ODS 1
Na Cerratinga, o princípio ativo da vida
Encontro do Cerrado com a Caatinga, no oeste da Bahia, conjuga conhecimentos e energias preciosos para o socorro à população da região
Encontro do Cerrado com a Caatinga, no oeste da Bahia, conjuga conhecimentos e energias preciosos para o socorro à população da região
Na série de reportagens “Grilagem espreita o Cerrado”, a ser publicada nas próximas semanas, o #Colabora, em parceria com o Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN), esquadrinhou a região para dimensionar os impactos da proposta de mudança na regulação fundiária, mostrando os perigos que o espreitam, o potencial do bioma e os saberes dos povos tradicionais.
Pelos ensinamentos da mãe e do pai, Dona Nena, agente de saúde e ribeirinha do oeste baiano, aprendeu na Cerratinga (no encontro do Cerrado com a Caatinga), ainda criança, as estratégias “cerratenses” de sobrevivência. Conhecedora das plantas, sabe fazer remédio para mordida de cobra, doenças nos olhos, dor de dente… Também estudou medicina alternativa e bioenergética (técnica que precisa de duas pessoas com a mesma energia para realizar o processo de cura). Aqui, entram as energias que sinalizam onde está a doença, quais ervas usar, como e por quanto tempo tomar o remédio. O tratamento é determinado pelo funcionamento corporal e energético.
Dona Nena afirma que não só o que nasce da terra produz saúde, mas também a própria terra oferece benefícios. A técnica de cura pelo barro precisa da terra sem poluição, procedimento que depende de conservação e respeito. “Aqui na roça ainda tem lugar sem poluição, mas na cidade é impossível. Aí você abre um buraco bem fundo, de dois, três metros, pega aquele barro, põe pra secar, depois bota em um pote de vidro e guarda. Se tiver com dor de cabeça, molha, põe um pano e o barro na cabeça. Na garganta, rins, coração, tem que ser morno. Cura de machucado, quando leva uma pancada, nas pernas, coluna, dor de cabeça, problema na boca, no ouvido, só não pode botar direto, precisa de um pano”, receita a ribeirinha.
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Veja o que já enviamos“Tem erva que se tomar na parte da tarde, pode até matar”, alerta a professora Liderjane Kaxixó, integrante de povo indígena do norte de Minas Gerais. Conhecer as plantas certas para cada problema, a forma de manejar, colher, cuidar, conservar e até a hora que é melhor para regar e retirar as folhas para um melhor enraizamento é fundamental para um bom remédio – ensinamentos que os Kaxixós aprendem desde criança.
Com a devastação do Cerrado, muitas plantas nativas estão desaparecendo, levando com elas muitas propriedades curativas, que ajudaram os povos durante séculos. Eunice Tapuia, do povo originário Tapuia do Carretão (Goiás), explica que quando falta alguma planta para um remédio, não adianta comprar na cidade – não terá o mesmo efeito. O certo é pedir, antes, permissão à terra para o cultivo e a colheita. “Tem que saber a época de tirar, a fase da lua, se a planta não está dormindo… Ela também é um espírito, tal como a gente. Então, os nutrientes dela precisam ser colhidos quando ela está acordada para fazer efeito. E cada fase da lua provoca um efeito”, detalha a professora e doutoranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
O Cerrado e seu povo cuidam um do outro
Com a pandemia, as tradições ancestrais sobre cura e terra são evidentes para Emília Costa, quilombola na comunidade Santo Antônio do Costa, no Maranhão. Ela pontua que as plantas medicinais são importantes para a imunidade do povo, tradição secular que faz parte dos quintais. “Aqui em casa a gente usa bastante mastruz, também tem aroeira, angico que é anti-inflamatório, limão e as folhinhas de limão, malva, erva-cidreira, capim-limão. Também tem tipi e jardineira que é pra banho. Quando não tem em casa, a gente vai buscar no vizinho”.
Laís Cardoso, quebradeira de coco, sem terra e comunicadora popular, relata que o Coletivo da Juventude do MST planeja a realização de oficinas a fim de cuidar dos saberes biomedicinais do Cerrado e formas de trabalhar com a terra. Segundo a comunicadora, na região do Bico do Papagaio, em Tocantins, as raízes mais amargas são muito utilizadas em chás e banhos, além de alguns incensos para arejar o ar e tirar a irritação da pele devido ao uso da máscara.
“A aldeia é a nossa casa”, define a professora Adelina Ikuietaga, do povo originário Boe-Bororo, em Mato Grosso. “Diferentemente de quem mora na cidade e fica sozinho em casa, para nós a aldeia é onde todo mundo convive junto, ninguém fica separado. A criançada se banha junto, brinca junto”, relata ela ratificando que destruir o Cerrado é retirar não só a saúde da terra, mas também dos povos que dela dependem.
“As mulheres têm essa potência de serem as guardiãs de muitos conhecimentos relacionados à biodiversidade do Cerrado”, aponta Isabel Figueiredo, coordenadora do programa Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN). “É uma relação de muita sabedoria, que é guardada pelas mulheres de povos e comunidades tradicionais com relação ao uso de plantas medicinais, à biodiversidade, aos usos de diversos alimentos e diversos tipos culturais, das plantas e dos animais do Cerrado”.
O território pulsa na busca das mulheres pela cura, aponta Fátima Cabral, produtora rural ligada ao sistema de Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSA). “Todas essas forças que a natureza nos propõe, o próprio reconhecimento dos ciclos naturais, o fortalecimento dos partos feitos por parteiras acompanhadas por doulas, uma reconexão da mulher com os seus ciclos naturais, seus ciclos menstruais, com os ciclos da lua, tudo observando todo esse movimento natural”, lista. “Vem delas a sabedoria de aproveitar as técnicas de extrativismo sustentável, de aproveitamento de toda a riqueza que a natureza do bioma oferece”.
A agricultora lembra ainda as possibilidades futuras do bioma em pé. Com a crescente consciência social em torno dos produtos biodegradáveis, naturais, manipulados e preparados mais artesanalmente, a gente tem visto um grande crescimento nesse segmento, com geração de renda através dos produtos elaborados a partir das ervas, das frutas, dos ingredientes naturais”.
A ideia de cura atrelada apenas ao corpo físico ganha novas perspectivas nas mãos das mulheres do Cerrado. Ampliar a ideia de ciência para os saberes da ancestralidade, das experiências com o mundo e com as particularidades da terra. Ouvir, sentir, esperar, cuidar são processos permanentes nos relatos das mulheres que tocam o solo árido do Cerrado e o fertilizam, para ver florescer saúde espiritual, cultural, social, física. Nesse sentido, não só as plantas medicinais são importantes, mas também o corpo que se sustenta desse bioma e caminha por essa terra, juntos, se tornam espaços sagrados de cura coletiva.
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Goianiense, jornalista e pós-graduanda em Letras pela UFG. Integrante do Favela em Pauta, do Coletivo Magnífica Mundi e da Gira Leodegária de Jesus.