#EuNaoSouDespesa: até órgão ligado ao Ministério da Saúde reage à fala de Bolsonaro sobre soropositivos

Conselho Nacional da Saúde, integrante da estrutura organizacional do MS, afirmou que repudia declarações que associam tratamento à despesa para o país

Por Yuri Alves Fernandes | ODS 10ODS 3 • Publicada em 7 de fevereiro de 2020 - 08:12 • Atualizada em 28 de julho de 2020 - 11:32

#EuNaoSouDespesa: até órgão ligado ao Ministério da Saúde reage à fala de Bolsonaro sobre soropositivos
Moysés Toniolo, conselheiro nacional de saúde, abraça a campanha. (Foto: Reprodução/CNS)

Não pegou nada bem a fala de Jair Bolsonaro afirmando que pessoas vivendo com HIV são “uma despesa para todos aqui no Brasil”. O comentário, feito durante uma conversa com jornalistas durante a saída do presidente do Palácio da Alvorada, na última quarta-feira, 5, rapidamente ganhou as manchetes dos principais veículos de comunicação do país e gerou revolta de alguns internautas. Mas a reação que chamou mais a atenção veio de um órgão ligado ao Ministério da Saúde: o Conselho Nacional de Saúde. A entidade, imediatamente, lançou uma campanha em seu site oficial e em suas redes sociais intitulada #EuNãoSouDespesa, em uma explícita repulsa à declaração de Jair Bolsonaro.

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Ninguém é despesa. Nós pagamos impostos e esse dinheiro é revertido para a Saúde. Há várias décadas lutamos contra os estigmas, preconceitos e discriminação e não aceitamos mais rótulos

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Vamos aos números. Estima-se que 866 mil pessoas vivam com o vírus HIV no Brasil. Outras 135 mil ainda não sabem que são soropositivas, acredita o Ministério da Saúde. Desde 1996, o país garante o tratamento universal e gratuito por meio do SUS – chegando a ser considerado referência mundial no combate ao avanço da epidemia pela ONU. Em 2019, segundo o portal da Transparência, o governo usou R$ 1,84 bilhão no atendimento à população com medicamentos para o tratamento de HIV/Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis. O valor equivale a cerca de 0,06% do total dos gastos públicos no período. Apesar do número exíguo, o presidente do Brasil fez questão de estigmatizar ainda mais pessoas com sorologia positiva para o HIV.

A declaração foi dada em contexto para defender o programa de abstinência sexual desenvolvido pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Jair Bolsonaro relatou um caso que teria sido compartilhado pelo jornalista Alexandre Garcia. “Ele fala que a esposa dele, que é obstetra, atendeu a uma mulher que começou com o primeiro filho com 12 anos. Outro com 15, e no terceiro, que a esposa dele atendeu, ela já estava com HIV. A gente quer ajudar a combater. Uma pessoa com HIV, além do problema sério para ela, é uma despesa para todos aqui no Brasil”, disse (veja no vídeo abaixo).

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No dia seguinte, na quinta-feira, 6, a resposta veio em formato da campanha #EuNãoSouDespesa, criada pelo Conselho Nacional de Saúde. A iniciativa tem como objetivo mobilizar a população, soropositiva ou não, contra a discriminação para com as pessoas que vivem com HIV/Aids. Em um claro ataque ao que foi dito pelo presidente, apesar de não citá-lo, a entidade afirmou, por meio de texto divulgado pela assessoria de comunicação, que “representantes do Movimento de Luta Contra a Aids no Brasil repudiam declarações que associam tratamento à despesa para o país. A campanha […] reúne depoimentos de ativistas, estudantes, aposentados(as), jornalistas, assistentes sociais, advogados(as), médicos(as), atores e diversos outros cidadãos e cidadãs que defendem o Sistema Único de Saúde (SUS), contra o estigma, o preconceito e a discriminação”.

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O comentário do presidente foi infeliz, desumano e cruel. Agride diretamente todas as pessoas que vivem com HIV no Brasil, reduz as pessoas a números e à questões de viés econômico

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A ação promovida é destaque no site oficial do CNS, que está hospedado dentro do próprio site do Governo Federal. Criado em 1937, o conselho é uma instância colegiada, deliberativa e permanente do SUS, integrante da estrutura organizacional do Ministério da Saúde. Também chamado de controle social da saúde, sua principal missão é “fiscalizar, acompanhar e monitorar as políticas públicas de saúde nas suas mais diferentes áreas, levando as demandas da população ao poder público”. A sede é na Esplanada dos Ministérios, mas possui autonomia e legislação própria.

“Até o momento não houve nenhum tipo de repercussão contrária a nossa manifestação pública, visto ser legítima e em defesa dos direitos de todos os usuários do SUS e não somente as PVHA – Pessoas Vivendo com HIV/Aids, que foram o foco da fala inconsequente do presidente da República. O fato é que esse episódio não é o único ataque ao SUS e aos direitos humanos e civis de usuários do SUS nos últimos tempos”, lamenta Moysés Toniolo, integrante do Conselho Nacional de Saúde.

Histórico de aversão

Em 2015, muito antes de ser eleito presidente do Brasil, Jair Bolsonaro já havia mostrado a sua falta de empatia e sua completa aversão em relação às pessoas vivendo com HIV/Aids. “Usa (camisinha) quem quiser usar. Se pegar doença é problema deles. Mas não venha querer políticas públicas, dinheiro do povo aqui pra tratar essa gente que contrai a doença nesses atos”, disse em entrevista ao CQC, antigo programa da Band. Já exercendo o cargo atual, ele enfraqueceu o departamento dedicado à infecção e extinguiu as redes sociais que cuidavam da prevenção. Porém, na contramão mundial, o Brasil registrou um crescimento de 21% na taxa de pessoas infectadas pelo vírus, de 2010 a 2018.

Rafuska Queiroz rebate fala de Jair Bolsonaro: ‘Viver não é uma despesa desnecessária. Eu viver por 23 anos, não é uma despesa desnecessária’. (Foto do projeto “Sou +, Estou indetectável”)

Mobilização contra o estigma

Além do uso da hashtag #EuNaoSouDespesa nas redes sociais, uma playlist foi criada no Youtube para reunir os vídeos enviados para o Conselho Nacional de Saúde com os relatos de apoiadores da causa. Entre as centenas de pessoas que já aderiram à campanha, em diferentes meios de comunicação, está Salvador Correa, de 35 anos: pessoa com HIV, ativista do movimento AIDS e membro da Rede Nacional de Pessoas com HIV (RNP-Brasil). “O comentário do presidente foi infeliz, desumano e cruel. Agride diretamente todas as pessoas que vivem com HIV no Brasil, reduz as pessoas a números e à questões de viés econômico. Uma postura mostra a visão do governo do SUS como negócio, uma saúde como mercadoria, e não como qualidade de vida e um direito da população”, disse ao #Colabora.

O conselheiro nacional de saúde Moysés Toniolo ecoa o pensamento de Salvador sobre o assunto e classifica a fala de Bolsonaro como “um ataque inexplicável e desmedido”:  “Não estamos falando de custo ou despesa, mas, sim, de uma das linhas de investimento da saúde pública do Brasil”.

Quem também entrou da corrente foi Heliana Moura, assistente social da Rede Mulheres Vivendo com HIV/Aids: “Ninguém é despesa. Nós pagamos impostos e esse dinheiro é revertido para a Saúde. Há várias décadas, lutamos contra os estigmas, preconceitos e discriminação e não aceitamos mais rótulos”.

[g1_quote author_name=”Rafuska Queiroz” author_description=”Psicóloga” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Ele [Jair Bolsonaro] está colocando nossos corpos positivos como algo que está sendo uma despesa desnecessária para as pessoas. Viver não é uma despesa desnecessária. Eu viver por 23 anos, não é uma despesa desnecessária

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Psicóloga e ativista em direitos humanos, Rafuska Queiroz é soropositiva por transmissão vertical (da mãe para o seu filho). Começou o tratamento ainda na infância no Hospital de Referência do Rio de Janeiro. Foi adotada pelos tios após perder os pais biológicos, por causa da Aids. Hoje, aos 28 anos, ela é a voz de muitos soropositivos que ainda têm medo de expor a sorologia. Por isso, postou um vídeo em suas redes sociais mostrando sua indignação com o ocorrido.

“Discriminar pessoas com HIV é crime. Ele [Jair Bolsonaro] está colocando nossos corpos positivos como algo que está sendo uma despesa desnecessária para as pessoas. Viver não é uma despesa desnecessária. Eu viver por 23 anos, não é uma despesa desnecessária”, compartilhou.

Rafuska se espanta ainda com a recente notícia sobre a ação movida pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a regra trabalhista que proíbe a demissão de funcionários que vivem com o vírus HIV, que existe desde 2012 após a súmula 443 ter sido editada pelo Tribunal Superior do Trabalho. Ela prevê que a discriminação está presumida em caso de dispensa de empregado soropositivo ou portador “de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito”. “A gente tem que ficar de olho nessa situação toda porque pode estar vindo algo muito sério aí pela frente. São retrocessos absurdos”, declara a psicóloga.

Yuri Alves Fernandes

Jornalista e roteirista do #Colabora especializado em pautas sobre Diversidade. Autor da série “LGBT+60: Corpos que Resistem”, vencedora do Prêmio Longevidade Bradesco e do Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+. Fez parte da equipe ganhadora do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, com a série “Sem direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”. É coordenador de jornalismo do Canal Reload e diretor do podcast "DáUmReload", da Amazon Music. Já passou pelas redações do EGO, Bom Dia Brasil e do Fantástico. Por meio da comunicação humanizada, busca ecoar vozes de minorias sociais, sobretudo, da comunidade LGBT+.

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