Amazônia e de sua população, em especial daquela que tem pouca visibilidade na grande imprensa, e uma linha editorial em defesa da democratização da informação, da liberdade de expressão e dos direitos humanos.

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